HISTORIA DA FILOSOFIA PRIMEIRA DE ARISTOTELES A FRANZ BRENTANO

 

1. Historiografia I: de Aristóteles à escolástica tardia

 

1.1 Aristóteles

A Filosofia Primeira surge pela primeira vez na história com Aristóteles. No livro Gama do “Tratado da Metafísica” (103a 20-25), Aristóteles diz que há uma ciência (επιστήμη) que considera (θεωρείν) universalmente o ser enquanto ser (ὂν ᾗ ὄν), assim como as propriedades que pertencem ao ser enquanto tal. Essa ciência não se identifica com nenhuma das ciências particulares, que recortam um setor específico do ser e estudam apenas as características dessa parte, sem interesse pelo ser considerado em sentido absoluto e sem investigar as causas e princípios supremos (τας αρχάς και τας ακροτάτας αιτίας) que existem por si mesmos (καθ’ αυτήν).

Estabelecer exatamente qual foi o nome empregado por Aristóteles para designar essa ciência, qual é a definição precisa dela e qual é o objeto que pertence a ela propriamente, não é tarefa isenta de dificuldades. Como se sabe, o título “Metafísica”, dado ao tratado aristotélico em que a discussão sobre a ciência primeira acontece, é muito provavelmente resultado de um acidente histórico. Ele remonta aos primeiros comentadores de Aristóteles, Andrônico de Rodes em particular, que responde pela edição das obras aristotélicas no século I a.C. No processo catalográfico do corpus aristotélico feito por Rodes, o nome “metafísica”, que tem origem na expressão τῶν μετά τα φυσικά (que significa literalmente das coisas que vêm depois das coisas físicas), foi o título atribuído ao conjunto dos escritos que compõem a Metafísica simplesmente por que eles, na catalogação, foram colocados depois dos livros de física.

Além disso, há outra dificuldade levantada por W. Jaeger, que colocou em dúvida a rígida identificação entre a Metafísica e a ciência suprema designada por Aristóteles: ora, será que essa ciência possui sempre a mesma definição e o mesmo objeto no conjunto dos textos aristotélicos, ou não será, antes, que a definição e o objeto da mesma passaram por mudanças ao longo da evolução do pensamento do estagirita? Aristóteles não teria aderido a diferentes concepções da ciência suprema, e de seu objeto, em diferentes momentos de sua carreira filosófica?

No entanto, uma abordagem cuidadosa das passagens (não muito numerosas) em que Aristóteles fala da ciência suprema, chamando-a pelo nome de Filosofia Primeira, é suficiente para constatar que o objeto a que ela se refere permanece sempre o mesmo, toda vez que ele é mencionado de maneira explícita. A saber, o referido objeto é o “ser suprassensível”, conforme explicitado no estudo de Auguste Mansion[1], que reúne os fragmentos textuais que, no corpus aristotélico, testemunham em favor dessa posição:

                                      O objeto em questão não é outro senão o ser suprassensível - formas análogas ou semelhantes às Ideias platônicas, separadas, como tais, da matéria; - ou ainda Deus, primeiro motor, caracterizado por sua imaterialidade e sua imobilidade; ou, enfim, a inteligência ou a alma enquanto inteligente.[2]

 

Os textos que mais explicitamente colocam a Filosofia Primeira em relação com o suprassensível encontram-se no capítulo 1 do livro 6 da “Metafísica”. Aqui, a ciência primeira é dita a mais elevada e, correspondentemente, o seu objeto é a realidade mais alta, descrita como eterna, imutável e absolutamente separada da matéria. Outros textos de Aristóteles fazem idêntica remissão a esse objeto, mas quase sempre em referência à Metafísica:  

No tratado da “Física”, há duas passagens nas quais a questão da Filosofia Primeira é evocada a título de distinguir as ciências que se ocupam do estudo da forma segundo sua união ou separação em relação à matéria. Na primeira passagem, em I, 9, (132 a 34 - b 2), Aristóteles indaga se o estudo dos problemas concernentes às formas não unidas à matéria é algo que pertence ou não à Filosofia Primeira: em caso afirmativo, convém a ela inquirir se a forma é única ou se são várias formas; se a forma é por si ou é em outro; se a forma é natural ou não, etc.

No livro II (14-15) da “Física”, por sua vez, em que se trata da noção e da realidade correspondente ao termo physis, e busca-se determinar qual é o objeto da física, Aristóteles diz que o físico se ocupa das formas unidas com a matéria, para logo em seguida acrescentar que a questão sobre a maneira de ser e sobre a essência disto que é separado é algo que, pelo contrário, compete à Filosofia Primeira determinar.

Para Mansion, o que as duas passagens acima nos ensinam “é que o estudo das formas imateriais — quaisquer que sejam, aliás, sua natureza e seu número – pertence propriamente à Filosofia Primeira, enquanto que as formas imersas na matéria são do domínio da física.” [3]

Nos tratados sobre o céu, sobre o movimento dos animais e sobre a geração e a corrupção, Aristóteles faz três breves alusões à Filosofia Primeira em relação com Deus, o primeiro Motor, imaterial, eterno e imutável. No Tratado sobre o Céu, I, 8, (277 b 9-12), Aristóteles se demora em primeiro lugar na exposição detalhada das provas físicas da unidade do céu e do mundo para logo em seguida ajuntar que a mesma demonstração poderia ser deixada a cargo de argumentos tomados de empréstimo à Filosofia Primeira, assim como à eternidade do movimento circular dos céus.

No “Tratado sobre o movimento dos animais” 6, (700 b 7-9), Aristóteles menciona as exposições já feitas pela Filosofia Primeira a título de recordar o modo pelo qual o primeiro movido é posto em movimento, o modo como está sempre em movimento, a partir de um primeiro Motor, que move sem ser movido.

Há novas remissões no “Tratado sobre a Geração e a Corrupção”, I, 3, (318 a 3-6), embora ali os termos sejam colocados de modo menos explícito. Aristóteles alega que a causa motriz é o fator que assegura a perpetuidade da geração, em conformidade com o que já fora demonstrado antes nas exposições sobre o movimento. Fica assim determinado que existe, de um lado, o ser eternamente imóvel, e de outro o ser que é sempre movido, e que o tratamento desses dois princípios é uma tarefa que deve ser deixada a cargo de uma filosofia anterior (προτέρᾱς) à física.

Mas o objeto dessa filosofia anterior não é exclusivamente Deus, enquanto primeiro Motor. Há ainda, na introdução metodológica ao “Tratado sobre a Alma” 18 (403 b 15-16), uma nova e inesperada alusão à Filosofia Primeira, cujo domínio próprio – Aristóteles diz – contempla o estudo de afecções e funções separadas, ou seja, imateriais, da alma.

Por fim, na “Metafísica”, a Filosofia Primeira aparece no livro Ε (1025b - 1026a), no qual é feita a divisão das ciências em teoréticas, poiéticas e práticas e é demonstrada a absoluta primazia da proté philosophia, entendida como teologia. As ciências teoréticas são a física, a matemática e a teologia. O objeto próprio a cada uma delas é também definido: a ciência física considera as coisas em movimento afetadas de matéria e não eternas; a ciência matemática considera as coisas imóveis, mas não separadas, porque abstraídas da matéria; a ciência metafísica ou teológica considera coisas separadas e imóveis, portanto, eternas e desprovidas de matéria. Esta última é caracterizada como Filosofia Primeira. Conclui Mansion que o exame dos textos é suficiente para sustentar que “o objeto específico e característico da Filosofia Primeira de Aristóteles não é outro que a coisa imaterial, sob qualquer forma que seja” [4].

Na sequência, Aristóteles indaga se a Filosofia Primeira é ou não universal colocando-a em comparação com a ideia de uma matemática geral ou universal (εις ταις μαθηματικάς (...) ἡ δὲ καθόλου):

                                         Poder-se-ia agora perguntar se a filosofia primeira é universal ou se refere-se a um gênero determinado e a uma realidade particular. De fato, a respeito disso, no âmbito das matemáticas existe diversidade: a geometria e a astronomia referem-se a determinada realidade, enquanto a matemática geral é comum a todas[5].

 

Essa linha de comparação traçada entre matemática universal e Filosofia Primeira não deve ter, porém, como uma de suas consequências a absorção ou redução de uma ciência na outra ou de outra na uma. Aristóteles diz, por exemplo, que a matemática não é uma disciplina apropriada ao estudo da natureza, que deve ser reservado à física. Aqui, cabe lembrar a famosa passagem da Ética a Nicômaco (1094 b1 10-25), em que Aristóteles observa que “não se deve exigir o mesmo rigor em todos os argumentos”, pois “um homem educado tem por princípio reclamar, para cada gênero de afazeres, o grau de rigor autorizado pela natureza do afazer em questão”, daí é que nós temos, com efeito, mais ou menos a mesma estranha impressão diante de um matemático que demonstra coisas apenas prováveis  do que diante de um retórico que nos oferece uma demonstração exata de sua matéria.       

Na leitura do livro E da “Metafísica”, não se pode deixar de reparar que o termo Filosofia Primeira surge dentro de um contexto específico de fundação das ciências, e que esse contexto é marcado, sobretudo, por um esforço de organização do saber humano a partir da reflexão filosófica. É quando se medita a hierarquia do conhecimento e se busca ordenar as ciências conforme a sua situação em relação aos princípios ou causas (tanto da ordem do ser quanto do conhecer) e em relação àquilo que pode ser demonstrado cientificamente a partir de tais princípios ou causas. Assim, é inevitável que se chegue a uma distribuição ordenada do saber, como determinação do anterior e do posterior, do primordial e do derivado, e a uma respectiva caracterização das ciências como primeiras, segundas, terceiras, etc., segundo a disposição das mesmas em relação ao estabelecimento dos princípios (fundação) e aos procedimentos de demonstração (fundamentação) que dos princípios se segue.

Aristóteles sustenta expressamente em “Metafisica”, VI, 2 1026 - 16, 19 e em “Ética a Nicômaco” VI, 6, que a ciência mais alta deve ter o objeto mais elevado. O ser se divide em gêneros e, por via de consequência, as ciências devem responder a esses gêneros dividindo-se por seu turno em primeiras e segundas. Aristóteles afirma que a posição e o primado das diversas ciências filosóficas são determinados pela posição e primado de seus objetos. Estabelece-se assim uma hierarquia dos saberes segundo aquilo a que se referem, conforme três domínios: (i) o domínio da natureza, cujos corpos, unidos à matéria, estão em movimento e são, portanto, mutáveis e indeterminados; (ii) o domínio da matemática, cujas realidades são apenas relativamente separadas, já que abstraídas da matéria e somente sob essa condição são imutáveis e cognoscíveis; (iii) o domínio do divino, que, se existir com efeito, será absolutamente separado e absolutamente imutável, como uma entidade plena. Nessas condições, deve-se conceder a primazia à filosofia que considera o domínio do divino, que é imutável e separado.

Segundo Giovanni Reale[6], em seu comentário introdutório à “Metafísica”, existem quatro componentes metafísicos que caracterizam essa ciência:

(I) um componente aitiológico, referente à doutrina das quatro causas (causa formal, material, eficiente e final);

(II) um componente ontológico, referente aos quatro sentidos do ser (sentido substancial, sentido categorial, sentido lógico e sentido de potência e ato);

(III) um componente usiológico, que se refere à concepção de substância e aos seus múltiplos significados;

(IV) por fim, um componente teológico, que trata da existência e da natureza da substância suprassensível, primeiro motor imóvel ou Deus.

 

1.2 Santo Tomás de Aquino (1225-1274).

Santo Tomás de Aquino usa com bastante parcimônia o conceito de Metafísica. Na “Suma Teológica” e na “Suma contra os Gentios”, ele diz que a Metafísica versa acerca das coisas divinas (circa res divinas). No proêmio ao “Tratado sobre a Geração e a Corrupção” aristotélico, a Metafísica é definida por Santo Tomás como a determinação do ente em geral (de ente in communi) e do ente primeiro (de ente primo), separado da matéria. A Metafísica, por sua vez, apresentada no livro I do “Sobre os Analíticos” traz o sentido estrito de uma metafísica das coisas que são comuns. Trata-se de uma ciência dotada de máxima universalidade, que investiga as determinações comuns tanto às substâncias compostas quanto às substâncias separadas. Seu campo excede assim a consideração de todas as ciências particulares.

No “Comentário à Metafísica” de Aristóteles, Santo Tomás atribui três nomes a essa ciência universal. Ela é dita Teologia, ou ciência divina, na medida em que considera as coisas separadas da matéria: tanto os entes de razão – por exemplo, as idealidades matemáticas abstraídas da matéria – quanto os entes imateriais absolutamente separados em seu ser, como Deus e as inteligências angélicas. Ela é dita ainda Metafísica, na medida em que considera o ente e o que se pode derivar logicamente do conceito de ente, como os acidentes e as propriedades. Enfim, ela é dita Filosofia Primeira, na medida em que considera as primeiras causas das coisas. Diz Santo Tomás que todas as outras ciências são dependentes da Filosofia Primeira, pois dela recebem seus princípios e sua orientação.

Poder-se-ia sustentar que Santo Tomás, dentre os quatro componentes da metafísica de Aristóteles (aitiológico, ontológico, usiológico e teológico) privilegia os seguintes componentes:

(I) O teológico, já que a metafísica se mantém como a ciência por excelência do divino, de Deus.

(II) O ontológico, visto que o divino é compreendido como “ato puro de ser”.

(III) O aitiológico, porquanto Deus é compreendido como a causa primeira, a causa criadora não somente das entidades criadas (causalidade ôntica), mas também da essência das criaturas e do ser das criaturas (causalidade ontológica).

Esse privilégio dado à teologia, à ontologia e à aitiologia ocorre em detrimento da usiologia (do estudo da substância). A causa primeira, com efeito, é concebida não como substância infinita, e sim como “puro ser”.

 

1.3 João Duns Scotus (1266-1308)[7].

A metafisica de João Duns Scotus se concebe como uma ciência dos transcendentais. Esta promove uma re-fundação da metafísica (um segundo começo da ciência metafísica) que tenta colocar fim a esta oscilação perpétua e irremediável entre ontologia e teologia (chamada posteriormente de constituição onto-teológica) que caracteriza os esforços de definição da metafísica e que remonta a Aristóteles e aos seus sucessores medievais. Para isso, o “Doutor Sutil” se posiciona contra a tradição aristotélico-escolástica insistindo na univocidade do ser.

A univocidade de que fala Scotus traz uma noção do ente que não se deixa limitar ao ente físico, mas que pode ser aplicada também, sem equívoco, ao ser divino (é claro, porém, que a concepção de um conhecimento unívoco do ente, que envolve tanto o ser infinito de Deus quanto o ser finito das criaturas, fornece um saber imperfeito de Deus e não pode oferecer senão uma base abstrata e puramente metafísica para a constituição de uma teologia). Assim, no Prólogo do primeiro livro de suas Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristoteles, Scotus transpõe o antigo conceito de Filosofia Primeira para o quadro de uma scientia transcendens, que pode ser entendida como uma filosofia transcendental ou uma ciência dos transcendentais. “É necessária uma ciência que considere os transcendentais (transcendentia). E chamamos metafísica a esta ciência (...) como, por assim dizer, transcendental (quasi transcendens scientia), porque ela se volta ao estudo dos transcendentais (quia est de transcendentibus).”[8]

O que é a ciência dos transcendentais? Trata-se de uma ciência reservada à consideração de conceitos especiais (ente, uno, verdadeiro, bom), que não são a mesma coisa que o conceito de substância (a metafisica como ciências dos transcendentais não equivale à metafísica como ciência do ente enquanto ente sob a unidade teórica proporcionada pelo conceito de substância, nem se identifica com uma interpretação da metafísica na qual Deus é o objeto). Em suma, é uma ciência que se dirige ao ente em comum no sentido de uma pura e simples alguma coisa, um puro objeto de pensamento enquanto tal. Os transcendentais são também designados pelo nome de “paixões do ente” (passiones entis), que dividem-se em paixões convertíveis: o um, o verdadeiro, o bem, etc., e paixões disjuntivas, como finito e infinito, necessário e contingente.

Scotus, é importante que se diga, não foi o primeiro autor medieval que falou de conceitos transcendentais: esse mérito, provavelmente, se deve a Philippe, o chanceler, professor na Universidade de Paris, que redigiu logo no início do século XIII uma Suma de Bono. Mas o doutor Sutil foi, de fato, o primeiro que de modo explícito e pontual deu à metafísica o título de ciência transcendente (ciência dos conceitos transcendentes) e articulou pressuposições para concebê-la como tal. A saber, transcendentais são os conceitos que possuem uma universalidade transgenérica, eles qualificam aquelas determinações do ente que não se deixam enquadrar exclusivamente em nenhum dos gêneros que a lógica de Aristóteles definiu como categorias da substância. Dizer que esses conceitos transcendem as determinações categoriais significa, literalmente, que eles atravessam os limites lógicos e ontológicos que distinguem as categorias da atribuição, os gêneros e espécies de ser, sem se deixar encerrar em nenhum deles.  

Outra coisa que, nesse registro, deve ficar clara é que os conceitos transcendentais são conceitos reais, isto é, conceitos de primeira intenção, que dizem respeito intrinsecamente ao objeto. A distinção entre conceitos de primeira e segunda intenção é o que distingue metafísica e lógica. Enquanto que a lógica define-se como uma ciência que se dirige a conceitos e relações conceituais produzidos pelo intelecto, isto é, conceitos de intentio secunda que, tais como gênero e espécie, não se predicam de coisas extra animam, a metafísica deixa-se definir como ciência dirigida a conceitos que exprimem realidades, conceitos que se predicam de indivíduos, de coisas singulares.  

Também importa muito salientar, no tocante à filosofia transcendental scotista, que ela está ligada a uma teoria da cognição. Scotus rejeita a proposição de que tenhamos qualquer conhecimento especial da realidade a partir de conceitos inatos e tampouco para ele existe a via de uma iluminação especial para o conhecimento. Ele adota amplamente a concepção de Aristóteles de que o conhecimento parte da experiência do mundo sensorial. No entanto, ele foi profundamente atento à necessidade de se perceber qual é o desempenho cognitivo que possuímos e em que medida esse desempenho pode permitir a metafisica como ciência da realidade como um todo. Em que medida temos um desempenho cognitivo relativo a Deus que não O reduza aos conceitos apresentados na mitologia ou na revelação? Que tipo de controle do conceito de Deus se pode ter?

Essa teoria da cognição passa por uma espécie de “teoria dos conceitos”, segundo a qual  o conceito, em última instância, é uma species, um mecanismo ou artifício pelo qual o objeto é intencionado pelo pensamento. A species equivale a um medium quo, um meio pelo qual a realidade do objeto é intencionada. Scotus nega qualquer teoria representacionalista do conhecimento e procura descrever a obtenção de conceitos como sendo o resultado de uma dinâmica em que o objeto e o intelecto realizam aspectos causais concorrentes e independentes em que, em última instância, a realização da forma da coisa na mente, a species, uma vez refletida pelo intelecto, no pensamento intencional, é descritivamente entendida como meio pelo qual o objeto é intencionado. 

Scotus deu um amplo espaço e uma importância especial a essa obtenção da species, da forma do conceito que no ato do pensamento intenciona o objeto. Essa noção é particularmente importante para a obtenção dos conceitos metafísicos. Com conceitos reais de primeira intenção, o intelecto não obtém apenas termos concretos como cavalo e árvore, ele opera a partir dos termos concretos nas species, entrando numa dinâmica de percepção dos vários aspectos da coisa. A dinâmica do intelecto que concorre com o objeto na obtenção dos aspectos da realidade não chega apenas a termos concretos, mas também, em especial, a termos abstratos, como cavalidade, humanidade, racionalidade, animalidade, etc. Eles são notados pela vida intelectual, mas são igualmente intencionais, e como tal apelam constitutivamente para a concorrência original do objeto. Tratam-se das assim chamadas na escola scotista “formalidades”.

Se a metafisica de Scotus corresponde em grande medida à análise conceitual de ente, quanto ao seu significado, obtenção, realidade, comunidade, etc., vale assinalar que este conceito resulta do mecanismo da abstração, acrescentando-se que se trata do primeiro cognoscível abstraído pelo intelecto. Para Scotus, o subjectum primeiro da metafísica é o ente que se predica univocamente de toda coisa; ele é o objeto primeiro do intelecto humano por ser um conceito absolutamente simples e que precede toda determinação e toda divisão. Scotus[9], no entanto, distingue diferentes sentidos de “primeiro”: um primeiro segundo a ordem de perfeição, um segundo a ordem de geração e outro segundo a ordem de adequação.

(I) O primeiro conhecido segundo a ordem de perfeição é Deus.

(II) O primeiro conhecido segundo a ordem de geração são os acidentes que se verificam nas coisas e que constituem as razões comuns que nosso intelecto abstrai delas.

(III) O primeiro conhecido segundo a ordem da adequação é o ente, este é o objeto adequado do intelecto, a causa de toda inteligibilidade possível e a razão comum de todas as coisas. Trata-se de um conceito quiditativo extraído por abstração última dos acidentes da substância em sua indiferença respectivamente a “isto” de que ele é dito ser.

Pode-se defender as seguintes teses a respeito desse conceito primordial: (I) ele é o primeiro conhecido; (II) acha-se implícito em todas as coisas que conhecemos, quer dizer, está contido em todos os conceitos objetivos distintos, em todos aqueles conceitos em que temos uma pretensão intencional de seu peso objetivo constitutivo, o ente está co-conhecido; (III) por essa razão, ele possui absoluta unidade semântica e comporta assim uma especial generalidade que o candidata a ser o predicado de todas as coisas, sem exceção.

Uma exemplificação privilegiada que prova essa tese é o da contradição, que só é reconhecida como tal porque o conceito de ente é suficientemente unitário. Ou seja, quando incido numa contradição (A é B e A não é B), o reconhecimento dela só é possível porque existe uma suficiente base unitária no “é” da cópula, que, apesar das diferentes variáveis, faz com que essa proposição seja contraditória. Logo, a contradição pressupõe a certeza e a unidade semântica. Se o conceito de ente é transcategorial, porque sua unidade de sentido é dita tanto da categoria acidental quanto da substancial, ele é essa unidade última de abstração que eu atinjo quando interrogo todas as coisas pela pergunta quiditativa “O que é?” O conceito de ente é tão simples e a sua unidade significativa é tão absoluta, que, em grande medida, ele não pode ser definido por alguma coisa mais simples, ele só pode ser reiterado e explanado, por assim dizer, indiretamente. Quando digo, por exemplo, que ente é aquilo que imediatamente estabelece a diferença entre ser e nada, significa que entre o ens e o nihil existe absoluta contradição, quando eu saio de um estou imediatamente no outro.

Como vemos, boa parte da metafisica scotista é voltada para a lógica do conceito de ente. Se na realidade o que existe é prioritariamente substância, o conceito de ente, como aquilo que responde em última instância ao que as coisas são, é um predicado quiditativo, que se distingue dos predicados qualitativos. O ente possui uma comunidade de predicação quiditativa e possui uma dupla primazia de predicação, de comunidade e de virtualidade, no sentido de dizer que ele é co-implícito, conhecido conjuntamente em todos os predicados quiditativos, ou está predicado de maneira virtual, no sentido de que é co-conhecido em todos os predicados qualitativos, que não são quiditativos, mas que, no entanto, existem e inerem em coisas substanciais.

Mas, para além do teor epistemológico contido na filosofia scotista, o que mais interessa ao doutor Sutil é a possibilidade da “via unitária da metafisica”, isto é, a justificação da pretensão que a metafísica tem de oferecer uma visão unificada da realidade sob a base da percepção dos conceitos abstratos e intencionais. Portanto, os conceitos transcendentais não são recrutados apenas à função de possibilitar uma reflexão cognitivo-epistêmica, mas respondem a uma reflexão sobre a pergunta de abertura acerca da realidade e a uma reflexão sobre a estrutura da realidade dos modos de existência. A ligação entre esses três elementos torna-se o cabeçalho da concepção filosófica de Scotus.

É claro que a unidade metafisica só pode ser uma unidade conceitual, já que o conceito é justamente o mecanismo intelectual que reúne as apreensões dos diversos aspectos da realidade. O problema que surge diante dessa pretensão de unificação é que, já na ontologia de Aristóteles, o ser é dito tanto das coisas substanciais quanto das não substanciais, o que nos deixa, aparentemente, diante de uma pluralidade e uma plurivocidade irredutível.

Mas Scotus, mediante uma radical revisão e exame dos conceitos metafísicos que apresentam significativa generalidade, aqueles que se predicam de muitas coisas diferentes, parte da suposição de que há conceitos que conseguem vencer a divisão categorial, e ele logo assume como hipótese de trabalho que o conceito de ente é o único efetivamente capaz de proporcionar a unidade conceitual real. Logo, se os conceitos transcendentais devem unificar a investigação da realidade em seus aspectos fundamentais, o conceito de ente é o único que tem sucesso nessa pretensão.

A partir daqui, o esforço de Scotus é mostrar que a única maneira de o mundo não permanecer separado e dividido em vários gêneros unitários é a defesa da tese da univocidade do ser. Acrescentando-se, porém, que a ideia da univocidade não é contrária à da analogia, mas implica que a analogia precisa pressupor o conceito unívoco de ser, pois, se não pressupor, ela deve pressupor Deus, e Deus não é o primeiro conhecido e nem a primeira coisa co-conhecida.

O conceito de ente se notabiliza por possuir elementos fundamentais para a pretendida via unitária metafisica, na medida em que é um conceito real, em que obedece a um mecanismo de obtenção de termos abstratos de primeira intenção, em que responde à ideia de objetividade e traz a universalidade total que supera as diferenças categoriais. Uma vez que os transcendentais são transcategoriais e não se restringem nem se limitam a um gênero supremo, eles oferecem o horizonte de realidade objetiva dentro do qual o nosso conhecimento ocorre e com isso constituem uma abertura fundamental para a realidade. Mas resta dizer que, se o conceito de ente é chamado por Scotus de primeiro transcendental, ele não é o único, pois seus atributos são o uno, o verdadeiro, o bom, que na tradição eram conhecidos como convertíveis ao ente, e que são posteriores, pois derivam do ente e ampliam o seu sentido. Uno, verdadeiro, bom, etc. não são definíveis, mas por assim dizer explicitam a estrutura de sentido que acompanha a estrutura de sentido fundamental do ente.

É aqui que a filosofia scotista se deixa levar por uma meta mais ambiciosa, concernente a uma análise metafísica da estrutura da realidade que é ditada pelos conceitos transcendentais. Há uma passagem da Ordenatio em que Scotus dá uma definição de transcendental que o caracteriza como um conceito que, tal como o conceito de ente, é indiferente ao finito e ao infinito ou então é próprio do ente infinito. Essa definição traz uma abertura importante: a metafisica, como ciência da realidade unificada e totalizada pelo conceito de ente, talvez seja capaz de construir uma estrutura transcendental total na qual esteja indicada uma realidade objetiva tão ampla que até mesmo Deus possa fazer parte dessa ciência.

 Essa discussão nos levaria muito longe, mas, em linhas gerais, o argumento é que, com a posição dos conceitos transcendentais transcategoriais indiferentes ao finito e ao infinito, ou próprio do ente infinito, o intelecto atinge ao mesmo tempo as assim chamadas “propriedades disjuntas” (finito-infinito, atualidade-potencialidade, causado-incausado, etc.) que incluem “perfeiçoes puras” que são propriedades que não contêm nenhuma limitação intrínseca. O objetivo que se põe é procurar uma indiferença de conceitos reais que tenha tanta generalidade que possa inclusive estruturar, ou seja, apresentar uma constelação estrutural sobre a realidade, a partir da qual, à luz da lógica dos conceitos transcendentais, o pensamento de Deus seja controlável. Não é por acaso que se diz que o conceito de ente infinito (composto a partir da natureza dos conceitos transcendentais), sob certo aspecto, controla nossa representação do que Deus é. Mas o essencial já foi dito e não precisamos nos estender sobre esse ponto.

Só não podemos nos esquecer, para finalizar, que, com a determinação da Filosofia Primeira como estudo do ente unívoco enquanto ente, ocorre uma mudança de orientação dessa filosofia, uma verdadeira virada “ontológica” (mesmo que o termo ontologia ainda não existisse) em que a metafísica ganha enfim plena autonomia em relação à teologia. De ciência do ente primeiro em si a metafísica devém uma ciência do ente para nós.

 

1.5 Pedro da Fonseca (1528-1599)

Já nos Comentários à Metafísica de Aristóteles, obra editada em dois volumes, é de destacar, relativamente à tradição escolástica, que Fonseca rejeita a noção de uma filosofia primeira como serva da teologia, entendendo-a antes como rainha das ciências (omnium scientiarum domina), aprofundando ainda mais esse distanciamento relativamente à teologia pela ausência de referências à teologia natural, que tinha por função o conhecimento das coisas invisíveis de Deus através das coisas visíveis, ou seja, o conhecimento dos atributos divinos através do livro das criaturas.

 

1.6 Francisco Suarez (1548-1617).

Diferente de Santo Tomás, Suarez faz um uso fundamental do termo “Metafísica”, definindo-a como “a ciência que contempla o ente enquanto ente ou o ente enquanto abstraído da matéria.”[10] As Disputationes Metaphysicae de Suarez, publicadas em Salamanca em 1597, são hoje consideradas o grande tratado metafísico da idade moderna. Elas consistem inicialmente numa obra de síntese que elabora e sistematiza aquilo que já foi pensado: numa abordagem retrospectiva de uma série de questões já repertoriadas e amplamente documentadas, recapitulam toda doxologia legada pela tradição, a saber, as opiniões principais e dignas de consideração sustentadas pelos autores do passado em forma de sentenças (sententiae). Após essa exposição, cada questão recebe da parte de Suarez uma nova explicação e uma nova justificação, assumida pelo autor em seu nome próprio e formulada como uma nova sentença. 

As Disputationes Metaphysicae abrangem integralmente a doutrina dos doze livros da Metafísica de Aristóteles, mas elas colocam em vigor uma nova definição de Metafísica e do objeto que pertence adequadamente a essa ciência. A Metafísica se divide em Suarez em Metafísica Geral, consagrada ao estudo do ente enquanto ente, e em Metafísica Especial, consagrada ao estudo de Deus. Essa divisão vai se tornar clássica e a Metafísica Geral será designada posteriormente pelo neologismo “ontologia”.

Assim, a Metafísica unifica a Filosofia Primeira estabelecendo-se, ao mesmo tempo, como doutrina dos entes os mais divinos e como doutrina que considera o ente enquanto ente (todos os predicados que são comuns ao ente em geral). Mas, como adverte Marion[11], a philosophia prima de Suarez diz respeito a Deus e às inteligências angélicas sem ultrapassá-los para um horizonte mais largo. A prima philosophia leva assim ao estabelecimento da teologia, enquanto que a Metafísica é reconhecida como a ciência de maior universalidade, na medida em que opera tal ultrapassamento rumo a uma esfera mais abrangente. 

                                         Pois esta ciência faz abstração das coisas sensíveis e materiais (que são ditas físicas, porque é delas que se preocupa a filosofia natural); ela também contempla as coisas divinas e separadas da matéria, assim como as razões comuns do ente, que podem existir separadas da matéria; ela foi então nomeada metafísica, instituída depois da física ou além da física[12].

 

O objeto da Metafísica, que de início designa-se como o ente enquanto ente real (ens in quantum ens reale), estende-se em seguida às substâncias imateriais finitas (criadas) e à substância infinita (incriada). A primeira parte (geral) das Disputationes estuda o objeto na acepção restrita de real, segundo o conceito comum de ente, assim como as propriedades, ditas propriedades transcendentais ou paixões, e as formas de causalidade que se aplicam àquele. A segunda parte (especial) debruça-se, por sua vez, sobre os entes determinados, Deus e as criaturas, a existência e os atributos de Deus, a existência e a essência do ente finito, as substâncias criadas e os acidentes, e, por fim, fecha com o estudo dos entes de razão. Deve observar-se que a Metafísica inclui o ser infinito na medida em que ele tem a razão de ente e o tipo de analogia entre finito e infinito empregada nesse estudo é chamada por Suarez de “analogia de atribuição intrínseca”.

É claro que a metafísica destina-se a servir à teologia sagrada e sobrenatural, mas com ela surge uma outra forma de teologia natural e humana. Além disso, por conter uma parte geral e outra especial, a Metafísica deixa de estar por inteiro subordinada à teologia e se estabelece efetivamente como ciência primeira[13].

 

1.7 Benedictus Pererius ou Bruno Pereira (1536-1610).

Coloca-se em oposição a Suarez ao privilegiar o conceito de Filosofia Primeira e não o de Metafisica. Bruno Pereira escreveu um manual de filosofia natural chamado De communibus omnium rerum naturalium principiis, cujo primeiro livro, intitulado De philosophia, vai tratar de questões preliminares que concernem à divisão da filosofia em Especulativa e Prática. A filosofia Especulativa divide-se em Metafísica, Matemática e Física. O capítulo XVII desse primeiro livro discute a questão sobre “quae illarum trium scientiarum sit prima”, ou seja: qual dentre essas três ciências é a primeira, a prima philosophia.  

De acordo com Crapulli[14], o exame de Pereira é feito sob um duplo ponto de vista: “secundum naturam e secundum nos, segundo a ordem natural da realidade da qual tratam, respectivamente, a metafísica, a matemática e a física, e segundo a ordem e o grau de facilidade com que as aprendemos”.

Secundum nos, a Metafísica é posterior em relação à Matemática e à Física, e em relação a qualquer outra ciência, já que o conhecimento das coisas imateriais é precedido, na mente humana, pelo conhecimento da realidade sensível e menos abstrata da matéria e através do auxílio prestado por outras ciências. Secundum naturam, porém, a Metafísica é primeira em relação às outras duas disciplinas especulativas, e em relação a qualquer outra ciência, pois ela se ocupa “dos predicados e das causas de todas as coisas primeiras e generalíssimas, isto é, dos transcendentais e das inteligências”[15], por isso, compete a ela a denominação de Filosofia Primeira.

Diferentes critérios: Pereira reconhece que há diferentes critérios cuja aplicação resulta em alteração do estatuto da matemática. Genericamente, Pereira considera a teologia a mais nobre ciência de todas[16]. Esta posição é justificada por se debruçar sobre um objecto superior. Por aplicação do critério ontológico, a posição seguinte é ocupada pela física, que se debruça sobre substâncias, e a última, pela matemática, que se ocupa de acidentes[17]. Mas se se considerar o critério da certeza, o cenário muda de figura: a teologia continua a ser superior às restantes se se entender que o conceito de “certeza” traduz a firmeza e imutabilidade do objecto, mas se se considerar a certeza do ponto de vista da força e firmeza das demonstrações, tem de se admitir forçosamente que, pela dificuldade intrínseca do seu objecto, é superada pelas restantes ciências[18]. Ora, comparando a matemática com a física (as “restantes ciências”), verifica-se que, em relação a este critério, a primeira leva de vencida a segunda.[19]

Em Pereira, temos então a filosofia sendo dividida em três partes: a primeira delas é qualificada de metaphysica, theologia, sapientia, divina scientia, ela ocupa-se em considerar as inteligências separadas de toda matéria. A segunda dessas partes denomina-se prima philosophia universalissima, trata-se de uma scientia universalis que ocupa-se em considerar os transcendentais. A terceira parte reserva-se à função de considerar as categorias e pertence à parte dialética ou lógica das exposições quadripartidas da filosofia escolar. A universalidade da Filosofia Primeira coincide com a universalidade das determinações do ente. Logo, ela ocupa-se do ens in quantum ens.

Contemporâneos de Pereira que devem ainda ser incluídos na discussão sobre a Filosofia Primeira são lembrados por Jean-Luc Marion no seu estudo do prisma metafísico de Descartes. O jesuíta Eustache de Saint-Paul (1575-1640) é um deles e devida importância lhe advém do manual de filosofia que escreveu, intitulado Summa philosophica quadripartita de rebus Dialecticis, Moralibus, Physicis et Metaphysicis, o qual oferece uma concepção da filosofia quadripartida em Dialética, Moral, Física e Metafísica, propondo a divisão desse manual como programa de ensino. Nele, a Metafísica é definida como ciência teorética do ente real e completo, abstraído “por indiferença” de toda matéria. Scipion Dupleix (1569-1661) é outro deles: notando a recente introdução do conceito de metafísica nos programas, ele propõe reservar uma segunda posição à Sapiência ou Sabedoria, uma terceira posição à teologia ou ciência de Deus, e, paradoxalmente, coloca na quarta posição a filosofia primeira ou ciência primeira, cujo escopo é o primeiro dos entes. Outro cujo nome deve constar nessa lista é Abra de Raconis (1580-1646), que estabelece como objeto adequado da metafísica o ente obtido por abstração das diferenças entre Deus e as criaturas. Ele detalha os nomes que convêm às disciplinas metafísicas, mencionando em primeiro lugar a Philosophia simpliciter e, em seguida, a filosofia primeira, cujo discurso versa sobre as coisas mais nobres, Deus e os anjos; na posição seguinte encontra-se a theologia rationalis e, enfim, a Metaphysica propriamente dita.

 

1.8 Francis Bacon (1561-1626) e Thomas Hobbes (1588 –1679)[20].  

Bacon é um dos expoentes do empirismo inglês. Em seu livro “O progresso do conhecimento (1601), Bacon nomeia Philosophia Prima a matriz de todos os saberes pertencentes ao domínio da filosofia. Essa matriz é representada pela imagem da “árvore do conhecimento”, figura tomada de empréstimo da antiga tradição enciclopédica para representar o nexo entre os saberes. A árvore representa em seus ramos o intercurso entre os conhecimentos, possui uma estrutura orgânica e mantém, ao invés de um ponto concêntrico, um tronco comum onde se alimentam todas as ciências.

Bacon concebe a divisão do saber humano nas seguintes categorias: a Memória, da qual surge a História; a Razão, da qual surge a Filosofia; a Imaginação, da qual nasce a Poesia. Mais tarde, a imagem da “árvore do conhecimento”, inspirada na ideia de divisão de Bacon, será também proposta pelos enciclopedistas do iluminismo, Diderot e d'Alembert, os quais dividiram o conhecimento em três categorias, que determinam a forma pela qual se organizam os assuntos abordados na Enciclopédia.

O interesse de Bacon não é puramente científico, seu objetivo é também prático. Para o filósofo inglês, “saber é poder”, e o interesse de sua filosofia é o poder do homem sobre a natureza. Bacon possui uma posição histórica na vanguarda da filosofia moderna, e essa posição se deve ao livroNovum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza”, que se caracteriza por duas coisas:

1) em primeiro lugar, a exigência de uma reconstrução fundamental das ciências, que devem se livrar de uma diversidade de ídolos para se constituírem como verdadeiras ciências.

Os ídolos são de quatro tipos: a) Os ídolos da tribo (idola tribus), que estão inscritos na própria natureza humana e se referem à predisposição do homem de enxergar “causas finais” nas coisas, tendência que dá surgimento ao antropomorfismo, ao animismo, etc. Os ídolos da tribo surgem de associações e generalizações a partir de amostras diminutas. b) Os ídolos da caverna (idola specus), que se  referem aos homens enquanto indivíduos, na medida em que seu espírito está sujeito a várias perturbações; desses ídolos surgem, por exemplo, o senso comum, as atitudes impensadas, os pressupostos errôneos, a tendência a aceitar somente o que concordar com a própria opinião. Os ídolos da caverna são fruto de inferências irrefletidas. c) Os ídolos do foro (idola fori), que correspondem ao intercurso e à associação recíproca; para Bacon, as palavras cunhadas pelo vulgo, na medida em que são impostas de modo impróprio e inepto, acabam por bloquear o intelecto, de onde surgem mal-entendidos e o uso de conceitos imprecisos, equivocados e deturpados. Os ídolos do foro distorcem a realidade mediante o discurso, mais precisamente, o discurso retórico. d) Os ídolos do teatro (idola theatri), que vêm do apelo à tradição ou à autoridade, e se constituem de dogmas políticos, religiosos, filosóficos, ou de ideologias. Esses ídolos surgem da crença.

2) Em segundo lugar, a ênfase no método indutivo. Este se compõe de quatro etapas: a observação empírica da natureza; o processamento racional dos dados obtidos; a elaboração de hipóteses fundadas nesses dados; a verificação das hipóteses mediante experimento replicável.

Bacon rejeita a indução de Aristóteles e dos escolásticos considerando-a não genuína, tendo-a na conta de uma inductio per enumerationem simplicem. Para o filósofo, que se ocupava também de política e ganhou o título de barão de Verulam, o conhecimento deve estar baseado na experiência, que precisa, por sua vez, ser elevada metodicamente do individual ao geral. O que se faz em primeiro lugar é expor os fatos, depois organizá-los claramente, e em seguida derivar leis dos mesmos mediante a indução legítima e verdadeiramente científica. Bacon optou por usar predominantemente o princípio da eliminação.

Ligado de perto a Bacon, está o filósofo Thomas Hobbes, autor do célebre “Leviatã” e cuja filosofia “fundamentalmente materialista e anti-essencialista” se coloca também numa posição antagônica em relação a Aristóteles e à escolástica. A Philosophia prima desenvolvida por Hobbes tem como referência a Física e a Metafísica de Aristóteles. Ela as toma como alvo de crítica, mas também como ponto de partida para o remanejamento teórico de uma série de princípios e conceitos herdados da tradição. A filosofia primeira hobbesiana, considerada em seu conjunto, é definida amplamente pela metafísica concebida como ciência do ente enquanto ente (a saber, o ente material), ao invés da clássica definição de ciência do ser enquanto ser. Duas definições strictu sensu são então erigidas a partir desse conceito amplo de metafísica: a metafísica como física geral – na medida em que dizer o ente (ens) é dizer o corpo (corpus) – e a metafísica como representação.

Hobbes possui, portanto, uma nova concepção de filosofia radicalmente inscrita no anti-aristotelismo e cujo corporeísmo mecanicista se deixa inspirar profundamente pela física-matemática de Galileu. Na visão hobbesiana, a filosofia deve ocupar-se exclusivamente com o estudo dos corpos, suas causas e propriedades. Tudo o que não é corpo deve ser assim banido da investigação filosófica. Os corpos são divididos por Hobbes em três classes: os corpos naturais inanimados, que incluem os corpos da natureza em geral; os corpos naturais animados, que incluem o homem; os corpos artificiais, que incluem o Estado. A filosofia deve, portanto, ser tripartite, de maneira a tratar de cada uma dessas classes. De onde foi concebida a célebre trilogia hobbesiana: De corpore, De homine, De cive. A ciência dos corpos naturais dedica-se ao estudo dos corpos e do homem, ao passo que a ciência do corpo artificial dedica-se ao estudo do Estado.

 

2. Historiografia II: de Descartes a Brentano

 

Em Descartes (1596-1650), a Filosofia Primeira é evocada nas Meditações, que possuem como título Meditationes de prima philosophia, e também na Carta-Prefácio aos Principia philosophiæ, carta em cuja redação o filósofo francês compara a filosofia a uma árvore (a árvore do conhecimento) cujas raízes são a Metafísica, o tronco a Física e os galhos o conjunto de todas as outras ciências que se reduzem à Medicina, à Mecânica e à Moral.

A determinação cartesiana da essência da filosofia deve definir  a filosofia como o estudo da sabedoria, sendo a sabedoria o perfeito conhecimento daquilo que o homem é capaz de saber, cuja finalidade é: a condução da vida (moral), a conservação da vida (medicina) e o domínio da natureza (mecânica). O supremo bem é o conhecimento da verdade pelas suas primeiras causas, causas que, em seu conjunto, constituem a sabedoria, de que a filosofia é o estudo (o amor, o devotamento ao saber). Mas na sabedoria a tarefa mais nobre a que o homem se entrega é a de compreender a si mesmo. Por isso a pergunta inicial das Meditações é: “Sed quid igitur sum?

O professor Gilles Olivo[21] examina uma hipótese interessante, relativa ao desenvolvimento do projeto cartesiano, segundo a qual o ideal de realização da Mathesis universalis, lançado expressamente por Descartes na sua obra de juventude, inacabada e não-publicada, Regulæ ad directionem ingenii, teria sido abandonado em proveito de um projeto metafísico levado a cabo nas Meditações. No texto das Regulæ, o filósofo francês define a Mathesis universalis como “ciência geral da ordem e da medida” a partir de sua função metodológica de fixação do critério da evidência como regra da verdade. No entanto, o conceito de Mathesis é assim definido para logo em seguida desaparecer de cena, estando ausente das preocupações e dos temas explícitos das obras publicadas posteriormente por Descartes. Dentre as várias explicações para isso, diz Olivo, uma é a possibilidade de que o projeto matésico sofrera depois, nas obras acabadas e publicadas, uma atenuação e uma subordinação ao projeto metafísico das Meditationes.  

Vamos conferir na sequência as regras específicas apresentadas pelo jovem Descartes que permitem estimar seu projeto de uma Mathesis universalis.  

 

2.1 As regras para a direção do engenho

As regras são aquilo que define o método:

                                         Entendo por método regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente as observar nunca tomar por verdadeiro algo de falso e, sem desperdiçar inutilmente nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente o saber, atingir o conhecimento verdadeiro de tudo o que será capaz de saber[22].

 

Regra II. “Toda a ciência é um conhecimento certo e evidente.” (Omnis scientia est cognitio certa et evidens). Na visão do neokantiano Paul Natorp, a regra II exprimiria o objetivo central da obra: argumentar em favor de uma equivalência entre evidência e verdade, uma identidade entre esse verum e esse certum. Com ela, surge o ponto de inflexão da ciência moderna: a certeza não estará mais do lado do objeto do conhecimento, “o objeto não aparece nessa formulação. Certeza é uma modalidade do conhecimento em si mesmo, aquilo que nós poderíamos chamar ‘subjetivo’, embora o próprio Descartes nunca tenha empregado o termo nesse sentido específico”[23].

Regra IV. Diz que o método é necessário para a busca da verdade. A equivalência entre evidência e verdade conduz ao estabelecimento de uma disciplina definida como Mathesis universalis. Pareceu a Descartes que “deve haver uma ciência geral que explique tudo o que se pode investigar acerca da ordem e da medida, sem as aplicar a uma matéria especial: esta ciência designa-se” pelo nome de “Mathesis universalis, porque contém tudo o que contribui para que as outras ciências se chamem partes da Mathesis.”[24] As matemáticas, aritmética e geometria, possuem como objeto as quantidades contínuas e discretas, que são tão simples e fáceis de conceber que sequer oferecem resistência à nossa apreensão intelectual delas. Mas esse privilégio não redunda num “monopólio, não precisa ser restrito a um domínio especial”[25]. Descartes quer dizer que a evidência pode ser encontrada em qualquer domínio do conhecimento, não importa o tipo de objeto a ser considerado: números, figuras, astros, sons (nec interesse utrum in numeris vel figuris, vel astris, vel sonis).

Diz Descartes que a Matemática universal foi metodologicamente cultivada por ele, o tanto quanto pôde, antes de passar para as ciências mais elevadas:

                                         Eu, porém, consciente da minha fraqueza, decidi observar pertinazmente na busca do conhecimento das coisas uma ordem tal que, principiando sempre pelos objetos mais simples e mais fáceis, nunca passe a outros sem me parecer que os primeiros nada mais me deixam para desejar. Foi por isso que cultivei até agora, tanto quanto pude, essa Matemática universal, de maneira que julgo poder tratar daqui por diante as ciências mais elevadas, sem a elas prematuramente me aplicar. [26]

 

Regra VIII. “Nada se pode conhecer antes do intelecto, visto que dele depende o conhecimento de tudo o mais, e não o inverso.”[27] E, por outro lado, “nada pode haver aqui de mais útil do que investigar o que é o conhecimento humano e até onde se estende.” [28]. De onde os neokantianos veem uma antecipação da filosofia crítica, que prescreve que “antes de conhecer qualquer um dos objetos aos quais o intelecto está relacionado, deve-se conhecer o próprio intelecto” [29].

Regra XIV. Coloca-se aqui ênfase no papel da imaginação, que, quando representa seu objeto com a ajuda de figuras simples, permite que o intelecto o perceba muito mais distintamente (ita enim longe distinctius ab intellectu percipietur). É exigido assim que “o conhecimento seja limitado de acordo com a representabilidade dos objetos que são ‘imagináveis’, em vez de ser estendido até os noúmenos puros – já que nunca se pode saber se realmente existem objetos na experiência que correspondam a estes” [30].

Apesar de ser um manuscrito inacabado que Descartes não decidiu publicar, as Regulæ são consideradas pelos fundadores da tradição neokantiana: Paul Natorp, Ernest Cassirer e Heinz Heimsoeth, a melhor expressão da filosofia moderna e, por assim dizer, a sua certidão de nascimento. A boa recepção que essa obra teve entre os neokantianos, e a sua leitura feita da perspectiva especificamente criticista, não puderam deixar de exercer forte influência sob a concepção inicial de Husserl da Teoria do Conhecimento como Filosofia Primeira. De fato, basta lembrar que o ponto forte da leitura neokantiana de Descartes foi justamente a exposição do programa e da tarefa da Filosofia Primeira como sendo a “busca e o estabelecimento de um critério geral de verdade.” [31]

A obra de Natorp sobre a teoria do conhecimento de Descartes[32], que ele apresenta como uma pré-história do criticismo, viria exercer influência na concepção de Husserl tanto da teoria do conhecimento quanto da filosofia cartesiana. Para Natorp, a teoria do conhecimento não é uma simples parte da filosofia de Descartes, não é um método, mas trata-se antes do componente fundamental que permite considerar em seu conjunto a doutrina cartesiana. Natorp não quer dizer que Descartes já possuía uma epistemologia no sentido estrito da filosofia transcendental de Kant (ciência da razão ou da verdade), mas que ele já tinha a ideia de uma tal ciência, e que toda sua filosofia comporta uma remissão a essa ideia, embora outras intenções assumidas por Descartes tenham acabado por obscurecê-la. Natorp, porém, acredita que é possível reconhecer a ideia de uma Erkenntnistheorie na filosofia cartesiana e demonstrá-la nos seus aspectos mais decisivos. Assim, ele tenta exprimir a relação entre Descartes e a filosofia crítica, e descreve a filosofia de Descartes como uma pré-história do criticismo[33].

O filósofo Jean-Luc Marion detectou nas Regulae de Descartes um tipo diferente de ontologia que ele chamou, no seu estudo “Sur l'ontologie grise de Descartes”, de “ontologia cinza”. A cor cinzenta dá indicação aqui a um embaçado, à semi-cobertura de um “ser” que encontra-se meramente insinuado em tal ontologia. Marion vê as Regulæ como uma reflexão crítica que Descartes teria reservado a Aristóteles e, de maneira a confirmar essa hipótese, ele esforça-se em demonstrar todo o aporte aristotélico da obra. Na visão que aqui se defende, Descartes não contradiz os conceitos aristotélicos, mas antes os traduz num novo universo conceitual conforme um sutil desvio de assunto. Ele estabelece uma relação crítica com os tópicos dos temas aristotélicos. O conceito de Mathesis universalis, por exemplo, seria assim uma réplica à matemática comum de Aristóteles.

As Regulæ respondem à metafísica aristotélica na forma de uma epistemologia útil e operatória que não aborda os temas metafísicos senão indiretamente, operando sobre eles uma modificação profunda: “a separação das ‘Regulæ’ com o pensamento aristotélico deve-se então, bem mais do que a uma ‘crítica’ dos temas metafísicos, a um seu redobramento e esfacelamento por uma construção de modelos epistemológicos.”[34] O interesse não é mais a natureza usiológica (essencial ou substancial) da coisa e sim a determinação da inteligibilidade (epistemológica) do objeto.   

Deve-se recordar que a unidade da ciência aristotélica devia-se à comum referência à ousia. Ora, as Regulæ não se reportam a uma suposta ordem natural, tudo é reconduzido ao ego, a ciência cartesiana recebe sua unidade do intelecto. A constituição da ordem do conhecimento se perfaz em destituição das categorias do ser, a coisa se “desrealiza” em objeto, há um desmantelamento do eidos em função da construção do objeto.

Sobre a Mathesis universalis, Marion observa que Descartes elimina o ens in quantum ens para colocar no seu lugar todas as primeiras coisas em geral suscetíveis de conhecimento por uma mente que filosofa segundo a ordem. A Mathesis universalis se declina então segundo a ordem, e não mais segundo o ente enquanto ente. Ela designa uma certa ciência que se engendra na universalidade da consideração de tudo o que é cognoscível, independentemente do que seja e independentemente do domínio ôntico a que pertença[35].

A Mathesis resta indiferente à variação de seus objetos. Faz-se abstração de toda matéria, e o que é retido no ente que se ordena (que se conforma) ao intelecto cognoscente é aquilo que ele oferece de ordem e de medida. Assim, com relação ao primado, fica estabelecido que qualquer termo pode valer como primeiro, desde que apresente o máximo possível de simplicidade e de facilidade. O que significa que, nas questões que o intelecto se propõe solucionar, os problemas devem ser resolvidos partindo-se do mais simples, em ordem, até outros problemas mais difíceis e complexos.

 

2.2 As Meditações sobre Filosofia Primeira

As Meditações sobre Filosofia Primeira são constituídas de seis meditações nas quais se busca demonstrar, entre outras coisas, a existência de Deus e a distinção entre alma e corpo (in quibus Dei existentia & animæ a corpore distinctio demonstrantur).

Na Meditação I, segue, entre outras coisas, o argumento de que todas as opiniões que admitimos ao longo da vida, mesmo as crenças mais básicas, podem ser colocadas sob a suspeita de falsidade; desta possibilidade, o argumento faz apelo então ao fato de que todas as crenças são, com efeito, suscetíveis de dúvida.

Assim, nenhuma ciência não é ainda uma ciência rigorosa, absolutamente fundada, pois não está imune ao engano nem isenta de ser colocada em questão. Na apresentação que Husserl faz da primeira meditação de Descartes, ele observa que, se temos a pretensão de atingir uma ciência universal “através de uma edificação absolutamente segura e sistemática”, é preciso “fazer tabula rasa (...) de todo conhecimento aceito até aqui, qualquer que ele seja”, tomando como princípio “nada admitir que não seja tão seguro que não resista absolutamente a não importa qual dúvida concebível.”[36] Ora, se não devemos reconhecer validade a nenhuma esfera que tombe sob o critério da dúvida possível, então o primeiro a desaparecer nesse procedimento é o “universo inteiro (...), a totalidade desse mundo que nos é dado por intermédio de nossa sensibilidade.”[37]

Na Meditação II, segue, entre outras coisas, o relato de como a mente, no uso de sua própria liberdade, decide levar a cabo a operação proposta de estender o alcance da dúvida até onde for possível, na esperança de se deparar com algum limite, isto é, algo que seja, por si mesmo, indubitável, capaz de barrar o caminho à dúvida. A mente se põe, portanto, a remover todas as coisas que admitem, o mínimo que seja, algum motivo de suspeição. Para isso, sua investigação deve prosseguir até onde suceda a ela conhecer algo certo, ou então, caso isso não seja possível, tornar evidente pelo menos que a única certeza é a de que nada há que seja perfeitamente certo. É aqui que ocorre a Descartes que mesmo que o mundo inteiro não passe de ilusão e que seu próprio corpo não exista, nada disso basta para fazer com que eu, que penso, seja capaz de duvidar que sou, porque, para pensar-me como não existindo, a primeira condição é justamente que eu seja. Portanto, o eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeiro toda vez que proferido ou concebido pela mente. Descartes resolve assim o problema do ponto arquimediano – sobre o primeiro dado firme, evidente e indubitável, capaz de resistir ao critério da apoditicidade, ou seja, permanecer intacto após ser submetido a todas as dúvidas concebíveis:

                                         (...) uma coisa é indubitável: justamente o fato que eu duvido, e doravante o fato de que esse mundo me aparece por intermédio de meus sentidos (...)[38]. De fato, na condição de realidade absoluta e indubitável, o sujeito que medita não retém senão a si mesmo enquanto ego puro de suas cogitationes, o qual existe indubitavelmente e não pode ser suprimido mesmo se o mundo inteiro não existisse. Desde então o eu assim reduzido realizará um modo de filosofar solipsista[39].

 

Na Meditação III, segue, entre outras coisas, a regra geral de que “tudo aquilo que percebo muito clara e distintamente é verdadeiro”[40] e ali se introduz o argumento que parece a Descartes o principal dentre os argumentos que depõem a favor da existência de Deus; a saber, “que a ideia que reside em nós de um ente sumamente perfeito possui tanta realidade objetiva, isto é, participa por representação de tantos graus de ser e de perfeição, que não pode ser senão a partir de uma causa sumamente perfeita” (idea entis summe perfecti, quæ in nobis est, tantum habeat realitatis objectivæ, ut non possit non esse a causa summe perfecta).

A ordem que Descartes se propôs seguir nas Meditações é a de começar pelas noções mais básicas, encontradas na mente, para depois passar a outras, decorrentes por necessidade das primeiras. Seguindo essa ordem, o filósofo distribui seus pensamentos por gêneros, distinguindo-os pelo critério da verdade e da falsidade. Os pensamentos que parecem constituir imagens das coisas são denominados ideias: o pensamento de um homem, de uma quimera, do céu, de um anjo, etc. Os pensamentos, por sua vez, que assumem o modo do querer, do negar, do desejar, etc., sempre por referência a algum sujeito (subjectum), são chamados de vontade, afeto, juízo, etc., e constituem certos modos de pensar.

Descartes salienta, a respeito das ideias, que quando são consideradas em si mesmas, sem referência às coisas, não podem ser chamadas propriamente de falsas. A falsidade, além disso, sequer pode ser atribuída à vontade, pois o querer é sempre verdadeiro, mesmo que seja o querer de algo que não existe. Só o juízo, portanto, é suscetível de comportar falsidade, quando reporta a ideia a algo de externo a ela, postulando haver entre ambos uma semelhança ou conformidade. Se me limito a considerar as ideias apenas como certos modos do pensamento, sem reportá-las a outra coisa, elas só poderão, no máximo, dar ensejo a alguma matéria de erro.

As ideias podem ser divididas em: (a) inatas; (b) adventícias; (c) criadas pela imaginação. Algumas ideias, com efeito, não parecem ter sido produzidas por mim, e sim obtidas de certas coisas situadas fora de mim. Outras, no entanto, não parecem ter sido obtidas de outro lugar a não ser do próprio pensamento, conforme sua natureza. Parece, de algum modo, que minha razão foi instruída pela natureza a estimar as ideias obtidas de fora como semelhantes às coisas que elas representam. Um dos motivos para essa crença é que tudo indica que tais ideias não dependem, em absoluto, de nossa vontade para serem como são. Descartes, quando menciona acima que foi instruído pela natureza, está a dizer que foi levado a acreditar naquelas coisas por um impulso espontâneo, e não por uma luz natural – que é aquela que me mostra que, ao duvidar, é necessário que eu seja. Os impulsos naturais, por sua vez, não são tão dignos de confiança, a julgar pela experiência tida com eles no passado.

Apesar de estabelecer que algumas ideias são adventícias, provenientes de fora, Descartes observa que não se trata de uma origem necessária, pois nada impede que haja, assim como acontece com os impulsos espontâneos, alguma faculdade totalmente desconhecida que, atuando em sigilo dentro de nós, produza as ideias que costumamos referir às coisas externas. Descartes faz notar, porém, que mesmo que as ideias adventícias procedam de algo externo à mente, isso não significa, necessariamente, que elas sejam semelhantes às coisas. Parece, pelo contrário, que o mais das vezes há discrepância entre o objeto e sua ideia, como, por exemplo, na que há entre a ideia do sol, recebida pelos sentidos, e a ideia do sol adquirida por noções astronômicas. Enquanto que, na primeira, o sol se apresenta muito pequeno, na outra a mente entende que ele é diversas vezes maior do que a Terra. A ideia, pois, que parece emanar mais diretamente do sol é a que, na verdade, menos se lhe assemelha.

Enquanto que as ideias são apenas modos de pensar, não há entre elas nenhuma diferença. Mas assim que elas passam a reportar-se a algo, então há diferença, visto que uma ideia está a representar uma coisa, outra, outra coisa. Mas, na medida em que as ideias representam substâncias, elas contêm mais realidade objetiva do que aquelas que só representam modos ou acidentes, “ou seja, elas participam por representação de mais graus de ser ou de perfeição” (c’est-à-dire participe par représentation à tant de degrés d’être et de perfection). Daí, sem dúvida que a ideia referente a Deus, que é infinito, possui mais realidade objetiva do que qualquer ideia reportada a alguma substância finita.

Logo, a ideia que reside em nós, de um ente sumamente perfeito, não pode ter sido extraída dos sentidos, nem mesmo ter sido produzida pela mente, pois contém mais realidade objetiva (plus realitatis objectivæ in se continent) do que a mente é capaz de produzir, ela “participa por representação de tantos graus de ser e de perfeição” que sua causa deve possuir, na mesma medida, tanta perfeição quanto há na coisa produzida. Quando fazemos a comparação entre a ideia de Deus e a ideia de uma máquina perfeita que fora, de começo, concebida pela mente de algum artífice, obtemos com isso ilustrar que a ideia de Deus, ao residir em nós, tem tanta perfeição que não pode ter senão Deus ele mesmo como sua causa.

Descartes observa que, do ponto de vista da luz natural, é manifesto que deve haver na causa eficiente e total tantos graus e ordem de perfeição, pelo menos, quanto existe em seu efeito, visto que o efeito só recebe sua realidade da causa. O mesmo grau de ser, portanto, que há no efeito, deve ter existido na causa. Resulta evidente também que nenhum efeito pode ter recebido sua realidade do nada, muito menos a ideia de perfeição pode ter recebido sua realidade de algo menos perfeito que ela própria. Isso é válido tanto para a realidade atual e formal (a ideia como modo do pensamento ou como evento mental), quanto para a realidade objetiva (a ideia que representa alguma coisa).

As ideias, quando tomadas em si mesmas, são apenas modos de pensar, sem representação. Mas na medida em que as ideias representam alguma coisa, deve ter havido, para isso, uma causa formal ou atual. Acrescenta Descartes que toda ideia é uma obra da mente. Portanto, que a ideia tenha realidade formal, segue-se que só pode tê-la recebido da própria mente, na qual as ideias são modos ou feitios do pensamento. Mas que a ideia tenha esta ou aquela realidade objetiva, diferente de outras, deve-o ela certamente a outra causa, e esta última comporta, no mínimo, tanta realidade formal quanto a ideia contém de realidade objetiva. É absurdo então supor que a ideia contenha algo que a causa não contenha, na mesma proporção, porque assim a ideia teria obtido sua realidade objetiva do nada. E embora a ideia, presente no intelecto, seja imperfeita, seguramente que ela não é um nada nem pode ter recebido sua realidade do nada.

Resulta, então, que, pelo menos com relação às causas primeiras e principais, deve ser dito que lhes pertence por natureza o modo de ser formal. É possível admitir que uma ideia atue na geração de outra, no entanto, isso não progride infinitamente, devendo parar, afinal, em uma primeira ideia. A causa desta ideia, por sua vez, surge como uma espécie de arquétipo que contém “formal e efetivamente toda realidade e perfeição que na ideia está contida apenas objetivamente ou por representação” (archetypi, in quo omnis realitas formaliter et en effet contineatur, quæ est in idea tantum objective). As ideias, na medida em que aparecem sob o modo de imagens, podem ser um tanto indigentes ou deficitárias em relação à perfeição das coisas de que foram tiradas. Por outro lado, elas nunca contêm algo maior ou mais perfeito do que essas coisas.

Uma de minhas ideias, por conseguinte, possui tanta realidade objetiva que sou obrigado a concluir que a causa dela não pode estar em mim, nem formal nem eminentemente. De onde se segue, com absoluta necessidade, o fato de que não estou só no mundo, pois a causa dessa última ideia também existe.

Nas Meditações IV, V e VI, Descartes avança a conclusão da Meditação III e obtém com ela demonstrar a existência das coisas corpóreas: “o ensinamento da natureza me informa que as ideias das coisas sensíveis em mim vêm de coisas sensíveis fora de mim; acontece que Deus, a fonte do ensinamento da natureza, não é um enganador; portanto, existem coisas corpóreas fora de mim”[41].

Diz Husserl a respeito de tais argumentos que o ego, depois de instaurar na primeira meditação o modo de filosofar solipsista,

                                         (...) colocar-se-á no encalço das vias que possuem um caráter apodítico, e pelas quais ele poderá reencontrar, em sua interioridade pura, uma exterioridade objetiva. (...) Descartes procede deduzindo de início a existência e a veracidade de Deus, depois, graças a elas, a natureza objetiva, o dualismo das substâncias finitas, em uma palavra, o terreno objetivo da metafísica e das ciências positivas, assim como as próprias ciências. Todas essas inferências se cumprem seguindo, justamente, os princípios imanentes ao ego, que lhe são “inatos”.[42] 

 

Descartes toma a percepção clara e distinta como um critério de aferição daquilo que é verdadeiro. Por conseguinte, a série de demonstrações acima depende da clareza e da distinção do conhecimento do ego cogito e do conhecimento de Deus que não é enganador. No entanto, não é nas Meditações que Descartes define a clareza e a distinção, e sim nos Princípios da Filosofia.

No artigo 45 dos Princípios, Descartes define o conhecimento claro como “aquilo que é manifesto a um espírito atento”. Ver com clareza é concentrar a atenção e exercitá-la no ato mesmo de ver, é dispor os olhos a fitar atentamente os objetos que se apresentam diante deles e divisá-los segundo suas notas características. O conhecimento distinto, por sua vez, é definido como uma apreensão de tal modo precisa, de tal modo circunspecta, que só contempla no objeto aquilo que aparece manifestamente nele, sem nada acrescentar de estranho. A distinção surge de uma firme resolução de manter absolutamente separadas todas as percepções que não estão claramente contidas na percepção imediata do objeto, e de só afirmar como verdadeiro o que é absolutamente reconhecido como tal. Assim, Descartes conclui no artigo 46 que o conhecimento pode ser claro sem ser distinto, mas que ele não pode ser distinto sem ser claro. 

Brentano, em sua Psicologia do Ponto de Vista Empírico, interpreta a noção cartesiana de evidência a partir desses dois artigos dos Princípios. Para ele, a experiência da clara et distincta perceptio, uma vez formalizada nas assim chamadas regras da verdade, supõe, salvo engano, uma aplicação do princípio de não-contradição. Se a visão de Brentano foi certeira, a regra poderia ser então reformulada em termos aristotélicos: o que eu percebo mui clara e distintamente contém a verdade, logo, não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Brentano está convencido de que a conclusão acima pode ser extraída do exemplo que Descartes oferece em seguida para esclarecer a expressão clare et distincte: uma dor violenta sentida por um homem seria clara, mas nem sempre distinta, na medida em que frequentemente o homem “que sente a dor a confundiria com o juízo obscuro que ele emite sobre a natureza da dor.”[43] 

Assim, para Descartes, uma “percepção clara, mas não distinta, seria aquela que não seria clara senão parcialmente”; ao passo que a percepção distinta “não contém em si nada que não seja claro”[44]. Os homens são induzidos ao erro pelo costume que têm de incluir na percepção imediata de uma dor o juízo obscuro (judicium obscurum) que emitem sobre a natureza da dor. A distinção é a única percepção que pode evitar esse erro do juízo, pois, se uma coisa clara para Descartes é o que é perfeitamente consciente, uma coisa distinta “é suficientemente consciente para excluir toda confusão com outra coisa.”[45].

Se a interpretação de Brentano foi certeira, e se houve, da parte de Descartes, uma aplicação do princípio de não-contradição na formulação dos critérios da verdade, então é certo que há um privilégio desse princípio no estabelecimento das distinções metafísicas. Vejamos como se dá esse privilégio. Será lícito afirmar que, para Descartes, toda vez que nós temos uma ideia, nós a remetemos a alguma noção primitiva: substância, número, figura, movimento, pensamento, extensão, etc. Caso nos ocorra a ideia de “figura” ou de “movimento”, e esta ideia seja clara e distinta, ela será imediatamente vinculada à ideia de corpo, de substância extensa. As ideias tornam-se mais claras quanto mais propriedades são reconhecidas como estando verdadeiramente nelas.

Quando, com uma mente atenta, eu exibo o conteúdo de uma ideia clara, esse conteúdo é imediatamente ligado a uma essência, a uma propriedade essencial, ele é remetido à noção comum de “corpo” ou de “pensamento”, que é o seu atributo essencial e que se identifica com a substância (substância extensa ou substância pensante). Existem, porém, outros atributos da substância que não se identificam com ela, mas que lhe são inerentes. Estes são chamados de modos. Na visão clara de uma ideia, os modos podem estar misturados com os atributos essenciais sem se distinguirem deles. A mistura, como sabemos, é uma confusão. Na visão que, além de clara, é distinta, essa confusão não acontece.

Com efeito, quando, com uma mente atenta, eu exibo o conteúdo de uma ideia distinta, esse conteúdo é imediatamente referido a uma essência, só que, nessa exibição, eu separo tudo o que é contraditório com a essência e reporto a ideia apenas à propriedade substancial. A visão distinta afasta tudo o que é contraditório com a essência e só inclui na ideia o que pertence essencialmente a ela. A distinção é, portanto, uma exclusão do que contradiz a ideia.

Nas Meditações, Descartes aplica efetivamente esse método de “exclusão do contraditório” para tornar as ideias cada vez mais claras e distintas. Assim procedendo, ele consegue demonstrar o que define precisamente a alma e o que define precisamente o corpo e a distinção real que há entre ambos:

(I) Com relação à alma, cumpre dizer que a única propriedade que não pode ser separada de mim, sem que eu deixe de existir, é o próprio pensamento. Quando Descartes considera o “ego cogito”, ele percebe que as partes do corpo (braços, pernas, etc.) podem ser amputadas do “eu” sem que ele deixe de ser o que é, e que mesmo os eventos da mente como sentir, imaginar, podem ser retirados do “eu” sem que ele deixe, por isso, de existir. A única propriedade que não pode ser separada do “eu” é justamente o pensamento, é o único atributo que não se lhe mostra contraditório, o único, com efeito, que não pode ser afastado da noção daquilo que sou. Descartes reserva então o título de coisa pensante (res cogitans) para designar esse ente singular, que existe enquanto pensa. Esta res, no entanto, pede uma maior determinação, que lhe vem da noção de substância. Agora que sou capaz de distinguir bem que nada pertence mais essencialmente à minha natureza do que o pensamento, dou-me conta que faculdades como imaginar, sentir, podem ser afastadas de mim sem comprometer em nada minha existência, ao passo que o inverso não pode ser concebido, isto é, a imaginação e o sentir não podem existir sem que haja a substância pensante. Só o pensamento não pode ser separado de mim sem que eu deixe de ser o que sou, logo, a essência da minha alma é ser uma substância pensante.

(II) Com relação ao corpo, cumpre dizer que as coisas que são tocadas, vistas, ouvidas, possuem menos clareza e distinção do que eu mesmo, quando penso nelas. Consideremos um pedaço de cera, diz Descartes: parece não haver nada nele que não seja manifesto, de imediato, à mente. Sua dureza, sua cor, sua temperatura, o ruído que ele faz ao ser golpeado com a mão, etc. Contudo, ao aproximar a cera do fogo, tudo que de evidente havia nela, do ponto de vista dos sentidos, se desfaz, não sobrando senão uma massa desfigurada em nada semelhante à cera. Não obstante, ninguém nega que se trata do mesmo pedaço de cera de antes. Fica claro, assim, que aquilo que constitui a cera, fazendo-a ser concebida como tal pelo entendimento, não se reduz à doçura, nem à fragrância, nem à dureza, nem nada que seja referente aos sentidos. O que resta da cera, depois que removemos as qualidades sensíveis, é unicamente a extensão.

Só a extensão não pode ser separada da cera sem que ela deixe de ser o que é, logo, a extensão é o seu atributo essencial, e ela é uma substância extensa. No entanto, a percepção clara e distinta da cera como extensão não é um ato deixado a cargo da visão, nem do tato, nem da imaginação, nem de nenhum dos órgãos sensoriais. Trata-se – como diz Descartes – de uma inspeção só da mente.

E com isso vemos que as ideias claras e distintas são também independentes dos sentidos, elas são inatas à mente. A propriedade ineliminável da matéria é a extensão, a propriedade ineliminável da alma é o pensamento. As outras propriedades são elimináveis sem que matéria e alma deixem de ser o que são. Semelhantemente, a ideia de Deus é a ideia mais clara e distinta de todas porque nela o atributo essencial da infinitude é reconhecido imediatamente. Ou seja, Deus é infinito, e disso se deduz que suas propriedades são também infinitas: Ele é perfeito (e existir é uma perfeição e Ele não pode não existir), Ele é sumamente poderoso, sumamente bom e não pode ser enganador, etc.

Contudo, o critério da clareza e a distinção, se por um lado me assegura que tudo o que eu percebo clara e distintamente é verdadeiro, por outro lado, ele não me dá garantia de que o conhecimento verdadeiro corresponda a alguma coisa fora de minha mente. Onde ir buscar essa garantia? É aqui que Descartes se vê obrigado a procurar outro princípio que remeta para além do “eu penso”, e onde ele cai numa espécie de círculo epistemológico. Ou seja, ele faz uso do critério da evidência para provar a existência de Deus e faz uso da ideia de Deus para validar o critério da evidência.

 

2.3 O problema do círculo epistemológico

O resumo que fizemos acima contém indicações dos pontos que parecem ser os de maior interesse para o projeto da fenomenologia. Assinala-se, porém, que a dedução que vai da existência e veracidade de Deus até a existência e veracidade da natureza, das substâncias, etc., cai num “círculo epistemológico” que, na visão de Husserl[46], coloca todas as meditações que se seguem a girar em torno de si mesmas sem sair do lugar de onde tinham partido. A saber: que Deus me assegura que as coisas percebidas clara e distintamente são verazes, mas eu só conheço Deus pela ideia clara e distinta que tenho Dele. Husserl vê entre as duas afirmações um vaivém vicioso[47] que impede Descartes de resolver o problema da transcendência: como uma interioridade pura pode atingir uma objetividade transcendente à consciência? Por fim, esse vaivém redunda no fracasso da tentativa de validar a evidência a partir do recurso à veracitas dei. Na parte histórica das lições sobre Filosofia Primeira, Husserl diz a respeito:

Ora, se o “eu puro” em sua consciência tem a experiência sensível de um mundo objetivo e edifica suas ciências por seus atos de conhecimento, em que medida ele não é puramente uma posse imanente de aparições subjetivas e de juízos produzidos subjetivamente em evidências subjetivas? Se é a evidência, se é a intuição da razão que confere aos juízos científicos a preeminência sobre os juízos vagos e cegos da vida cotidiana, nem por isso ela deixa de ser um evento subjetivo da consciência. Que é isto que nos autoriza a atribuir a este caráter subjetivo o valor de critério de uma verdade válida em si, de uma verdade que, para além do vivido subjetivo, pode pretender uma validade? (…) Vemos Descartes aqui tentando demonstrar a legitimidade da evidência e de seu alcance transsubjetivo e ele tomba em círculos viciosos que não tardaram a ser percebidos e que frequentemente foram deplorados. Ele deduz, pouco importa como, da finitude do ego humano puro a existência necessária de Deus – que Deus não poderia nos enganar com o critério de evidência. Desde então é legítimo recorrer a esse critério. E, por ele guiado, Descartes conclui a validade objetiva da matemática e da ciência matemática da natureza, e, portanto, do ser verdadeiro da natureza tal como é conhecido pela ciência.[48]

 

Husserl volta a mencionar o círculo em Filosofia Primeira II, ao tratar da problemática crítica do começo, perguntando-se se ele próprio, por acaso, não está a começar também com um círculo crítico-gnosiológico. Desde então, a ciclofobia “se torna um topos regular na crítica husserliana (…)”[49].

Sabe-se, porém, que a objeção a Descartes de circularidade nas suas provas não é de hoje, ela já havia sido feita por críticos contemporâneos do filósofo como Mersenne, Arnauld e Gassendi. Estes já haviam feito notar na sua época o ciclo vicioso escondido no argumento da garantia mútua da certeza: Deus me assegura que as coisas percebidas clara e distintamente são verazes, mas eu só conheço Deus pela ideia clara e distinta que tenho Dele[50]. Parece então que a crítica “ciclofóbica” de Husserl só repete a mesma objeção: de que as Meditationes não saem do lugar na hora de fornecer a justificação última da veracidade do conhecimento extra mentis.

O quadro crítico no interior do qual Husserl considera a filosofia cartesiana foi de certa forma delineado pela interpretação de Descartes que prevaleceu na França na época de fundação da fenomenologia. A saber, a interpretação do filósofo Martial Guéroult (1891-1976), que vê Descartes como um racionalista de estrita observância. O que essa tradição predominante tem a dizer com relação ao problema do círculo epistemológico? De que modo ela se pronuncia sobre isso, por exemplo, na clássica interpretação de Guéroult, exposta no livro “Descartes segundo a Ordem das Razões”?

Guéroult admite que é impossível chegar a uma solução rigorosa do problema do círculo vicioso, mas ele afirma em seguida que essa impossibilidade permite “precisar a verdadeira natureza do problema”[51]. Como se sabe, a tese de Guéroult parte da carta de Descartes a Mersenne de 24 de dezembro de 1640:

É notável, em tudo o que escrevi, que não sigo a ordem das matérias, mas somente a das razões, isto é, que não pretendo dizer em um mesmo local tudo o que pertence a uma matéria, porque me seria impossível realizar a prova adequadamente, havendo para isso algumas razões que devem ser tiradas de pontos mais distantes do que outras; porém, raciocinando por ordem a facilioribus ad difficiliora, deduzo o que posso, tanto de uma matéria, quanto de outra – o que é, na minha opinião, o verdadeiro caminho para adequadamente encontrar e explicar a verdade. Quanto à ordem das matérias, ela só é boa para aquelas cadeias em que todas as razões estão soltas e podem referir-se tanto a uma dificuldade quanto à outra.

 

Trata-se de um nexus rationum através do qual Descartes recomenda que “as coisas que são propostas como primeiras devam ser consideradas sem a ajuda das seguintes e que as seguintes devam em seguida ser dispostas de tal modo que elas sejam demonstradas apenas pelas coisas que a precedam”[52]. Para isso, Descartes distingue entre ordem sintética e ordem analítica a fim de situar “doutrinas iguais em lugares diferentes”[53]. No Discurso do Método e nas Meditações a ordem é analítica, ao passo que nas Segundas Respostas e nos Princípios a ordem é sintética.

Na ordem sintética, o procedimento consiste em pôr diante dos olhos do leitor os resultados já alcançados na investigação, de modo a fazê-lo compreender num único relance a demonstração. É “a ordem da ratio essendi em que as coisas estão dispostas quanto à dependência real de uma em relação às outras”[54]. Na ordem analítica, por sua vez, o procedimento consiste em ensinar o método pelo qual aquelas mesmas coisas foram inventadas (inventio). A ordem analítica, portanto, é uma ordo inventionis, uma ordem das descobertas. Nas palavras de Guéroult, é uma “ordem da invenção (…) da ratio cognoscendi. Ela se determina segundo as exigências de nossa certeza, ou seja, é o encadeamento dessas certezas que a tornam possível”[55].

As Meditações, na visão de Guéroult, são a obra de Descartes que permitem compreender singularmente o conjunto de sua doutrina, e a apreciação adequada dessa obra, por sua vez, depende da ordem analítica das razões, caso seja evitada a confusão entre ela e a via sintética e seja colocada em evidência a ordem da análise seguida nas seis meditações. As teses metafísicas ali presentes estão ligadas a três grandes problemas: (I) o do “fundamento da verdade”; (II) o dos “limites de nossa inteligência”; (III) o do “fundamento das ciências da natureza[56]. Na abordagem desses três problemas, a trajetória que se estabelece segundo a ordem analítica das razões é a seguinte:

(…) partimos do conhecimento certo do meu eu que, como primeira verdade para o sujeito (Cogito), é para mim o primeiro princípio. Em seguida, graças ao conhecimento desse primeiro princípio, chegamos ao conhecimento da existência de Deus, isto é, o conhecimento de que a ideia de perfeito tem um valor objetivo. Tal conhecimento, por sua vez, torna possível, nos seus respectivos limites, o conhecimento do valor objetivo das ideias claras e distintas, e depois o conhecimento do valor objetivo das ideias obscuras e confusas. Estamos às voltas com uma linha que jamais se inclina, indo sempre do mais simples ao mais complexo, a facilioribus ad difficiliora, e em que Deus é apenas um anel como qualquer outro numa cadeia de conhecimentos. Passa-se, assim, por todas as condições que esgotam gradualmente o conteúdo de minha alma; legitimando a cada condição uma nova espécie de conhecimento, e determinando, por fim, seus limites.[57]

 

Se o Cogito então é posto como verdade primeira, Deus segue-se a ele apenas na quarta posição de acordo com a ordem: (I) cogito; (II) minha existência; (III) a “prioridade da consciência de minha alma sobre o meu corpo.” [58] Assim, os princípios que se constituem como causa primeira mudam conforme a ordem racional que se decide seguir. Na ordem da síntese (ratio essendi), o primeiro princípio é Deus, tal como na Ética de Spinosa. Na ordem da análise (ratio cognoscendi), o primeiro princípio é o eu pensante. Deve ser notado que a ciência filosófica não se ordena conforme uma estrutura aut-aut de alternação entre um ou outro princípio (Cogito e Deus), mas conforme uma estrutura et-et de complementação entre esses princípios:

(…) a ciência filosófica pode e mesmo deve reclamar dois princípios primeiros, sem, contudo, contradizer-se. Não apenas um ou o outro aparecerão como primeiro, segundo o ponto de vista que tomamos, mas um e o outro serão primeiros, pois é necessário se colocar nos dois pontos de vista ao mesmo tempo.[59]

 

A certeza do cogito, porém, não segue sem inconvenientes: trata-se de uma certeza indiscutível de facto, mas nem por isso ela é uma certeza justificada de juris, porque ela encontra um limite na atualidade e na pontualidade do Cogito, quer dizer, ela só é certeza no instante em que o eu pensa em si mesmo. Sua evidência, portanto, não vale mais fora dos limites em que está encerrada: “(...) o Cogito tem uma evidência incontestável no interior dos limites de sua intuição atual, mas ele não a tem mais para além daqueles limites, quando ele é mantido, fora dessa intuição, apenas pela lembrança.”[60]

Assim, o Gênio maligno pode ameaçar a certeza que o próprio eu tem de si mesmo. Diz Guéroult, “assim que me separo do Cogito atualizado para objetivá-lo com relação a mim (…) eu o encontro (…) confrontado com a hipótese ainda válida do Gênio Maligno.”[61] Logo que meu espírito deixa de fixar-se atual e imediatamente sobre o Cogito e dirige-se alhures, “esse ponto é engolido na noite da dúvida universal, arrastando com ele toda a cadeia de razões”[62]. Para o autor, eu sou então forçado a recair na dúvida “em nome do direito, isto é, em nome do princípio do embuste universal”[63]. Surge assim a dificuldade de restaurar a certeza do eu vacilante, que transcorre no tempo indo da percepção pontual e imediata de si mesmo para a ulterior recordação dessa percepção.

É confrontado com esse problema que o Cogito deve então recorrer a uma razão mais alta, que envolverá com toda evidência a refutação da hipótese do demônio enganador. No momento em que a análise se vê constrangida a abandonar o fio condutor que ela obtém do Cogito, surge outro fio condutor obtido da “ideia do perfeito, originalmente presente em nós.”[64] Por aí “se vê que Deus será o anel superior da cadeia de certezas (…) em lugar do Cogito que será concebido somente como seu ponto de partida”[65]. Se for provada a existência necessária de Deus, seguir-se-á como resultado necessário a destruição da hipótese do Deus enganador e, com ela, desmoronará a ficção do Gênio maligno. De uma só vez, a dúvida metafísica que atacava as ideias claras e distintas será abolida e todas estas ideias serão ipso facto reinvestidas do valor objetivo do qual se achavam provisoriamente privadas.

O salto para fora da subjetividade se dá através do princípio da causalidade (a ideia de infinito que em mim reside não pode ter senão uma causa infinita, que não sou eu próprio, que sou finito, mas que só pode ser Deus, que intervém como causa eficiente). O valor objetivo das coisas exteriores, por sua vez, pode ser tirado do princípio da correspondência, que supõe semelhança e conformidade da ideia com seu ideado. O problema: “como provar que é efetivamente semelhante e conforme?” é resolvido, por sua vez, no momento em que se estabelece “que a ideia de Deus em mim é o reflexo, conforme, de uma realidade formal, arquétipo existente fora de mim.”[66]

Para Guéroult, o princípio de causalidade tem um papel predominante na prova, mas ele não se realiza sem o concurso do princípio de correspondência, que com ele se entrelaça. Graças à aplicação legítima dos dois princípios e do entrelaçamento entre eles, “estou seguro, não apenas de que minha ideia é necessariamente produzida pela coisa que ela representa, mas que ela lhe é efetivamente semelhante” [67].

O quadro da ciência será então organizado da seguinte forma:

Do ponto de vista da ratio cognoscendi, da consciência pura, da certeza subjetiva e das necessidades colocadas por meu entendimento, o primeiro princípio será o Cogito. Do ponto de vista da ratio essendi, daquelas mesmas necessidades quando são válidas para as coisas, o primeiro princípio será necessariamente Deus, que “é o único que pode conferir certeza objetiva às minhas ideias.”[68] Desse modo, o Cogito é o primeiro princípio de toda ciência humana possível, ao passo que Deus o é de toda ciência humana válida, transmutando “a veritas rationum em veritas rei (…)”[69].

Mas Deus, na mesma medida em que é princípio das realidades objetivas que constituem o conteúdo dos modos de consciência, revela-se ao mesmo tempo ser o princípio dessa mesma consciência:

Deus, por intermédio da ideia do perfeito, não aparece mais apenas como condição do valor objetivo de minha ciência subjetivamente necessária, mas também como condição direta dessa necessidade subjetiva. Deus não é mais apenas ratio essendi, mas ratio cognoscendi, pois é ele que me faz reconhecer a desigualdade da perfeição do conteúdo de minhas diversas ideias, a imperfeição do meu eu, do conhecimento filosófico do Cogito, quando esse último é posto separadamente, independentemente do conhecimento do perfeito, que é o único capaz de elevar esse Cogito a um conhecimento perfeitamente claro e distinto. Enfim, o conhecimento de Deus modifica o caráter de minha certeza subjetiva, estabilizando a certeza do Cogito por uma certeza de terceira potência. [70]

 

Guéroult demonstra com isso que há “uma união indissolúvel e original na nossa consciência primeira da ideia de mim mesmo como finito e imperfeito e da ideia de Deus como infinito e perfeito.”[71] É neste ponto que surge o que Guéroult chama de paralogismo, de uma violação do princípio cardinal da ordem, pois se “o Cogito serve para provar Deus e Deus para provar o Cogito [72], estamos bem diante de um círculo vicioso.

Diz Guéroult que existem dois meios de resolver o problema: “ou reduzir as duas séries a uma só (…) ou restabelecer a completa independência das duas séries que apenas se entrecruzariam” [73]. A solução número 1 é a assertiva de que o conhecimento do Cogito é completado em Deus:

A passagem a Deus é apenas o acabamento do conhecimento claro e distinto do Cogito que, abrindo-se à plena intuição de Deus que ele encerra implicitamente e que o sustenta, desembaraça-se daquilo que o mantinha em confusão enquanto permanecia separado daquilo, isto é, ignorante daquilo. Há, então, uma só e mesma intuição que se atualiza, um só e mesmo desenvolvimento da luz (…) A intuição da natureza absoluta, única e completa, dá a evidência total e a certeza completa; a evidência limitada e temporal do Cogito (que serve de trampolim e da qual parece inicialmente depender a certeza de Deus) aparece então, ao contrário, como dependente da ratio absoluta que a sustenta e arrancada, pela autossuficiência desta razão, da precariedade temporal. [74]

 

A posse da ideia de perfeição é uma conditio sine qua non para o eu compreender-se como finito, imperfeito, a vacilar no estado de dúvida:

A constatação do meu estado de dúvida e imperfeição, que torna indubitável a certeza da minha existência imperfeita, coaduna-se com duas condições que, tornando essa certeza possível, são, por consequência, tão indubitáveis quanto ela. Essas duas condições são, em primeiro lugar: ‘para pensar, é preciso existir’ e, em segundo, que, para me julgar falível e imperfeito, devo possuir a ideia de perfeição, cuja realidade objetiva, por definição, incomensurável com a realidade formal de meu eu, é irredutível a esta realidade formal. A objetividade do ser perfeito estaria, então, imediatamente contida na necessidade subjetiva-objetiva do juízo concernente à minha existência. [75]

 

A solução número 2, por sua vez, é:

(…) a independência recíproca da série do Cogito e da série de Deus, e seu entrecruzamento num ponto dado. Acha-se uma natureza que se revela à nossa intuição como fundamento que encontra em si mesmo, e não em nós, seu ponto de apoio, como se impondo em mim a despeito de mim, e que testemunha irresistivelmente seu valor objetivo, fazendo-me tocar diretamente no fundo de mim mesmo o Outro que não sou eu mesmo.[76]

 

2.3 A constituição onto-teológica da metafísica de Descartes

Agora, a questão que inevitavelmente se levanta é: em que medida a filosofia de Descartes pode reivindicar o título de metafísica, ou, então, o título de Filosofia Primeira? Metafísica e Filosofia Primeira são idênticas da perspectiva do cartesianismo? Vamos tentar fornecer uma resposta a essas indagações apoiando-nos na visão sustentada por Jean-Luc Marion no seu livro “Sobre o prisma metafísico de Descartes” [77].

A tese de Marion fecha com uma resposta positiva a questão da legitimidade metafísica de Descartes e a validade da própria onto-teologia como determinação fundamental da metafísica. Marion perseguiu por mais de uma década o objetivo de constituir o pensamento cartesiano como uma metafísica plena, e expôs o resultado dessa longa série de investigações na célebre trilogia “Sur l’ontologie grise de Descartes”, “Sur la théologie blanche de Descartes” e “Sur le prisme métaphysique de Descartes”. Os três ensaios correspondem a três disciplinas da tradição cuja relação deve ser neles explicitada e determinada: a ontologia, a teologia e a metafísica, representadas metaforicamente pelas cores e pelo prisma.

Na primeira investigação, sobre a ontologia cinza, Marion debruçou-se sobre a epistemologia “real” e “aparentemente praticada” por Descartes nas Regulae e tentou nela descobrir a figura de uma contra-ontologia. Mais exatamente, de uma ontologia anti-aristotélica, que, uma vez exercida pela mente (l’sprit), autoriza-a a desqualificar a interrogação sobre a οὐσία dos entes e permite reduzi-los, assim, à condição de “objetos”. É então que Marion fez vislumbrar a presença de uma ontologia cartesiana, uma ontologia “cinzenta”, semi-visível, semi-encoberta por uma doutrina da ciência certa e evidente, e nos fez constatar como essa ontologia se desdobrou na instauração da filosofia de Descartes.

Na segunda investigação, sobre a teologia branca, Marion esforçou-se em situar o lugar preciso do “primeiro princípio” e do “ente primordial” (Deus) na filosofia cartesiana, assim como identificar a razão da ambiguidade e da polissemia do conceito a eles correspondente. Marion partiu da visão de que a doutrina cartesiana de 1630 sobre a livre criação das verdades eternas “constitui uma retomada da questão medieval da analogia entis e, ao mesmo tempo, uma transição para a problemática concernente ao fundamento e, assim, ao princípio de razão.”[78].

Na última investigação, sobre o prisma metafísico, Marion reúne o resultado dos dois primeiros ensaios em função da proposta de demonstrar o que ele designa de “figura onto-teológica” do pensamento cartesiano. O termo onto-teologia é extraído de Heidegger, que o extraiu, por sua vez, de Kant, mas isso não significa que Marion assuma uma posição heideggeriana, pois o objetivo não é especular sobre qualquer “fim da metafísica”. Pelo contrário, Marion aplica o modelo onto-teológico sobre o pensamento cartesiano de modo a harmonizar numa mesma lógica os dois entes contemplados pela ontologia e pela teologia.

Mas essa articulação entre a ontologia cinza e a teologia branca, diz Marion, não pode ser operada senão no cruzamento de uma metafísica. Uma metafísica que, segundo ele, é mais antiga do que a ontologia e a teologia juntas e que, antes mesmo de existir como conceito, as teria governado desde a origem. É aqui que Marion introduz a figura do prisma: “a constituição onto-teológica se exerce sobre o pensamento cartesiano e sua evidência própria como um prisma sobre uma luz que ele filtra: ele faz aparecer o espectro metafísico do pensamento cartesiano” [79]. Sob a ótica do prisma, esse espectro deixa-se descobrir mesmo nos textos de aparência não-metafísica do corpus cartesiano.

Assim, conclui Marion, na ontologia de Descartes, há um “nada de ontologia” que se oferece como pressuposto da própria ontologia. Descartes esvazia a ontologia para ocupar-se em fixar as condições de representação e de pensabilidade do ente. O nada de ontologia se marca por três operações constantemente conduzidas: uma eliminação, uma redução e uma postulação. Essas três operações são promovidas pela Mathesis universalis. Eliminar é não levar em conta as figuras categoriais do ens. Reduzir consiste em considerar somente o resíduo da coisa que permanece após a eliminação: uma objetividade minimalizada que se oferece ao olhar como simples, vazia e uniforme. Postular significa evidenciar o ser dos entes como aquilo que admite representação certa e indubitável, o que equivale a existir.

 Na teologia, há a introdução do conceito de causa sui. Conceito radicalmente paradoxal, causa sui supõe uma incompreensibilidade divina (supõe que a mente pode entender Deus, no sentido de tocá-lo[80] de algum modo, mas não pode compreendê-lo, ou seja, abrangê-lo dentro dos limites do pensamento). Marion reinscreve o motivo cartesiano da incompreensibilidade de Deus em uma história metafísica da univocidade do ser. A figura da teologia cartesiana é apresentada como “branca”, neutra, de certo modo uma teologia marcada pela “suspensão” e pela ausência de compromisso com as posições teológicas da tradição, que se furta às posições tradicionais e é como “um cheque em branco” que pode ser preenchido posteriormente com diferentes valores e assinado com diferentes nomes. Nela, a constituição onto-teológica é esboçada, por um lado, pela dualidade do conceito de princípio e, por outro, pela prioridade da cogitatio. No último ensaio, o título não é tingido então por nenhuma cor, pois a onto-teologia identifica-se com o prisma que precede e produz as cores, ela permanece acromática ao mesmo tempo em que se exerce sobre o cinza da ontologia e o branco da teologia e nelas provoca as “cores metafísicas elementares” que atestam a constituição metafísica da filosofia cartesiana[81].

É por esse motivo que Marion, contra todas as aparências, negações e paradoxos presentes no léxico cartesiano, diz não poder renunciar a descobrir, numa análise espectral dos textos, um “estatuto estritamente metafísico” no pensamento de Descartes. Seu objetivo é fechar com uma resposta positiva a questão da legitimidade metafísica de Descartes e a validade da própria onto-teologia como determinação fundamental da metafísica.

Para alcançar a meta proposta, Marion deve antes verificar como a filosofia de Descartes se comporta diante de uma tradição que havia se posicionado de diferentes maneiras quanto à determinação conceitual e histórica do nome da filosofia fundamental e do objeto pertencente a essa filosofia. Tais são os filósofos que surgem no caminho dessa discussão, elencados por Marion: Santo Tomás de Aquino, Pedro da Fonseca, Benedictus Pererius ou Bruno Pereira, Francisco Suarez, Eustache de Saint-Paul, Scipion Dupleix, Abra de Raconis e Rudolf Goglenius.

Face a essa tradição, em que a determinação da Metafísica e da Filosofia Primeira oscila numa tensão entre o estudo do ente primeiro e o estudo do ente enquanto ente, a investigação de Marion se justifica de um ponto de vista histórico e conceitual. Da perspectiva da história, justifica-se pela necessidade de verificar o sentido exato em que se diz que Descartes, antes de Kant, promoveu uma espécie de virada copernicana na metafísica, e, se houve realmente uma virada, há que se ver como ela modificou a própria essência do pensamento metafísico. Da perspectiva do conceito, justifica-se pela necessidade de estimar até que ponto a filosofia de Descartes pode ser dita legitimamente uma metafísica.

A grande dificuldade a ser enfrentada é que o estado dos textos no corpus cartesiano deixa a questão sobre a metafísica indeterminada e, como tal, aberta à discussão. A obra de aparência mais metafísica de Descartes, as Meditationes de prima Philosophia, não é chamada de “metafísica” pelo autor no instante mesmo em que lhe ocorre a preocupação de intitulá-la. Descartes se refere ao livro como “minha Metafísica”, ou “meu escrito de Metafísica”, para logo em seguida dar como sugestão o título de prima Philosophia, e não o título de metafísica, como o pronome possessivo dava a entender. A saber, quando o filósofo francês faz chegar o texto pronto das Meditações ao seu correspondente, o padre Mersenne, ele lhe escreve o seguinte:

                                         Eu enviei desde ontem minha Metafísica ao M. de Zuylichem para que ele vos endereçe; mas ele só o fará em oito dias, já que eu lhe dei esse tempo para a ver. Eu não pus título, mas me parece que o mais próprio será colocar: Renati Descartes Meditationes de Prima Philosophia; pois eu não trato em particular de Deus e da alma, mas em geral de todas as primeiras coisas que se pode conhecer ao filosofar.[82]

 

A expressão “minha Metafísica”, como nota Kambouchner[83], é uma abreviação metonímica que significa evidentemente “meu tratado”, “meu ensaio”, “meu escrito”, “minhas meditações”, e seu uso, sob a pluma de Descartes, equivale ao uso de “minha Física” para se referir ao Tratado do Mundo e às partes II, III e IV dos Principia, ou, então, ao uso de “minha Moral” para se referir a algumas doutrinas esparsas in nuce no escrito As Paixões da Alma. Se a função que o termo cumpre nesse contexto é a de uma simples metonímia, é plausível supor que Descartes o achasse menos apropriado para figurar como título principal da obra.

Portanto, Descartes não reivindica para as suas meditações o título de “metafísicas”. Além disso, o autor emprega o conceito de modo deveras problemático. No livro inteiro, há apenas uma única ocorrência de “metafísica” à maneira de um hapax, além disso, com uma conotação expressamente depreciativa: fala-se na ocasião de uma razão tênue e metafísica de duvidar. Algo que também foi assinalado por Marion, entre outros intérpretes, é que “metafísica” só aparece mesmo na tradução francesa das Meditationes.

Outras ocorrências da palavra, no restante da obra, dão margem a uma série de ambiguidades. Numa carta a Mersenne de 1630, o termo “metafísica” é empregado como um qualificativo e não como um substantivo, o que parece diminuir sua relevância. Neste ínterim, Descartes falava da possibilidade de demonstrar as verdades metafísicas. No Discurso do Método, igualmente, há duas ocorrências na forma de adjetivos. Em carta de 1637, a metafísica é considerada estranha e pouco comum, razão pela qual não pode ser compreendida pela maior parte das pessoas, nem, particularmente, pelos versados nas matemáticas (geometria e aritmética).

Surge, no entanto, a impressão de que estamos diante de uma contradição. Pode-se perguntar, com efeito: ora, não é da alçada da metafísica, justamente, demonstrar a existência de Deus e a distinção entre alma e corpo? A impressão de contrassenso aumenta, além disso, quando verificamos o número de vezes que Descartes insiste em evocar a expressão “minha metafísica” para se referir à sua filosofia. Mas Descartes vai mais longe: na carta que pode servir de prefácio à tradução francesa dos Principia, o filósofo comenta a organização do livro da seguinte maneira:

                                         Eu dividi <o livro dos Princípios da Filosofia> em quatro partes, das quais a primeira contém os princípios do conhecimento, a qual pode ser nomeada a primeira Filosofia ou bem a Metafísica: é porque, a fim de bem entendê-la, vem a propósito ler antes as Meditações que escrevi sobre o mesmo assunto.   

 

Mais adiante, Descartes fixa o lugar que pertence por direito à metafísica no sistema filosófico em que as ciências são organizadas:

                                         (...) a verdadeira filosofia, cuja primeira parte é a Metafísica, que contém os princípios do conhecimento, entre os quais a explicação dos principais atributos de Deus, da imaterialidade de nossas almas, e de todas as noções claras e simples que estão em nós (...). Assim toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a Metafísica, o tronco é a Física e os ramos que saem desse tronco são todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber, a Medicina, a Mecânica e a Moral.

 

Em que sentido o autor emprega “metafísica” para que o conceito esteja sujeito a tamanha indeterminação? Ele desempenha efetivamente o papel de um conceito “técnico” na filosofia de Descartes, ou é usado indiferentemente, como uma palavra entre outras, corrente no vocabulário filosófico da época? Vimos que a noção de metafísica legada pelos medievais e pelos comentadores de Aristóteles (ao oscilar numa tensão entre ontologia, teologia e Filosofia Primeira) não é muito estável para decidir em favor de uma resposta à questão da definição precisa do conceito.

A fim de determinar, então, o modo como a filosofia de Descartes se inscreve no meio dessa tensão, pode-se falar tanto de adesão quanto de ruptura com a tradição. Por um lado, uma adesão terminológica aos termos “metafísica” e “Filosofia Primeira”, que são efetivamente adotados, e, por outro lado, pode-se falar também de uma inversão conceitual no significado desses mesmos termos, o que assinala uma ruptura com o legado do passado.

Tratando em primeiro lugar da adesão, Marion observa que, no esquema da árvore do conhecimento, Descartes tinha em vista menos a imagem da árvore de Porfírio do que o curso de Eustache de Saint-Paul Summa philosophica quadripartita, já citado acima. A influência do jesuíta pode também ser presumida na definição cartesiana de filosofia como “estudo da sabedoria”, que faz de certa maneira um eco ao título Summa Philosophia de Eustache. É consabido que Descartes concebeu os Princípios da Filosofia como um texto escolar de introdução à filosofia e os propôs como uma alternativa aos manuais escolásticos, baseados em Aristóteles.

Mas o objetivo que se coloca em pauta, de substituir Aristóteles nas escolas, não exclui de nenhum modo a organização aristotélica das ciências, antes a retoma. Marion fez notar que o esquema cartesiano das três ciências principais: metafísica, matemática e física, “reproduz o tópico das mesmas três ciências principais segundo Aristóteles”[84], que expõe no livro E da Metafísica o objeto próprio a cada uma delas. Em suma, a relação entre os tópicos aristotélico e cartesiano é assim confirmado:

Aristóteles não submete as matemáticas somente particulares (geometria, aritmética, etc.) à ciência teológica; ele considera nada menos que uma matemática universalmente comum a todas, καθόλου πασών κοινή, logo, uma ciência universal da quantidade e da medida que, sem se confundir com elas, precede e torna possível as ciências comumente ditas matemáticas. Ora, semelhante ciência meta-matemática, em Aristóteles, se antecipa à Mathesis universalis da Regula IV, ao menos nisto que concerne ao parâmetro da medida - aquele da ordem que é própria à empresa cartesiana.[85]

 

Como Marion nota, Descartes adere também, terminologicamente, a um significado específico de metafísica que remonta ao τῶν μετά τα φυσικά aristotélico[86]. Na correspondência de Descartes a Mersenne[87], encontram-se duas caracterizações da metafísica como transgressão. As verdades matemáticas (aritméticas e geométricas), que são nomeadas eternas, dependem completamente de Deus, na medida em que foram estabelecidas por Ele em um gesto criador onipotente e livre (doutrina da livre criação das verdades eternas)[88]. O que equivale a dizer, por outras palavras, que as verdades metafísicas transgridem as verdades matemáticas por criação. Por sua vez, as verdades físicas, na medida em que são extraídas da experiência sensível, permanecem sem fundamento, por isso, devem receber sua racionalidade das verdades metafísicas, que as ultrapassam. Assim a metafísica transgride a física por fundação.

A metafísica elaborada pelos escolásticos opera pela abstração (abstractio) das coisas dotadas de matéria, opera pela separação da forma, tanto na consideração do ente primeiro quanto na consideração do ente enquanto ente. Descartes parece se referir a essa abstração através da expressão “abductio mentis a sensibus” empregada na primeira meditação num contexto em que o objetivo é “pavimentar a via mais fácil para afastar a mente dos sentidos”. A abductio em que a mente é afastada dos sentidos consiste numa transgressão da física, indo para além da sensação e do sensível, assim como numa transgressão da matemática, indo para além da imaginação.

É assim, por conseguinte, que o uso do conceito de metafísica por Descartes parece abrigar o sentido de uma adesão terminológica ao vocabulário escolar. Duas hipóteses candidatam-se a explicar essa adesão terminológica, e ajudam a medir seu alcance. Ou Descartes ter-se-ia visto obrigado a fazer uma concessão ao termo, corrente nas escolas, para adaptar-se ao uso habitual entre os estudantes; ou Descartes, face a seus antecessores e contemporâneos, viu-se confrontado com a questão de uma definição da metafísica e entregou-se então, sem mais, a essa tarefa. Marion aposta nesta última hipótese.

Com ela, anuncia-se a ruptura de Descartes com a tradição a partir da inversão que ele promove no significado dos termos. Ele só vai aceitar o léxico filosófico em vigor sob a condição de que as definições sejam outras, diferentes das tradicionais. Para Marion, Descartes vai tomar duas decisões em favorecimento do título Filosofia Primeira em detrimento do título Metafísica. É esse privilégio concedido ao conceito de prima Philosophia que está exprimido no título latino das Meditações. E o mais próprio que está contido na carta a Mersenne, em que se faz a sugestão do título, assinala justamente a prioridade dada à Filosofia Primeira, que preenche o sentido requerido por esse “mais próprio”.

Com efeito, Marion defende que há uma decisão nítida e constante de Descartes de favorecer o título de Filosofia Primeira em detrimento do de Metafísica. A hipótese que ele se permite levantar é a de que Descartes teria tomado duas decisões em relação à Filosofia Primeira, duas decisões que acabam por transformar a essência da metafísica, assim como a essência do primado. A primeira decisão é a de ver a questão da Filosofia Primeira como mais essencial do que a questão da metafísica. E essa resolução, na visão de Marion, diz respeito à essência da metafísica como tal. A segunda decisão, por sua vez, é a de que o primado conferido à Filosofia Primeira pertence à ordem do conhecimento, não mais à ordem do ente. E o que se segue é que o primeiro cognoscível na ordem do conhecimento é o ego.

A primeira decisão recusa o primado da metafísica como título e como ciência. A segunda decisão remove do sintagma “filosofia primeira” a sua antiga acepção aristotélica para forjar um conceito novo sob o mesmo título. É assim que a ontologia cinzenta se obscurece para abrir o horizonte para a Filosofia Primeira; é assim que a teologia se torna “branca”, como um cheque não-preenchido, não-assinado, para ceder à prima philosophia a assinatura e o protagonismo na investigação dos princípios. Mas isso não significa ausência de ontologia, nem ausência de teologia.

Mas, se é verdade que o privilégio é concedido à Filosofia Primeira às expensas da metafísica, como fica em seguida a relação entre as duas disciplinas? Em que sentido se estabelece, exatamente, a hierarquia entre ambas?

Para Marion, a chave que permite elucidar essa questão encontra-se no pequeno trecho da carta a Mersenne que vem logo depois da sugestão do título. Descartes acha mais próprio “Filosofia Primeira” porque ele não trata “em particular de Deus e da alma, mas em geral de todas as primeiras coisas que se pode conhecer ao filosofar.” Numa outra versão desse fragmento, consta: “pois eu não trato somente de Deus e da alma, mas em geral de todas as primeiras coisas que se pode conhecer ao filosofar por ordem.” Os advérbios particularmente e somente foram grifados aqui de propósito, de modo a neles assinalar o aspecto restritivo que se opõe ao geral: as Meditationes não devem ser reputadas “metafísicas” porque nelas se considera mais coisas do que somente Deus e a alma.

Isso permite explicar por que o subtítulo das Meditações: “in quibus Dei existentia et animae a corpore distinctio demonstratur” não entra em conflito com a negação do título “metafísica” como o mais próprio a batizar o texto.  Não é porque a demonstração respeitante a Deus e à alma esteja ausente das Meditationes que estas não devem receber o título de “metafísicas”, mas simplesmente porque as Meditationes não se esgotam nessa demonstração, não são redutíveis a ela, e se deixam ampliar para um universo mais extenso: o da busca de todas as primeiras coisas suscetíveis de conhecimento.

Portanto, a Filosofia Primeira é mais universal do que a metafísica, e só coincide parcialmente com ela. Para Descartes, Deus e a alma preenchem o campo da metafísica, que se identifica com o da teologia natural, mas a sua decisão pela Filosofia Primeira envolve um alargamento desse campo, de modo a contemplar universalmente as primeiras coisas, não importa quais sejam nem qual seja seu primado. A decisão de Descartes pela Filosofia Primeira anuncia uma decisão pela universalidade. Do mesmo modo como a metafísica caracteriza-se por um ultrapassamento em relação às matemáticas, por criação, e um ultrapassamento da física, por fundação, a Filosofia Primeira caracteriza-se por um ultrapassamento desse próprio ultrapassamento, em direção às coisas mais universais. Como diz Marion[89]: “(...) a filosofia primeira ultrapassa a metafísica estendendo-se a todo primado; assim ela é universal enquanto primeira: basta às ‘coisas’ atestarem-se como ‘primeiras’ para que, imediatamente, a ‘filosofia primeira’ nelas confirme sua universalidade.”

Na medida em que cobre o domínio de Deus e da alma, a Filosofia Primeira coincide em parte com a metafísica, mas ela estende sua consideração para além desse âmbito, tratando das primeiras coisas em geral suscetíveis de conhecimento claro e distinto. Assim, a prima philosophia de Descartes possui absoluta liberdade em relação aos enquadramentos teóricos da metafísica e da teologia, que tratam de Deus e da alma operando por simples abstração. O estilo cartesiano de filosofar é determinado pelo primado conferido à ordem do conhecimento. E o que tem prioridade na ordem cognoscitiva é o conhecimento do ego, que precede tanto o conhecimento de Deus quanto o conhecimento da alma.

Pela força da tradição, Descartes é convidado a pensar a metafísica sob o modelo da teologia, por um lado, e sob o modelo da ontologia, por outro, que lidam com o ente, concebido como primeiro ou como ente enquanto ente. Descartes recusa pensar em termos de ente os princípios da filosofia. Quanto à classificação das ciências, o procedimento cartesiano não é mais conduzido pela hierarquia dos entes, como era entre os escolásticos. Descartes rompe com o modelo de demarcação pela ordem das matérias para instaurar em seu lugar uma classificação “regulada pela ordem de engendramento dos conhecimentos uns pelos outros.” [90] Essa última ordem não deve mais satisfação à dignidade hierárquica dos entes referidos pelo pensamento. O primado que a filosofia reivindica não é mais tomado de empréstimo a certas regiões ônticas, como da teologia ou da ontologia. O ente desaparece, a ordo essendi é retirada de cena para que o interesse filosófico seja dirigido exclusivamente para a ordo cognoscendi.

                                          Nós constatamos que, segundo a letra dos textos cartesianos, a metafísica torna-se filosofia primeira, na medida em que todo ente se encontra nela considerado não, de início, enquanto ele é, mas enquanto conhecido ou cognoscível, de sorte que o primado passa do ente supremo (qualquer que ele seja) à instância do conhecimento (qualquer que ele seja).[91]

 

Marion propõe então a tese de que a Filosofia Primeira de Descartes é estabelecida ao modo de uma protologia da ordem do conhecimento conforme a clareza e a distinção. Há um primado do método, e a prima philosophia chega à universalidade pela consideração da ordem do conhecimento, do conhecimento como disposição e princípio de ordem. De modo que não se fala mais da ciência do ente enquanto tal, mas da disposição na ordem do conhecimento, do conhecimento segundo a ordem da colocação em evidência.

O gesto de dupla decisão, sem ambiguidades, em que Descartes favorece a prima philosophia em prejuízo da metafísica, equivale também a uma mudança essencial na própria metafísica, que não é mais identificada como teologia nem como ontologia. Por um lado, ela não se reduz à teologia racional, mas sem que seja aceito, por outro lado, a sua universalização pelo conceito objetivo de ens. Como se explica Marion, ao falar da decisão de Descartes face à tradição:

                                         No momento preciso em que a metafísica se constitui como uma ciência articulada – escolarmente, mas também fundamentalmente - em uma protologia (teologia e, em anexo, pneumatologia e cosmologia racionais) que ultrapassa uma ontologia universal, Descartes procede inversamente: ele ultrapassa o objeto teológico da metafísica ao recusar também sua empresa ontológica, recorrendo, nos dois casos, somente ao primado da colocação em ordem segundo as exigências do conhecimento certo. Uma prima philosophia intervém, em que prima não indica nem a teologia racional, nem a ciência do campo objetivo do ens, mas a ciência de todas as coisas enquanto dispostas em ordem pelo conhecimento - primeiras enquanto que conhecidas. A metafísica se constitui como uma universal protologia da colocação em evidência[92].

 

O que se conclui, porém, é que a destituição da Metafísica em benefício da Filosofia Primeira só ganha inteligibilidade sob o novo conceito de primado elaborado por Descartes. Ao repercutir tanto sob a Filosofia Primeira quanto sob a Metafísica, o novo primado ensina que, sob a condição da refundação nele operada, os dois termos poderão ser empregados quase indiferentemente. É sob o quadro da protologia universal da colocação em evidência que a equivalência entre Filosofia Primeira e Metafísica é reconquistada.

Marion[93] afirma que com as Meditações ocorre uma passagem do primado epistêmico ao primado ôntico que testemunha de uma continuidade entre os dois momentos do pensamento cartesiano (o momento das Regulae e o das Meditationes) que, longe de se desdobrarem independentemente, remetem um ao outro, combinando-se até mesmo em suas dissimilitudes. E a prima philosophia progride para os entes respeitando o que a ordem parece exigir.

No seu livro As Meditações Metafísicas de Descartes, Kambouchner subscreve a interpretação de Marion, em suas linhas diretrizes, como indiscutível. Mas, com relação a essa interpretação, ele sugere quatro inflexões menores que são as seguintes:

(I) A constituição da philosophia prima não destitui a Metafísica de sua função. Não é que Descartes exclua uma denominação para conservar a outra; antes, ao dar preferência a uma delas em detrimento da outra, o seu gesto implica mais uma simples conotação do que uma denotação.

(II) Que a Filosofia Primeira e a Metafísica sejam ciências de desigual extensão, recobrindo-se só em parte: em tese, isso não significa apenas que o programa das Meditações trate em particular de Deus e da alma junto com outros objetos, mas também que ele não trata de Deus e da alma em todo o detalhe, tal como convém a um tratado propriamente metafísico.

(III) É preciso, sem dúvida, dar razão a Marion quanto ao seguinte: “(...) a identificação integral da filosofia primeira e da metafísica não se torna possível (...) senão sob a base de uma importante mutação conceitual, que se efetuará mais facilmente e mais diretamente sob a primeira denominação do que sob a segunda.”[94] A filosofia primeira é que se torna mais diretamente a ciência das coisas pelas quais o começo é possível; antes da aquisição dela, não há ciência no pleno sentido da palavra. Aos olhos de Descartes, parecerá útil enquadrar ou contrabalancear o privilégio dado à Filosofia Primeira pela indicação de uma maior abertura programática contida no termo. Por ser menos usual nas escolas, este termo evocará não um domínio de objetos, mas uma tarefa que deve ser considerada a mais importante, tendo em vista a dimensão fundacional que ele comporta.

(IV)  A palavra “metafísica” é mais usual, mas “Filosofia Primeira” é sem sombra de dúvida a mais apropriada para designar o modo pelo qual Descartes considera a operação filosófica em geral.

Quanto ao que sejam os princípios de que deve se ocupar a Filosofia Primeira, Descartes lhes identifica com “as primeiras causas”, com “todas as primeiras coisas que um homem pode conhecer”, e lhes atribui expressamente uma primeira propriedade: de serem tão claros e tão evidentes que não se pode duvidar deles: e uma segunda propriedade: a de que, a partir deles, instaura-se a ordem dedutiva da qual depende o conhecimento de todas as outras coisas.

Para Kambouchner[95], é claro que os verdadeiros princípios “se deixam exprimir por uma série de proposições existenciais” concernentes à nossa alma ou pensamento, ao Deus criador e aos corpos, mas essas proposições são descobertas e experimentadas “no curso de uma démarche metódica” e não designadas “a partir de um simples conceito”, pois a numeração dos princípios é “uma tarefa inteiramente contingente em relação à experiência que se pode adquirir deles”, o que nos deixa advertidos para o fato de que, “enquanto experiência, a metafísica de Descartes tem seu lugar para além de todo conceito”.

 

2.4 Propostas de Filosofia Primeira pós-cartesiana

Podem constar da historiografia da Filosofia Primeira pós-cartesiana alguns contemporâneos de Descartes como Clauberg e Rudolf Goclenius. Este último é conhecido por ter inventado o termo “ontologia”, cunhado em grego (οντολογία), em seu célebre Lexicon Philosophicum de 1613[96]. O contexto em que Goclenius parece ter chegado à ideia da ontologia é o de um estudo consagrado à questão da abstração material, distinguida por ele em (i) abstração física, feita a partir da matéria sensível, (ii) abstração matemática ou ontológica (abstractio mathematica seu οντολογική), que parte da matéria intelectual, singular ou universal, segundo a razão, (iii) abstração transnatural, operada tanto segundo a coisa quanto segundo a razão, mas de que são capazes apenas Deus e as inteligências angélicas.

O filósofo, porém, que vai tornar a ontologia uma ciência independente é Christian Wolff (1679-1754). Em Wolff, a Filosofia Primeira encontra-se definida como ontologia no § 1 da obra “Filosofia Primeira ou Ontologia, que contém todos os princípios do conhecimento humano, tratada sob o método científico[97]. A ontologia, por sua vez, define-se aqui como a “ciência do ente em geral” (scientia entis in genere) ou “do ente enquanto ele é ente.” À diferença da Filosofia Primeira de Aristóteles, essa ciência do ente em geral (Wissenschaft vom Seienden überhaupt) pretende estender-se ao domínio o mais universal possível, sem ficar restrita à existência. Com isso, ela oferece uma tentativa de resolução da tensão onto-teológica da metafísica aristotélica, que resta dividida em ontologia e teologia.

Wolff é um filósofo relativamente esquecido, seu nome costuma ser evocado de forma um pouco anedótica como o autor de uma filosofia “dogmática” criticada por Kant. Por isso, julgamos que não seria impertinente de nossa parte, nesta exposição, demorarmo-nos um pouco mais na apresentação em linhas gerais do sistema wolfiano. Sua filosofia preconiza uma divisão entre níveis epistêmicos diferentes. O primeiro nível é chamado por Wolff de história, conhecimento que é produzido pela constatação a partir da experiência comum. O segundo nível epistêmico é o do conhecimento filosófico e toma como princípio máximo do conhecimento humano o princípio de razão suficiente  quando se pergunta pela razão (ratio, Grund) das coisas. O conhecimento, por sua vez, que determina as quantidades das coisas – na medida ou proporção em que elas aumentam ou diminuem – é o da matemática. Esses três domínios encontram-se numa relação não estática, mas dinâmica.

Mas há, contudo, uma nítida diferença de complexidade entre história, filosofia e matemática. Como a história se ocupa do factual, ela depende da informação dada pelos sentidos e não pressupõe assim nenhum conhecimento que lhe seja anterior e que lhe sirva de premissa para a dedução de uma cadeia de provas. A filosofia, portanto, estabelece-se num plano mais elevado do que a história, na medida em que fornece a causa ou razão (Causa sive Ratio) do conhecimento histórico. Mas, como nada é mais importante do que o conhecimento certo, a filosofia somente pode atingir a máxima certeza e alcançar o grau mais elevado possível de conhecimento associando-se à matemática.

Além da definição particular da filosofia como conhecimento da causa, Wolff propõe uma definição geral que a apresenta sob a forma de uma ciência do possível enquanto possível: “Costumo definir a filosofia como a ciência do possível como tal. É tarefa do filósofo, então, não apenas saber o que pode e o que não pode acontecer, mas intuir com perspicácia as razões pelas quais algo pode ou não acontecer”.[98]

O possível se caracteriza pela não-repugnância a existir, ou seja, é determinado logicamente como “o que não envolve nenhuma contradição, ou o que não é impossível.”[99] Assim, o possível é o que se opõe ao nada, aqui definido como “aquilo a que não corresponde nenhum conceito”[100], e que, não pode, por isso, sequer ser pensado. É claro que certas expressões absurdas podem simular um conceito, como, por exemplo, uma “figura delimitada por duas retas”, mas expressões assim não correspondem de modo algum a uma noção concebível, pois o item de contradição nelas verificado repugna deixar-se atualizar em qualquer um dos mundos possíveis.

Wolff divide a filosofia em física (physica), psicologia (psychologia) e teologia geral (theologia generalis) ou teologia natural (theologia naturalis), conforme os três tipos de ser considerados existentes: os corpos materiais, as almas e Deus, criador tanto dos corpos quanto das almas. Mas deve haver uma parte da filosofia que seja reservada àquilo que é comum a todos os seres, tratando do ser em geral e suas afecções: esta é a ontologia ou filosofia primeira, que, exaustivamente, fornece a todas as outras disciplinas as noções gerais (a saber: essência, existência, atributo, modo, necessidade, contingência, lugar, tempo, ordem, simplicidade, composição, etc.). Assim o sistema filosófico pode ser construído a priori, de forma demonstrativa, a partir da ideia de ser, que é inata. No entanto, como além do mundo real-atual outra infinidade de mundos podem ser pensados (mundos possíveis), deve haver ainda uma ciência que explique aquilo que mundo atual e mundos potenciais possuem em comum: disso se encarrega a cosmologia geral (cosmologia generalis).

Identificando-a como primeira, Wolff eleva a ontologia à posição de uma disciplina independente, seguindo o modelo dos manuais metafísicos do século XVIII. Diferente do que acontece em Aristóteles, a Filosofia Primeira de Wolff fornece os princípios e conceitos elementares que formam a base do conhecimento dedutivo, e que permite assim a organização das ciências humanas numa arquitetônica geral.

A fórmula de Wolff, quanto aos princípios, se repete em Baumgarten (1714-1762), na definição da metafísica como “a ciência que contém os primeiros princípios do conhecimento humano.”[101]

O que, por sua vez, volta a aparecer nos escritos pré-críticos de Kant (1724-1804): “Mas a filosofia que contém os primeiros princípios do uso do intelecto puro é a Metafísica.”[102] Convém enquadrar essa afirmação no contexto em que Kant passa da fase pré-crítica para a fase de concepção da Crítica da Razão Pura. O filósofo de Königsberg começa sua carreira filosófica sob profunda influência do sistema elaborado por Wolff e sob profunda impressão deixada pelo ceticismo de Hume.

Por um lado, temos um otimismo epistemológico absoluto que crê reservar para a metafísica um lugar destacado entre as ciências. Wolff esperava que, a partir da determinação legítima dos princípios, da clara definição dos conceitos, do rigor nas demonstrações e da prevenção quanto a saltos temerários, fosse possível à metafísica ser a rainha das filosofias e a primeira de todas as ciências. Wolff busca a perfeição racionalista de seu sistema orientado por um método semelhante ao da matemática. Só que o filósofo, ao empreender essa busca, assume a tarefa sem submeter a uma crítica prévia o instrumento que devia utilizar para tanto, ou seja, sem examinar os limites e possibilidades da própria razão. De onde ele cai num dogmatismo.

Por outro lado, temos um pessimismo epistemológico suscitado pela pretensão, vista como excessiva, do racionalismo. Hume, representante de uma fase cética da filosofia que se segue à fase dogmática de Wolff, desiste da “crença” de que seja possível constituir e justificar uma metafísica conforme o modelo matemático. Os racionalistas tinham tentado identificar a causalidade com um princípio de razão suficiente: nihil est sine ratione, e, assim, conferir a ela o caráter da absoluta necessidade. Hume, opondo-se a isso, busca mostrar que a noção de causa resulta de simples associações psicológicas, sendo resultado de um hábito, e que julgamos a verdade da conexão entre causas e efeitos guiados somente por uma crença, a qual surge da parte sensitiva e não da parte cognitiva da razão. Assim, o fundamento da causalidade reside numa simples crença, a qual aderimos por uma disposição afetiva, cujo caráter é simplesmente subjetivo.

O projeto filosófico de Kant, já despertado do seu sono dogmático e em vista do dilema deixado por Wolff e Hume, cujas posições parecem inconciliáveis, propõe inaugurar uma nova fase da filosofia, a fase crítica, que deve se sobrepor às outras fases, conciliando-as, e preencher as lacunas deixadas pelo dogmatismo racionalista, representado por Wolff, e pelo empirismo cético, representado por Hume. Para isso, Kant deve submeter a julgamento a própria razão, buscando determinar quais são as exigências da razão suscetíveis de serem legitimadas e justificadas, e quais são as pretensões da mesma que não possuem fundamento, devendo ser abandonadas. Como a metafísica deve ser independente do conhecimento empírico, Kant designa para sua crítica a tarefa de determinar a possibilidade, os princípios e a extensão de todo conhecimento a priori. A filosofia desenvolvida na Crítica deverá, portanto, ser transcendental, ou seja, ela deve ocupar-se não tanto com os objetos, mas antes com o modo de os conhecer, em particular, com o modo a priori, independente da experiência. A Crítica coloca-se assim sob a cifra da scientia transcendens de Scotus, restringindo o valor cognitivo das categorias à experiência.  

Kant não propõe ipsis litteris uma “Filosofia Primeira” tal como praticada pela metafísica tradicional, ocupada com as questões “o que é” (ontologia) e “por que é” (teologia), mas ele substitui essas questões por uma atitude que considera “primeira” que é a “atitude crítica” e que reconduz a inquirição sobre a “quididade” e a “primariedade causal” para a inquirição sobre as condições sob as quais um conhecer e um agir são possíveis e se deixam justificar como racionais. É por isso que neokantianos como Natorp puderam considerar que a crítica do conhecimento merece o título de proté philosophia e Eduard von Hartmann julgou-se autorizado a escrever que “a teoria do conhecimento é a verdadeira philosophia prima.[103]

A crítica de Kant opera em três níveis: trata da faculdade da sensibilidade, na “Estética Transcendental”; da faculdade do intelecto, na “Lógica Transcendental”; da faculdade da razão, na “Dialética Transcendental”. Afirma Kant que a intuição não pode esperar obter nada a priori dos objetos se ela se deixar guiar por eles; pelo contrário, é a intuição mesma que deve submeter os objetos à natureza de sua faculdade de conhecer. É a estrutura que reside no próprio sujeito o que torna possível a experiência. Assim, a viragem copernicana da filosofia transcendental exige que sejam buscadas no próprio sujeito as condições de possibilidade do conhecimento, mediante as faculdades aplicadas na sua constituição.

Os objetos assim submetidos não são, porém, as coisas em si, e sim os fenômenos. As duas faculdades que respondem pelo conhecimento dos fenômenos são a sensibilidade e o intelecto. A sensibilidade limita-se a receber aquilo que se apresenta, ela é uma faculdade passiva ou receptiva, mas possui uma forma a priori (tempo e espaço) pela qual os objetos são apresentados, ao passo que o intelecto possui um sistema de categorias a priori (tábua dos juízos) pela qual os objetos são pensados. Tempo, espaço e categorias a priori residem em nós, como formas da intuição, antes mesmo do aparecimento de qualquer objeto e independente deste.

O intelecto, enquanto faculdade ativa do conhecimento, liga sinteticamente os objetos da sensibilidade, convertendo-os em conceitos. O intelecto unifica, sob conceitos, o diverso dado na experiência. Ele unifica a matéria, correspondente à sensação, que é sempre a posteriori, nela aplicando a forma que reside a priori no intelecto. Isso permite que o diverso do fenômeno possa ser ordenado segundo determinadas relações. As representações são assim ordenadas e unificadas de acordo com os conceitos já distribuídos aprioristicamente nas estruturas da subjetividade.

Se o intelecto, pois, pode ser definido como a faculdade de unificar os fenômenos mediante regras, a razão é a faculdade que se volta para as regras do intelecto e unifica-as mediante princípios. A razão, portanto, nunca se dirige diretamente aos objetos da experiência, mas tão-só ao intelecto, a fim de conferir ao diverso dos conhecimentos produzidos por essa faculdade uma máxima unidade a priori, por meio de conceitos. A essa unidade, que é totalmente diferente da unidade do intelecto, podemos reservar o nome de unidade da razão. Esta, enfim, tem um uso lógico, na medida em que busca, por meio do raciocínio, reduzir a diversidade dos conhecimentos do intelecto ao número mínimo de princípios, alcançando assim a unidade suprema capaz de abrangê-los a todos.

O interesse da razão possui um caráter excessivamente especulativo. Kant fala de aparência transcendental, em relação à dialética em que a razão entra consigo mesma, porque ela influi sobre princípios cujo uso nunca se aplica à experiência, mas que nos arrasta totalmente para além do uso empírico das categorias, enganando-nos com a miragem de uma ampliação da extensão do intelecto. Os princípios que transpõem a fronteira de toda experiência possível recebem o nome de princípios transcendentes, para serem diferenciados dos princípios imanentes, cuja aplicação se mantém inteiramente dentro dos limites da experiência. Os conceitos do intelecto têm uso apenas empírico, sendo ele a faculdade das regras, ao passo que os princípios da razão têm uso transcendental, sendo ela a faculdade dos princípios.

O conhecimento da razão, na busca de encontrar, para o conhecimento condicionado do intelecto, o incondicionado capaz de lhe completar a unidade, não permite assim que seu conceito fique confinado nos limites da experiência. O uso da razão, por conseguinte, já não se aplica a nenhuma intuição concreta. Com efeito, no interesse de conhecer, ela abandona tudo ao intelecto, que se refere imediatamente aos objetos da intuição, por meio de sua síntese na imaginação. Assim, a razão conserva para si, unicamente, a totalidade absoluta no uso dos conceitos do intelecto e procura levar, até ao absolutamente incondicionado, a unidade sintética condicionada que é pensada nas categorias.

Os raciocínios da razão progridem para o incondicionado numa série ascendente até chegarem à unidade racional da 1) Psicologia – para o sujeito pensante; da 2) Cosmologia – para o conjunto de todos os fenômenos (mundo);  da 3) Teologia – para a coisa que contém a condição suprema da possibilidade de tudo o que pode ser pensado (o ente de todos os entes). Mas, correspondente a esses três tipos de ideias transcendentes, não podemos ter nenhum objeto no conhecimento. No máximo, podemos obter um conceito problemático, pois a inferência dialética incide, respectivamente: num 1) Paralogismo transcendental, referente ao sujeito; numa 2) Antinomia da razão pura, referente à totalidade absoluta da série de condições; num mero 3) Ideal da razão pura (Deus), referente à unidade sintética absoluta de todas as condições da possibilidade das coisas em geral.

Por conseguinte, a Metafísica dos primeiros princípios do uso do intelecto puro da fase pré-crítica transforma-se numa “metafísica da metafísica” na fase crítica. No seio do sujeito transcendental, a razão designa uma faculdade que brota da natureza humana e é desta que deriva a metaphysica naturalis como um fato fundamentalmente antropológico. As estruturas racionais são primariamente subjetivas e a partir delas se desenha a necessidade “humana” de uma relação com os objetos suprassensíveis. A disciplina elaborada por Kant vai assumir como tarefa principal elucidar a possibilidade, o alcance e os limites da metafísica enquanto disposição natural do sujeito. Tudo isso tem como consequência que a dedução das Ideias transcendentais da razão não pode ser uma dedução objetiva, mas somente subjetiva, uma vez que as estruturas racionais que pertencem ao sujeito não passam de um fato antropológico que não é possível determinar em termos, eles próprios, racionais. Por isso, as “questões supremas e últimas”: “O que eu posso saber? O que eu devo fazer? O que eu posso esperar?” reduzem-se todas à questão “O que é o homem?”

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Dos filósofos propositores de uma “Filosofia Primeira” que aparecem no horizonte filosófico imediato traçado pelo kantismo, pode-se nomear em primeiro lugar Fichte (1762-1814), um dos fundadores do idealismo alemão. Com Fichte acontece uma transposição do idealismo gnosiológico de Kant à dimensão de um idealismo ontológico, feito da radicalização e tradução da epistemologia kantiana em termos ontológicos. Fichte empregou a expressão “Filosofia Primeira”[104] para designar o conjunto de suas exposições fundamentais, que dizem respeito aos princípios de sua Doutrina da Ciência.

De acordo com Luft[105], apesar de, ou pelo fato de que Kant parece não ter visto o problema de encontrar um princípio que sirva de fundamento absoluto ou justificação última para o conhecimento, fez com que a recepção imediata de sua filosofia (mais particularmente, Reinhold e Fichte) abraçasse a meta do estabelecimento de uma Filosofia Primeira. Em Reinhold, essa meta é perseguida na Elementarphilosophie, em Fichte, ela é perseguida no projeto da Wissenschaftlehre.

Em Kant, o eu posiciona o ser no conhecimento como representação (uma re-tomada ativa dos dados passivos da sensibilidade), e seu idealismo, ao mesmo tempo em que concebe o ser como unidade sintética obtida na dinâmica centrípeta que faz convergir todas as representações à apercepção transcendental do eu que acompanha as representações, absorve o ser no conhecer de tal modo que o ser em si resta um dado inalcançável pelo conhecer e, portanto, incognoscível[106]. O idealismo de Fichte vai suprimir essa cisão entre ser em si e ser para nós, o conhecimento põe o ser na medida em que o tem diante de si e o ser nada mais é fora dessa posição. Sob um aspecto, Fichte é fiel à tarefa instaurada por Kant de conduzir a seu termo a dedução de todas as representações a priori a partir de um princípio supremo, mas sob outro, ele leva o idealismo de Kant à sua extrema consequência erradicando as coisas em si como último remanescente de um dogmatismo.

O princípio supremo de Fichte é o Eu que pensa em si mesmo. Este pensar se joga na transição de um pôr a um opor e daí a uma limitação. O primeiro princípio, que é o do Eu que, ao pensar, põe a si mesmo (tese), é seguido por um segundo princípio que é o do Eu que opõe a si um não-eu (antítese). O terceiro princípio, por sua vez, é uma reformulação da síntese kantiana que traz de inovador a proposição de que a síntese entre Eu e não-eu redunda numa mútua delimitação entre ambos. Ficam estabelecidos assim três momentos: o primeiro princípio do Eu autoponente é uma afirmação; o segundo princípio do eu que posiciona o não-eu é uma negação; o terceiro princípio da síntese entre eu e não-eu é uma limitação.    

Pensar, no entanto, é em última análise uma atividade, sua história, que se dá desde o centro absoluto do Eu ponente e autoponente, não é um fato (Tatsache), mas uma “ação” (Tathandlung). É aqui que Fichte propõe que nada há antes do ato e que a gênese se encontra no Eu agente que dá nascimento a todo ser como produto de suas ações. O Eu é o centro do qual irradiam os atos, mas como determinar a atividade egóica em seus justos termos? A partir da base proporcionada pelos três princípios acima, Fichte deduz categorias que lhe permitem explicar tanto a atividade cognoscitiva quanto a atividade moral. A atividade cognoscitiva, de seu lado, recebe fundamento da determinação do Eu pelo não-eu. A atividade prática, por seu turno, recebe fundamento inverso da determinação do não-eu pelo Eu.

O Eu determina o não-eu, o mundo, estabelecendo metas para serem conduzidas sempre à sua mais cabal realização, e estabelecendo sempre outra vez novos limites a serem superados. Cada meta comporta uma teleologia, uma finalidade. No entanto, a cadeia de objetivos, propósitos, tarefas, é uma infinidade que restaria sempre desconectada se os sujeitos humanos não fossem membros de um mundo comum e não encontrassem já despontado nas alturas desse horizonte comum a ideia absoluta de Deus enquanto ordem moral do mundo. No entanto, o fato é que eles possuem esse universo comum e compartilham essa ideia reguladora, e disso resulta a suprema conexão teleológica entre as almas. Se o Eu absoluto de Fichte aparece factualmente como infinidade de “eus” individuais cindidos entre si, suas ações aparentemente isoladas coincidem num ponto, a saber, num impulso ilimitado que anseia por uma satisfação última, e Deus é o único objetivo moral supremo que pode dar satisfação a este anseio, é a única ideia que pode mobilizar teleologicamente a história e unificar os homens numa humanidade ética. O idealismo ontológico de Fichte resolve-se assim num idealismo eminentemente moral.

Como Husserl explica Fichte, “Deus é completamente imanente ao eu absoluto”, este “é absolutamente autônomo” e porta em si “seu Deus como ideia-fim vivificante e orientadora de suas ações, como princípio de sua própria razão autônoma. É a ideia normativa de Deus a base e a causa teleológicas do mundo.”[107]

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Outro filósofo propositor de uma “Filosofia Primeira” que surge no horizonte marcado pelo kantismo, desta vez do lado do empirismo restrito de Kant, é Auguste Comte (1798-1857), fundador da filosofia positivista. Comte fixou ao longo de sua vida o duplo objetivo de fundar, por um lado, uma filosofia positiva e, por outro, uma sociologia positiva, dois projetos que devem andar lado a lado e que são inseparáveis. Comte ministrou diversos cursos consagrados a essa dupla fundação. Assim, na publicação em 1854 do quarto volume do Curso de Política Positiva, o filósofo francês expõe a concepção e o plano de uma Filosofia Primeira.

O êxito das ciências físico-matemáticas da natureza, precipitado pela Revolução científica, levou Comte a interpretar a história como a dinâmica de um progresso constante do conhecimento humano que passa do estado mítico-teológico ao estado metafísico e do estado metafísico ao estado científico, que é o estado positivo, que se estabelece na época moderna e que consiste na culminação última do destino racional da humanidade. Esse desenvolvimento é determinado por uma lei, chamada por Comte de “lei dos três estados”. Estado não significa aqui apenas a situação factual vivida pela sociedade em cada fase, mas significa também o “Estado” político.

A fase científica é vista como o coroamento de todo o processo histórico, nela as visões religiosas e metafísicas são tidas como superadas, são vistas como ficções, e os cientistas, detentores do conhecimento positivo do mundo, devem se tornar os verdadeiros administradores da sociedade. Para Comte, a classe dos especialistas científicos deve tomar o poder político e administrar racionalmente a vida pública, conforme o lema “ordem e progresso”. Ordem, que vem da ideia de organização racional da vida humana, e progresso, que vem da ideia do constante desenvolvimento histórico proporcionado pela razão.

O positivismo é um herdeiro direto do racionalismo iluminista, mas sua ideia de três fases de desenvolvimento repercute, num nível mais imediato, a ideia do desdobramento dialético do espírito de Hegel, com sua tese, antítese e síntese, e repercute ainda, num nível mais profundo, os mitos das “três idades” que recuam mais longe na história: na teologia de Joaquim de Flora, por exemplo, que fala de uma “idade do Pai, uma “idade do Filho” e uma “idade do Espírito Santo”, ou então na mitologia das “idades de ouro, prata e bronze” da antiguidade.

Comte costumava dizer que a ciência tem como principal função a previsão dos acontecimentos futuros para apoderar-se da capacidade de controlá-los e submetê-los aos interesses sociais. Assim, a frase que melhor traduz o espírito positivista é “ver para prever, prever para prover”. O ideal iluminista da razão é convertido por Comte no ideal da tecnocracia, que pode ser entendida como a ideologização política da técnica. O governo (a cracia) não deve mais ser exercido por uma autoridade estatal política, monarquista ou religiosa, e sim pela classe dos especialistas técnicos. A justificativa dessa decisão encontra-se no fato de que só os especialistas possuem o conhecimento positivo, pois, ao atuarem nas diferentes seções do saber (física, química, biologia, economia, psicologia, etc.), tornam-se os únicos capazes de dominar tecnicamente os objetos e dispor das habilidades necessárias para levar a sociedade, através de uma administração racional, a uma ordem e a uma absoluta prosperidade.

A Filosofia Primeira de Comte é vista como resultado de uma evolução, ela ocupa-se do estudo do homem e do mundo, debruçando-se sobre o “conjunto de leis gerais abstratas independentes da natureza dos fenômenos”, enquanto que uma Filosofia Segunda ocupa-se em estudar o “conjunto das leis próprias às diversas ordens de fenômenos, organizados segundo seu grau de complicação crescente, desde a matemática até a moral.”[108] O que significa, exatamente, as leis gerais abstratas e independentes com as quais lida a Filosofia Primeira? A razão abstrata se compõe de duas ordens de elementos, que são as propriedades abstratas propriamente ditas e as leis ou relações que as ligam. A passagem do Estado Metafísico para o Estado Positivo consiste justamente no modo de considerar tais leis abstratas: enquanto que o estado metafísico do entendimento consiste em personificar essas abstrações, que tornam-se então entidades e que desempenham o papel de realidades efetivas, o estado científico consiste precisamente no estabelecimento positivo de tais leis, que passam a ter sua base na observação e que proporcionam a conciliação entre a estabilidade e a mudança, uma vez encontrado o constante na variação.

O que há de propriamente positivo no positivismo de Comte, malgrado as ideologias racionalistas e tecnicistas, a “religião” e a “igreja” positivistas que dele nascem, é a confiança incondicional nos poderes da razão e a ambição, dela resultante, de tornar a filosofia uma verdadeira ciência fundada integralmente na positividade da experiência. É esta, pelo menos, a opinião de Franz Brentano (1838-1917), que deixou-se inspirar pelo espírito positivista em sua Psicologia do Ponto de Vista Empírico, e que assumiu as pretensões gerais do projeto da filosofia como uma ciência de rigor. Mas Brentano ficou muito conhecido também pelo resgate histórico que fez do conceito de “intencionalidade”.

Intencionalidade é um conceito introduzido pelos filósofos escolásticos medievais para elaboração de sua teoria do conhecimento. A palavra vem do latim escolástico “intendere” que significa tender para, dirigir-se para, voltar-se para. O problema epistemológico, que implica entender a intencionalidade da alma humana, é tratado por Santo Tomás de Aquino nas questões 84 até 89 da primeira parte da Suma Teológica. Ali, o filósofo procura descrever e explicar como a alma humana, estando unida ao corpo, consegue conhecer as coisas corporais, que lhe são inferiores. A opinião assumida por Santo Tomás é a de que o ato de conhecimento, realizado pelo intelecto, tende para fora da alma para alcançar os objetos corporais que existem fora dela. Diz ele, com efeito, que “o ato de conhecimento se estende ao que está fora do cognoscente, pois conhecemos também o que está fora de nós.”[109]

Para resolver a questão sobre como o conhecimento é possível e como ele se processa, Santo Tomás de Aquino retoma a doutrina de Aristóteles exposta no tratado De Anima. Para Santo Tomás de Aquino, o sentido recebe as formas sensíveis sem a matéria, ao passo que o intelecto recebe as espécies dos corpos materiais e mutáveis de modo imaterial e imutável, quer dizer, ao modo do intelecto. É dito, portanto, que as espécies imateriais e inteligíveis, por sua própria essência, estão no intelecto, não, porém, de modo material e mutável, e sim conforme o modo do intelecto. O que Santo Tomás ilustra dizendo que “o recebido está no recipiente ao modo do recipiente”[110]. Assim, ele põe-se a explicar como a alma intelige as coisas mediante as espécies, ou seja, por meio da unidade conceitual específica.

Brentano converte o conceito escolástico de intencionalidade num conceito descritivo fundamental de sua psicologia empírica. Apoiado na epistemologia medieva, Brentano distingue os atos psíquicos dos atos físicos caracterizando-os como intencionais:

                                         Todo fenômeno mental é caracterizado por aquilo que os escolásticos da Idade Média chamaram a inexistência intencional (ou mental) de um objeto, e aquilo que podemos chamar, ainda que de forma não completamente não-ambígua, referência a um conteúdo de direção, no sentido de para um objeto (que não deve aqui ser entendido como querendo dizer uma coisa), ou objetividade imanente. Todo o fenômeno mental inclui algo em si como objeto, embora nem todos o façam da mesma maneira. Na representação algo é representado, no juízo algo é afirmado ou negado, no amor amado, no ódio odiado, no desejo desejado, e assim por diante. Esta “in-existência” é uma característica exclusiva dos fenômenos mentais. Nenhum fenômeno físico exibe nada parecido. Poderíamos, portanto, definir os fenômenos mentais, dizendo que eles são aqueles fenômenos que contêm um objeto intencionalmente dentro de si.[111]  

 

Em seus cursos de história da filosofia, Brentano toma emprestado de Comte aquilo que julga conciliável com sua teoria. Assim, ele retém a lei dos três estados de Comte e a aplica à sua própria versão da narrativa histórica. Brentano propõe um modelo geral do desenvolvimento da filosofia que lhe atribui um caráter cíclico de ascensão e queda, de desenvolvimento e decadência. Esse mesmo ciclo histórico se repetiria nas três épocas comumente aceitas pela historiografia: a  antiguidade, a idade média e a modernidade. Nessa repetição, cada ciclo se caracterizaria por quatro etapas consecutivas que se desdobrar-se-iam conforme determinada lógica.[112]

O ponto culminante da primeira fase do ciclo filosófico da antiguidade é Aristóteles, o da filosofia medieval é Santo Tomás, o da modernidade, por sua vez, tem em Bacon, Descartes, Leibniz e Locke suas figuras centrais e é marcado  pelo retorno aos métodos empíricos.

Na primeira fase, o pensamento grego antigo deve passar por um estado teológico e um metafísico antes de sua marcha ascendente propiciar as condições que dão nascimento à obra de um Aristóteles. O teísmo aristotélico não é “metafísico-religioso” no sentido pejorativo do termo, ele deixa-se animar de um espírito científico autêntico e assim concorda com os critérios da investigação positiva. No entanto, o aristotelismo entra em decadência assim que as escolas estoica e epicurista dão ao pensamento uma orientação mais prática, tendo como consequência uma certa banalização dos problemas filosóficos. Isso não significa que Brentano conteste a legitimidade do problema moral, ele sustenta, antes, que o gesto de dar à filosofia a função exclusiva de fornecer regras para a conduta social, absorvendo a filosofia na ética, diminui a força ou a potência da filosofia e gera um certo desequilíbrio entre ela e suas sub-disciplinas filosóficas. Junto com o estoicismo (particularmente, a física estoica), o neoplatonismo também é visto como um outro representante da decadência: ambos parecem voltar às formas de pensamento antigas, em que predominava o hilozoísmo (a tendência a explicar os fenômenos segundo figuras antropomórficas).

Os escolásticos dos séculos onze e treze retomam como ponto de partida o que foi o ponto culminante do passado. No entanto, o contexto de rivalidade entre as ordens dominicanas, representadas por Santo Tomás, e ordens franciscanas, representadas por Duns Scotus, teve como consequência a recaída da investigação positiva em sutilezas metafísicas e a investigação filosófica autônoma acabou abandonada em proveito da doutrina dogmática defendida por tomistas ou scotistas. Esse sutil dogmatismo encontra resistência, de uma parte, do nominalismo de Ockham, e, de outra parte, da filosofia de Mestre Eckhart, que reage ao racionalismo medieval retornando ao misticismo neoplatônico. Ambos representam um novo episódio da decadência.

Do mesmo modo, os tempos modernos conhecem um impulso novo e fecundo do pensamento com Bacon, Descartes, Locke e Leibniz, mas, pela terceira vez, a decadência se produz assim que ao kantismo se segue o idealismo alemão, que distancia de tal modo a filosofia do espírito positivo que ela sofre uma verdadeira deformação no panteísmo de Schelling e Hegel. Brentano coloca Kant na posição de principal protagonista dessa tendência decadente na modernidade. Para ele, o pretenso racionalismo da Crítica revela-se no fim das contas um irracionalismo profundo.

Não faz sentido expor a filosofia de Brentano como uma espécie de escolasticismo perdido no século XIX. Se ela é estranha à Weltanschauung que assume o centro da cultura europeia nesse século não é porque pretenda se oferecer como um programa filosófico refratário ao giro epistemológico moderno, e sim porque, por um lado, conserva o programa moderno em sua versão pré-kantiana e, por outro, reata os debates próprios à ontologia clássica, com particular enfoque em Aristóteles, o que tem como interessante consequência uma reunião entre empirismo e metafísica.

Para Brentano, não se trata de um defeito do programa de Locke aquilo que conduziu seu realismo ao fenomenismo de Berkeley e deste ao ceticismo de Hume, essa decaída seria, antes, pura consequência de erros na realização do programa científico traçado de início pelo empirismo lockiano. Aqui se encontra o grande equívoco de Kant, que supõe tratar-se de uma fatalidade do devir filosófico moderno o que não é em si mesmo senão uma deriva acidental e, portanto, contingente. O retorno a Aristóteles e Santo Tomás, bem como a Descartes e a Leibniz, é uma iniciativa capaz de corrigir o programa de Locke nas principais carências de que este se ressente. Volver a Aristóteles, principalmente, significa revitalizar o projeto filosófico moderno.

Quanto à interpretação da Filosofia Primeira, cumpre dizer que Brentano, em seu estudo dos quatro tipos de ser em Aristóteles (sentido substancial, sentido categorial, sentido lógico e sentido de potência e ato), deu particular primado ao ser categorial e, dentre as categorias, a de substância é colocada por ele na posição de primeira. A Filosofia Primeira em Aristóteles seria assim a investigação dos princípios e causas da substância. Com efeito, a conclusão do estudo de Brentano diz:

                                         Dentre os quatro significados de ὄν em que este se distribuiu inicialmente, o mais nobre resultou ser o ὄν que se divide segundo as figuras das categorias (...) todas se denominam assim em referência a um ser, em referência ao ser da primeira categoria – e as restantes devem antes denominar-se de um ente que ente em si mesmas. Disso resulta, pois, que a substância é o ente por antonomásia, que não somente é, mas é em termos absolutos. E embora do “primeiro” se fale também em múltiplos sentidos, a substância é a primeira de todos os entes em todos os sentidos, tanto segundo o conceito quanto segundo o conhecimento e segundo o tempo. Seu ser é o termo a respeito do qual todos os demais se dizem em analogia, como a saúde é o termo em referência ao qual todo são se denomina são, seja porque a põe, a produz, a mostra, etc. Assim, a metafísica é a ciência do ente enquanto tal, resultando então claro que seu objeto principal é a substância. Pois, em todos os casos de analogias semelhantes, a ciência trata fundamentalmente do primeiro analogado, do que dependem e recebem seu nome todos os demais. O filósofo primeiro deve, portanto, investigar os princípios e causas da substância. Dela deve, sobretudo, em primeiro lugar e, por assim dizer, exclusivamente, considerar que seja.[113]

 

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Edmund Husserl. Filosofia Primeira não é metafísica, mas uma teoria da razão. Desde que Husserl, por algum motivo, não quis publicar os manuscritos de Ideen II, planejou outro trabalho fundamental na fenomenologia que o levou a essas lições sobre "Filosofia Primeira", que quer dizer filosofia que deriva sua justificação de uma evidência última. Isso o leva na primeira parte a realizar uma consideração da gênese histórica e desenvolvimento da ideia da filosofia. As lições começam com a ideia da dialética platônica, movem-se para as concepções aristotélicas e estoicas de uma lógica da consistência com um excurso para sua própria ideia da ontologia formal e da "lógica da verdade", então vão para os começos de uma ciência da subjetividade em Descartes, seguidos de uma longa discussão do empirismo britânico de seu próprio ponto de vista, isto é, como uma antecipação da fenomenologia constitutiva, finalmente terminando com a monadologia de Leibniz e a crítica kantiana da razão. Descartes é reconhecido como o inaugurador da ideia de fundar todo conhecimento na imanência pura do ego cogito, mas Descartes não foi capaz de tematizar o ego cogito como um campo de experiência transcendental e como o domínio de uma ciência descritiva. Semelhantemente, Leibniz é interpretado como tendo chegado perto da ideia de uma ciência da pura essência de um ego como o sujeito de uma vida de consciência - uma ciência a priori de verdades necessárias. Em sua consideração, Husserl coloca Leibniz mais alto do que Kant. A KrV de Kant faz a seu ver uma série de descobertas de grande importância, mas se interrompe bem quando estava perto de chegar à ideia de uma ciência fundacional da subjetividade transcendental que pertence ao seu "procedimento metodologicamente regressivo" e uma concepção mítica das faculdades transcendentais. Esta parte histórica da Erste Philosophie é considerada uma introdução à fenomenologia transcendental, baseada numa história das Ideias.

A segunda e sistemática parte das lições desenvolve uma teoria da redução fenomenológica. Aqui a ideia da filosofia transcendental é executada em uma maneira que tenta ser muito mais radical do que Ideias. O ponto de partida cartesiano do mero "Eu sou" é tomado como cheio de pressuposições, como também da certeza sobre a existência do mundo. Ambas as certezas são sujeitas ao criticismo, e Husserl prefere começar com "Eu, como filósofo que começa". O método da redução é então buscado ser livre do clamor pela apoditicidade do autoconhecimento transcendental, e redução transcendental é distinguida daquilo que é chamado "redução apodítica". Nesse sentido, a redução transcendental não pretenderá chegar em verdades apodíticas. A via cartesiana de Ideias I, enquanto requer "uma ascensão imediata à atitude fenomenológica", é deixada de lado em favor de uma segunda via - a fenomenológica-psicológica - onde todo ato particular, cada um com seu próprio clamor pela validade, é separadamente sujeito à epoché. Essa via tem a vantagem que parece abrir uma via da vida natural da consciência para a transcendental. Mas o que ela faz? Como pode alguém alcançar o transcendental quando um clamor de validade tem sido deixado fora do escopo da epoché? Como pode essa aplicação da epoché, em relação a cada ato separadamente, construir a totalidade da vida transcendental? De forma a mostrar isso, Husserl faz uso das ideias de implicação intencional, horizonte (interno e externo) e o horizonte de validade (Geltungshorizont). Isso o conduz à tese que todo ato intencional implica uma vida fluente intencional e o "horizonte do presente vivo". Isso torna possível extensão da redução ato-a-ato a uma epoché universal. Mas não desejando comprometer na radicalidade de sua reflexão, Husserl continua a sugerir a necessidade de uma "crítica apodítica da experiência transcendental", porque há, ele nos diz, uma ingenuidade transcendental assim como há uma ingenuidade natural. Tal crítica vai justificar o clamor que não somente alguém precisa reforçar a redução, mas precisa-se também ter "uma fenomenologia da redução fenomenológica" - portanto, conflitando a pretensão de Eugen Fink que a redução, para Husserl, mantém-se somente como um conceito operativo que nunca é tematizado.

Há outra importante ideia nessas lições que parte de Ideias I em um respeito significativo. Se Ideias I contém somente descrições eidéticas, e o transcendental foi tomado também como eidético (mesmo se o contrário não é verdadeiro), então Husserl não falaria agora também de "experiência transcendental" (de "Empiria transcendental"), então que uma ciência transcendental de fatos (ao invés de essências) é tido por ser possível. Tal concepção faria a tese, frequentemente asserida por ele, de um paralelismo entre o empírico e o transcendental mais inteligível.



[1] MANSION, Auguste. Philosophie première, philosophie seconde et métaphysique chez Aristote. In: Revue Philosophique de Louvain. Troisième série, tome 56, n°50, 1958. pp. 165-221.

[2] Ibid., p. 166.

[3] Ibid., p. 168.

[4] Ibid., p. 177.

[5] Aristóteles Metafísica. E, 1, 1026 a 24-26. In: REALE, Giovanni. Metafisica: texto grego com tradução ao lado. Edição brasileira de Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 273. A propósito, Jean-Luc Marion diz a respeito dessa “καθόλου πασών κοινή” que se trata de “uma ciência universal da quantidade e da medida que, sem se confundir com elas, precede e torna possível as ciências comumente ditas matemáticas (MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, p. 21).

[6] REALE, Giovanni. Metafisica: Ensaio Introdutório. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2001.

[7] Nesta exposição sobre Scotus, ficamos em dívida para com o professor Roberto Hoffmeister Pich e sua conferência “Scotus, a metafisica dos transcendentais e o caminho para a metafisica moderna” ministrada na XXIII Semana de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia. Nosso texto foi construído em cima das anotações feitas da fala do professor mais a consulta a textos originais de Scotus e de intérpretes da filosofia scotista.

[8] Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristoteles. In: Opera philosophica, 5 vol. Ed. G. J. Etzkorn et al. New York: Franciscan Institute of the St. Bonaventure University, 1997, n. 18, p. 9.

[9] 1950 sq Ordinatio, I-II. Opera Omnia, studio et cura commissionis scotisticae. Ed. C. Balic, Vaticano, Typis Polyglottis Vaticanis.

[10] “Sub qua ratione definiri potest metaphysicam esse scientiam quae ens, in quantum ens, seu in quantum abstrahit secundum esse, contemplatur.” Disputationes Metaphysicae, I, s. 3, n. I. Apud MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, p. 2. 

[11] Ibid., p. 43.

[12] Abstrahit enim haec scientia de sensibilibus seu materialibus rebus (quae physice dicuntur, quoniam in eis naturalis philosophia versatur) et res divinas et materia separatas et communes rationes rationes entis, quae absque materia existere possunt, contemplatur: et ideo metaphysica dicta est, quasi post physicam seu ultra physicam constituta. Disputationes Metaphysicae, I, Proemium, t. 25, p. 2.

[13] Para mais detalhes, cf. COURTINE, J.-F. Suarez et le système de la métaphysique. PUF: 1990. E também COUJOU, J.-F. Suarez et la refondation de la métaphysique comme ontologie. Louvain: Peeters, 1999.

[14] CRAPULLI, Giovanni. La ‘scientia mathematica communis’ in analogia alla ‘prima philosophia’ secondo B. Pereira. In: Mathesis Universalis: Genesi di un'idea nel XVI secolo. Roma: Edizioni dell'Ateneo, 1969, pp. 93-94.

[15] (…) de praedicatis caussisque omnium primis et generalissimis, hoc est de transcendentibus et inteliigentiis

[16] “Est concors sententia omnium Metaphysicam dignitate antecellere reliquis disciplinis propter summam nobilitatem earum rerum, quas tractat; agit enim de Deo & intelligentiis; quapropter vocatur prima Philosophia, Metaphysica, Sapientia, Theologia hoc est scientia Dei; vel quoniam hanc proprie solus Deus habet, vel quia haec sola continet scientiam rerum diuinarum". Pereira 1585, 33. Pereira 1585. Benedictii Pererii Societatis Iesu De communibus omnium rerum naturalium principiis et affectionibus libri quindecim qui plurimum conferunt, ad eos octo libros Aristotelis, qui de Physico auditu inscribuntur, intelligendos. Adiecti sunt huic operi tres indices, vnus capitum singulorum librorum; Alter Quaestionum; Tertius rerum. Omnia vero in hac quarta editione denuo sunt diligentius recognita, et emendata. Cum privilegio, et facultate superiorum. Romae. Ex officina Iacobi Tornerii, et Iacobi Biricchiae. MDLXXXV.

[17]  Ibid. “Secundum locum dignitatis obtinet Physica; extremum autem doctrina Mathematicae; etenim Physicus disserit de substantiis & corporibus naturalibus...”; “Mathematicae autem disciplinae in sola cognitione accidentium occupantur; agunt enim de quantitate, & his quae in quantitate insunt affectionibus...”.

[18] Pereira 1585, 34: “Certitudo autem scientiae duplex est; vna spectatur ex firmitate ac immutabilitate rerum quae docentur, eaque tantum maior est quanto res quae cadunt sub scientiam, sunt magis immateriales et expertes potentiae; quo fit vt Metaphysica maxime certa hoc nomine censeri debeat; propterea quod agit de rebus diuinis quae a materiae, potentiaeque concretione penitus segregatae omni ex parte immutabiles sempiterno aeuo perseuerant...”; “Altera certitudo scientiae nascitur ex ui firmitateque rationum ac demonstrationum, quibus nititur scientia, quarum maior copia est in aliis scientiis quam in Metaphysica, propter summam difficultatem earum rerum quas tractat...”.

[19] Pereira 1585, 34: “Si autem Physicam cum Mathematicis disciplinis conferamus secundum certitudinem comperiemus doctrinas Mathematicas certiores esse quam Physicam tribus de causis...”

[20] Bacon e Hobbes são, em geral, considerados pelos historiadores da filosofia como autores modernos, mas optamos por incluí-los na seção intitulada De Aristóteles à escolástica tardia não apenas pelo fato de que Bacon foi contemporâneo de escolásticos como Suarez, mas também pelo fato de que os dois estavam inseridos num contexto nominalista, por influência da tradição inglesa tardio-escolástica, e são representantes-mor de um anti-aristotelismo que foi se engendrando no interior do aristotelismo da época, do que decorre que sua proposta de uma nova Philosophia Prima (Novum Organum em oposição ao Organum aristotélico) traz, sem dúvida, ao nosso ver, a marca de elementos enraizados na escola aristotélica.

[21] OLIVO, Gilles. “L'évidence en règle: Descartes, Husserl et la question de la Mathesis Universalis.” Les Études Philosophiques, no. 1/2, 1996, pp. 189–221. JSTOR, www.jstor.org/stable/20849012. Accessed 15 June 2021.

[22] “Per methodum autem intelligo regulas certas et faciles, quas quicumque exacte servaverit, nihil unquam falsum pro vero supponet, et nullo mentis conatu inutiliter comsupto, sed gratiam semper augendo scientiam, pervenit ad veram cognitionem eorum omnium quorum erit capax.” (DESCARTES, René. Regras para a direção do espírito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições Setenta, p. 8).

[23] MEHL, Édouard. Phenomenology and the Cartesian Tradition. In: The Routledge Handbook of Phenomenology and Phenomenological Philosophy, 2020, p. 66.

[24] “(...) ac proinde generalem quandam esse debere scientiam, quæ id omne explicet, quod circa ordinem et mensuram nulli speciali materiæ addicta quæri potest (…) Mathesim universalem nominari, quoniam in hac continentur illud omne, propter quod aliæ scientiae et Mathematicæ appelantur. (DESCARTES, René. Regras para a direção do espírito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições Setenta, pp. 11-12).

[25] MEHL, Édouard. Op. Cit., p. 66.

[26] “At ego tenuitatis meae conscius talem ordinem in cognitione rerum quaerenda pertinaciter observare statui, ut semper a simplicissimis et facillimis exorsus, nunquam ad alia pergam, donec in istis nihil ulterius optandum superesse videatur; quapropter hanc Mathesim universalem, quantum in me fuit, hactenus excolui, adeo ut deinceps me posse existimem paulo altiores scientias non praematura diligentia tractare.” (DESCARTES, René. Regras para a direção do espírito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições Setenta, p. 12).

[27] (...) nihil prius cognosci posse quam intellectum, cum ab hoc cæterorum omnium cognitio dependeat et non contra.” (DESCARTES, René. Ibid., p. 23).

[28](...) At vero nihil hic utilius quæri potest, quam quid sit humana cognitio et quo usque extendatur” (DESCARTES, René. Ibid., p. 23).

[29] MEHL, Édouard. Op. Cit., p. 66.

[30] MEHL, Édouard. Op. Cit., p. 66.

[31] MEHL, Édouard. Op. Cit., p. 66.

[32] NATORP, Paul. Descartes’ Erkenntnisstheorie. Eine Studie zur Vorgeschichte des Kriticismus. Marburg: N. G. Elwert’sche Verlagsbuchhandlung, 1882.

[33] Veja-se o programa anunciado por Natorp já no prefácio do livro: Der Titel der vorliegenden Schrift bedarf einer doppelten Erläuterung. Dieselbe behandelt die Erkenntnisstheorie Descartes’: damit ist erstens nicht ein bestimmter Theil seiner Philosophie gemeint, etwa die ‘Methode’; sondern es soll seine ganze Lehre, nur unter dem Einen Gesichtspunkt des Erkenntnissproblems, erwogen werden. Zweitens will der Titel nicht besagen, dass bei Descartes eine Erkenntnistheorie, im strengen Sinne der Transscendentalphilosophie Kants, d. h. einer festsgegründeten Wissenschaft der Vernunft oder der Wahrheit, in der Tat vorliege, wohl aber, dass er die Idee einer solchen Wissenschaft gesfasst, und dass seine ganz Philosophie auf diese Idee eine zwar vielfach durch anderweitige Absichten verdunkelte, in den entscheidenden Punkten aber doch sehr kenntliche und bestimmt nachweisbare Beziehung hat. Beides, die Verwandtschaft Descartes’ mit der kritischen Philosophie in der Grundidee und die Unvollkommenheit in der Durchführung dieser Idee suchte ich damit auszudrücken, dass ich diese Arbeit als eine Studie zur Vorgeschichte des Kriticismus bezeichnete.“ (NATORP, Paul. Ibid., p. III).

[34] MARION, Jean-Luc. Sur l'ontologie grise de Descartes. Science cartésienne et savoir aristotélicien dans les « Regulae ». Paris: Vrin, 1975, p. 181.

[35] É clara aqui a polêmica instaurada contra a afirmação de Ética a Nicômaco (1094 b1 10-25), citada na primeira seção do capítulo anterior, dedicada a Aristóteles.

[36] Hua VII. Lição 10, p. 64 (trad. fr. 90).

[37] Ibid., p. 64 (trad. fr. 90).

[38] Hua VII. Lição 10, p. 64 (trad. fr. 90).

[39] Hua I. Introdução, § I, p. 3.

[40] “(...) illud omne esse verum, quod ualde clare et distincte percipio.” DESCARTES, René. Meditações sobre Filosofia Primeira. Tradução de Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 71. Eis outras diferentes versões da regra geral espalhadas pela obra cartesiana: a) Omne id, quod valde dilucide et distincte percipio, verum est. b) Probatur, ea omnia, quae clare et distincte percipimus, vera esse. c) Scio, me in illis, quae perspicue intelligo, falli non posse. d) Quamdiu aliquid valde clare et distincte percipio, non possum non credere verum esse. e) Illia omnia, quae clare et distincte percipio, necessario sunt vera. f) Nihil potest clare et distincte percipi, quod non sit tale, quale percipiatur, hoc est, quod non sit verum.

[41] HEFFERNAN, George. An Essay in Epistemic Kuklophobia: Husserl’s Critique of Descartes’ Conception of Evidence. Netherlands: Kluwer Academic Publishers, pp. 89–140, 1997, p. 93.

[42] Hua I, Introdução, § I, p. 3.

[43] BRENTANO, Franz. Psychologie du Point de Vue Empirique. Traduction et préface de Maurice de Gandillac. Paris: Aubier, Éditions Montaigne, 1944, p. 373.

[44] Ibid. p. 374.

[45] Ibid. p. 374.

[46] Hefferman (op. cit., p. 90) classifica em três grupos os textos que envolvem a crítica de Husserl da posição de Descartes sobre a evidência: I. Os textos de menor importância, em que se fala de evidência, mas sem referência a Descartes: A Filosofia da Aritmética (1891); Estudos sobre Aritmética e Geometria (1886-1901); Fantasia, Consciência Pictórica (1898-1925); Sobre a Fenomenologia da Intersubjetividade (1905-1935); Coisa e Espaço (1907); Análise das Sínteses Passivas (1918-1926). II. Os textos de maior importância, que são os três trabalhos principais de Husserl em que prevalece a teoria do conhecimento: o precoce “Investigações Lógicas” (1900/01-1913/21), o médio “Ideias para uma fenomenologia pura e para uma Filosofia Fenomenológica” (1913) e o tardio “Lógica Formal e Lógica Transcendental” (1929). III. Um terceiro grupo de textos, que não tem o mesmo peso dos textos do grupo II, mas que estabelece uma ligação entre estes últimos: a “Ideia da Fenomenologia” (1907), que liga as Investigações e as Ideias; “Filosofia Primeira” (1923/24), que conecta Ideias I à Lógica Formal e Transcendental.

[47] O problema do círculo é um problema clássico na filosofia. No diálogo Mênon, Platão formula o dilema de que todo conhecimento é circular porque, por um lado, não pode haver conhecimento a não ser que exista um conhecimento do próprio conhecimento, e, por outro lado, não pode haver conhecimento do conhecimento a não ser que exista conhecimento. Parece que o conhecimento está condenado por sua própria natureza circular a cair numa regressão ao infinito, e essa consequência absurda coloca em xeque a própria possibilidade de adquirir e fundamentar o conhecimento. A aporia é dirigida a Sócrates na parte 80 d. do diálogo: “de que modo procurarás, Sócrates, aquilo que não sabes absolutamente o que é? Pois procurarás propondo-te que tipo de coisa, entre as coisas que não conheces? Ou, ainda que, no melhor dos casos, a encontres, como saberás que isso que encontraste é aquilo que não conhecias?” A tentativa de Sócrates de sair da aporia é feita pela teoria da reminiscência, que concebe o conhecimento como reconhecimento. Em suma, conhecer é reconhecer. Para Platão, a alma é imortal e carrega em si ideias inatas, ideias que, por sua vez, participam das formas eternas que já foram contempladas uma vez antes do seu nascimento e que foram esquecidas, assim que a alma encarnou no corpo. A alma então, quando conhece, recorda-se da visão daquelas formas eternas (teoria da reminiscência), na medida em que a memória é despertada pela visão das coisas sensíveis. O inatismo das ideias é demonstrado por Sócrates do seguinte modo: o filósofo leva um jovem escravo de Mênon que nunca estudou geometria a resolver o problema clássico: “qual o lado do quadrado de área dupla?”. O jovem resolve o problema respondendo às várias perguntas que Sócrates dirige a ele. Assim, Sócrates defende que a alma, para se recordar das formas eternas que já foram uma vez contempladas, deve ser estimulada pelo exercício da dialética ou maiêutica. Nos Segundos Analíticos, Aristóteles discute duas posições que dizem respeito à possibilidade do conhecimento científico: a posição dos agnósticos (expressão de Barnes) e a posição dos que defendem demonstrações circulares. Os agnósticos põem em xeque a possibilidade da ciência afirmando que toda demonstração acaba num regresso ao infinito. Os que defendem demonstrações circulares reagem aos agnósticos afirmando que é possível fazer demonstrações “em círculo”, de modo que as premissas figurem também como conclusões, sendo, por conseguinte, também demonstradas. Curiosamente, so agnósticos partem de algumas premissas para sustentar sua posição: Premissa 1. O que quer que seja conhecido cientificamente tem de ser demonstrado. Premissa 2. As premissas de uma demonstração têm de ser cientificamente conhecidas. A partir daí, eles colocam em seguida o dilema: “1. Se as premissas de uma demonstração são conhecidas cientificamente, então elas têm de ser demonstradas. 2. As premissas, das quais cada premissa é demonstrada, têm de ser conhecidas cientificamente. 3. Ou esse processo continua para sempre, criando um regresso infinito, ou ele para em algum ponto. 4. Se ele continua para sempre, então não há premissas primeiras a partir das quais as subsequentes são demonstradas, e assim nada é demonstrado. 5. Por outro lado, se param em algum ponto, então as premissas em que ele para não são demonstradas e, portanto, não são conhecidas cientificamente; consequentemente, também não o são as outras deduzidas a partir delas. 6. Portanto, nada pode ser demonstrado.” (SMITH, Robin. Aristotle's Logic. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2000). Com relação à posição dos agnósticos, vê-se que ela se auto-destrói, porque os agnósticos negam a possibilidade de demonstrar no mesmo momento em que estão a usar o próprio processo de demonstração para defender sua posição, no mesmo momento em que estão partindo de premissas e chegando a conclusões. Com relação à posição dos que defendem demonstrações circulares, Aristóteles rejeita-a, dizendo que toda demonstração deve parar em algum ponto. Este ponto é justamente o conhecimento autoevidente dos princípios realizado pelo Noûs, ou seja, a inteligência. Não se pode exigir demonstração dos princípios (exigir esta demonstração é incidir numa petição de princípio), uma vez que demonstrar, literalmente, significa mostrar a partir de algo. Este “algo” é um princípio, um pontapé inicial, um começo. A necessidade da conclusão deve ser mostrada a partir de alguns princípios, os quais, se fossem também suscetíveis de demonstração, então não seriam princípios, e exigiriam outros princípios, o que levaria a uma regressão ao infinito, destruindo a possibilidade de qualquer demonstração. Na Metafísica 993 b 8-11, Aristóteles diz o seguinte sobre o Noûs: “Assim como os olhos dos morcegos reagem diante da luz do dia, assim também a inteligência (Noûs) que está em nossa alma se comporta diante das coisas que, por natureza, são as mais evidentes.” Em Aristóteles, pode-se falar do Noûs como uma espécie de visão intelectual análoga à visão sensível e que desperta nos homens o desejo de mais ver, a tendência de mais conhecer. Aristóteles compara o ato do Noûs a um atingir, a um tocar. É como se a inteligência atingisse num ato imediato o princípio autoevidente. Este atingir se subtrai à alternativa entre verdadeiro e falso, ele somente pode acontecer ou não acontecer. Se ele não acontecer, não falamos que ocorreu um erro, e sim que se tem ignorância do princípio. Mas é claro que o ato de ensinar, realizado pelo professor, ajuda os alunos a despertar a inteligência dos primeiros princípios. Entre Descartes e Husserl, a discussão sobre a circularidade recai justamente sobre o estatuto desse “conhecimento autoevidente”. 

[48] Hua VII, Lição 10, p. 65.

[49] HEFFERNAN, op. Cit., p. 106.

[50] Descartes responde a Mersenne nas Segundas Respostas às Objeções, a Arnauld nas Quartas Respostas, e a Gassendi em um escrito póstumo. Sua resposta é a mesma para os três. No entanto, ele se limita a esclarecer nos três textos que quando ele afirmava nas Meditações que não se pode ter certeza de nada até que se tenha provado que Deus existe, isso significava apenas que não se pode ter certeza do conhecimento daquelas conclusões que podem ser recordadas quando a atenção não está mais voltada para elas, das conclusões que foram esquecidas, ou dos argumentos passados pelos quais elas foram deduzidas, e que não são mais objeto da atenção atual. Logo, a resposta de Descartes aos três objetores limita-se a mencionar os lapsos de memória, e não se pronuncia sobre a relação geral entre evidência e verdade.

[51] GUÉROULT, Martial. Descartes segundo a ordem das razões. São Paulo: Discurso Editorial, 2016, p. 282.

[52] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 275.

[53] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 26.

[54] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 30.

[55] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 29.

[56] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 28.

[57] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 30.

[58] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 272.

[59] GUÉROULT, Martial Ibid., p. 272.

[60] GUÉROULT, Martial. Ibid.,  p. 277.

[61] GUÉROULT, Martial. Ibid., pp. 182-183.

[62] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 185.

[63] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 183.

[64] GUÉROULT, Martial. Ibid., pp. 273-274.

[65] GUÉROULT, Martial. Ibid., pp. 185-186.

[66] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 237.

[67] GUÉROULT, Martial. Ibid., pp. 235-236.

[68] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 272.

[69] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 273.

[70] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 274.

[71] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 274.

[72] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 275.

[73] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 275.

[74] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 278.

[75] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 279.

[76] GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 280.

[77] MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, 1986.

[78] MARION, Jean-Luc. Ibid., p. 6.

[79] Ibid., p. 7.

[80] E neste tocar talvez haja um eco do θιγεῖν platônico.

[81] MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, 1986, p. 7.

[82] À Mersenne, 11 de novembro de 1640, AT, III, 235, 13-18. Algo semelhante é dito numa segunda carta que data do mesmo dia: “Je vous envie enfin mon écrit de Métaphysique, auquel je n’ai point mis de titre, afin de vous faire le parrain, et vous laisser la puissance de le baptiser. Je crois qu’on le pourra nommer, ainsi que je vous ai écrit par ma precedente, Meditationes de prima Philosophia, car je n’y traite pas seulement de Dieu et de l’âme, mais en général de toutes les premières choses qu’on peut connaître en philosophant par ordre.” AT III, 238, 19 – 239, 11.  

[83] KAMBOUCHNER, Denis. Les Méditations métaphysiques de Descartes. Paris: Presses Universitaires de France. 2005, p. 44.

[84] MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, 1986, p. 19.

[85] Ibidem, p. 21.

[86] Os autores supramencionados, que Marion faz entrar em interlocução com Descartes, assim traduziram a expressão aristotélica em seus respectivos comentários ao conceito de metafísica: Fonseca: das coisas pós-naturais ou supranaturais. Suarez: das coisas que seguem as ciências e as coisas naturais. Eustache de Saint-Paul: do que segue a física ou vem depois dela. Abra de Raconis: das coisas pós-naturais ou coisas que se seguem às coisas naturais. Scipion Dupleix: das coisas sobrenaturais, das que seguem as naturais ou disto que se segue à física e à ciência das coisas naturais.

[87] Nesse contexto, Descartes está a separar a teologia da metafísica. Para ele, só há teologia sobrenatural (dependente da revelação) e não teologia natural. A metafísica ocupa-se de todas as questões que a teologia tinha antes como objeto, concernentes a Deus e à alma, mas restringe sua consideração àquelas que o intelecto pode investigar por si mesmo, sem assistência divina. Desse modo, em Descartes, a metafísica substitui terminologicamente a teologia natural. 

[88] Aqui se acha uma diferença capital entre Descartes e seus contemporâneos, Kepler, Mersenne e Galileu, que têm as verdades matemáticas na conta de verdades incriadas, isto é, verdades que seriam constitutivas do próprio intelecto divino. Para eles, a metafísica ou teologia ultrapassa a física somente na medida em que as matemáticas são divinizadas. Em Descartes, a matemática se encontra decaída da posição divina e só resta a metafísica para se ocupar do estudo de Deus, cedendo o segundo lugar à física.

[89] MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, 1986, p. 38.

[90] Ibidem., p. 40.

[91] Ibidem., p. 74.

[92] Ibidem., p. 59.

[93] Ibidem., pp. 69-70.

[94] KAMBOUCHNER, Denis. Les Méditations métaphysiques de Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, 2005, p. 47.

[95] Ibid., pp. 51-52.

[96] Segundo pesquisas mais recentes, porém, a honra de ter instaurado o termo “ontologia”, em sua forma latina, deve-se a Jacobus Lorhardus, que fez publicar em 1606 uma obra que porta o título Ogdoas Scholastica, no frontispício da qual lê-se Metaphysices, seu Ontologiae. Mais detalhes sobre podem ser conferidos em: RICHARD, Sébastien. De la forme à l’être. Sur la genèse du projet husserlien d’ontologie formelle. Montreuil-sous-Bois : Ithaque, 2014.

[97] Philosophia Prima, sive Ontologia, Methodo Scientifica Pertractata, qua Omnis Cognitionis Humanae Principia continentur

[98] « Philosophiam ego definire soleo per rerum possibilium, qua talium, scientiam. Philosophi igitur est, non solum nosse, quae fieri possint, quae non; sed & rationes perspicere, ob quas aliquid fieri potest, vel esse nequit. » (Wolff, C. (2006). Discursus praeliminaris de philosophie in genere (G. Gawlick und L. Kreimendahl, Übers. und Hgg.). Stuttgart/Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog (Erstausgabe 1728).

[99] « quod nullam contradicitonem involvit, quod non est impossibile » (1730, § 85, p. 65).

[100] « cui nulla respondet notio » (1730, § 85, p. 65).

[101] Baumgarten, Metaphysica, § I: “Metaphysica est scientia prima cognitionis humanae principia continens.” Apud. MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, 1986, p. 3. 

[102] Kant, De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis, § 8. “Philosophia autem prima continens principia usus intellectus puri est Metaphysica.” Apud. MARION, Jean-Luc. p. 3. 

[103] VON HARTMANN, Eduard. Op. Cit. p. XXV.

[104] Cf. Nachgelassene Werke, Bd. II, p. 37. Textos escolhidos da Filosofia Primeira de Fichte podem ser lidos em FICHTE, J. G. Oeuvres choisies de Philosophie Première. Traduction par A. Philonenko. Paris : Librairie Philosophique J . Vrin, 1964.      

[105] Cf. LUFT, Sebastian. Phenomenology as first philosophy: a prehistory. Diálogos, 93 (2012), pp. 167-188.

[106] Não esquecer, porém, que o ser noumenal é causa de nossas representações. E aqui reside o grande paradoxo da filosofia kantiana: se as coisas em si são completamente incognoscíveis, como falamos delas e como, inclusive, aplicamos a elas a categoria da causalidade que, por princípio, pertence a priori ao nosso intelecto?

[107] HUSSERL, E. Fichte's ideal of humanity (Three Lectures). Translation by James G. Hart. Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 1995, 111-133, p. 119. In: Hua XXV. Aufsätze und Vorträge (1911-1921). Ed. Thomas Nenon and Hans Reiner Sepp. The Hague: Martinus Nijhoff, 1987, pp. 267-293. As conferências que Husserl proferiu sobre Fichte em 1917-1918 apresentam o filósofo exotérico da A Vocação da Humanidade e A Vocação do Sábio e não o filósofo esotérico da Doutrina da Ciência, pois interessava-lhe mais a questão da vocação e da vontade em Fichte do que os fundamentos do sistema de seu idealismo.

[108] LAFITTE, Pierre. Cours de philosophie première. Théorie générale de l’entendement. p. V.

[109] Santo Tomás DE AQUINO. Suma de Teologia: (Primeira parte – Questões 84 – 89). Tradução e introdução Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. Uberlândia: EDUFU, 2004, p. 87.

[110] Ibid., p. 81.

[111] BRENTANO, Franz. Psychology from an Empirical Standpoint, edited by Linda L. McAlister London: Routledge, 1995, p. 88-89.

[112] Nossa exposição é mais ou menos uma paráfrase que toma como referência o artigo “A filosofia da história da filosofia e a modernidade segundo Franz Brentano” de STARZYNSKI, Wojciech Zbigniew.  

[113] BRENTANO, Franz. Sobre los múltiples significados del ente según Aristóteles. Presentación y traducción de Manuel Abella. Madrid: Ediciones Encuentro, 2007, p. 245.

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