HISTORIA DA FILOSOFIA PRIMEIRA DE ARISTOTELES A FRANZ BRENTANO
1. Historiografia I: de Aristóteles
à escolástica tardia
1.1
Aristóteles
A Filosofia
Primeira surge pela primeira vez na história com Aristóteles. No livro Gama do
“Tratado da Metafísica” (103a 20-25), Aristóteles diz que há uma ciência
(επιστήμη) que considera (θεωρείν) universalmente o ser enquanto ser (ὂν ᾗ ὄν),
assim como as propriedades que pertencem ao ser enquanto tal. Essa ciência não
se identifica com nenhuma das ciências particulares, que recortam um setor
específico do ser e estudam apenas as características dessa parte, sem
interesse pelo ser considerado em sentido absoluto e sem investigar as causas e
princípios supremos (τας αρχάς και τας ακροτάτας αιτίας) que existem por si
mesmos (καθ’ αυτήν).
Estabelecer
exatamente qual foi o nome empregado por Aristóteles para designar essa
ciência, qual é a definição precisa dela e qual é o objeto que pertence a ela
propriamente, não é tarefa isenta de dificuldades. Como se sabe, o título
“Metafísica”, dado ao tratado aristotélico em que a discussão sobre a ciência
primeira acontece, é muito provavelmente resultado de um acidente histórico.
Ele remonta aos primeiros comentadores de Aristóteles, Andrônico de Rodes em
particular, que responde pela edição das obras aristotélicas no século I a.C.
No processo catalográfico do corpus aristotélico feito por Rodes, o nome
“metafísica”, que tem origem na expressão τῶν μετά τα φυσικά (que
significa literalmente das coisas que vêm depois das coisas físicas),
foi o título atribuído ao conjunto dos escritos que compõem a Metafísica
simplesmente por que eles, na catalogação, foram colocados depois dos livros de
física.
Além disso,
há outra dificuldade levantada por W. Jaeger, que colocou em dúvida a rígida
identificação entre a Metafísica e a ciência suprema designada por Aristóteles:
ora, será que essa ciência possui sempre a mesma definição e o mesmo objeto no
conjunto dos textos aristotélicos, ou não será, antes, que a definição e o
objeto da mesma passaram por mudanças ao longo da evolução do pensamento do
estagirita? Aristóteles não teria aderido a diferentes concepções da ciência
suprema, e de seu objeto, em diferentes momentos de sua carreira filosófica?
No entanto,
uma abordagem cuidadosa das passagens (não muito numerosas) em que Aristóteles
fala da ciência suprema, chamando-a pelo nome de Filosofia Primeira, é
suficiente para constatar que o objeto a que ela se refere permanece sempre o
mesmo, toda vez que ele é mencionado de maneira explícita. A saber, o referido
objeto é o “ser suprassensível”, conforme explicitado no estudo de Auguste
Mansion[1], que reúne os fragmentos
textuais que, no corpus aristotélico, testemunham em favor dessa
posição:
O
objeto em questão não é outro senão o ser suprassensível - formas análogas ou
semelhantes às Ideias platônicas, separadas, como tais, da matéria; - ou ainda
Deus, primeiro motor, caracterizado por sua imaterialidade e sua imobilidade;
ou, enfim, a inteligência ou a alma enquanto inteligente.[2]
Os textos
que mais explicitamente colocam a Filosofia Primeira em relação com o
suprassensível encontram-se no capítulo 1 do livro 6 da “Metafísica”. Aqui, a
ciência primeira é dita a mais elevada e, correspondentemente, o seu objeto é a
realidade mais alta, descrita como eterna, imutável e absolutamente separada da
matéria. Outros textos de Aristóteles fazem idêntica remissão a esse objeto, mas
quase sempre em referência à Metafísica:
No tratado
da “Física”, há duas passagens nas quais a questão da Filosofia Primeira é
evocada a título de distinguir as ciências que se ocupam do estudo da forma
segundo sua união ou separação em relação à matéria. Na primeira passagem, em
I, 9, (132 a 34 - b 2), Aristóteles indaga se o estudo dos problemas
concernentes às formas não unidas à matéria é algo que pertence ou não à
Filosofia Primeira: em caso afirmativo, convém a ela inquirir se a forma é
única ou se são várias formas; se a forma é por si ou é em outro; se a forma é
natural ou não, etc.
No livro II
(14-15) da “Física”, por sua vez, em que se trata da noção e da realidade
correspondente ao termo physis, e busca-se determinar qual é o objeto da
física, Aristóteles diz que o físico se ocupa das formas unidas com a matéria,
para logo em seguida acrescentar que a questão sobre a maneira de ser e sobre a
essência disto que é separado é algo que, pelo contrário, compete à Filosofia
Primeira determinar.
Para
Mansion, o que as duas passagens acima nos ensinam “é que o estudo das formas
imateriais — quaisquer que sejam, aliás, sua natureza e seu número – pertence
propriamente à Filosofia Primeira, enquanto que as formas imersas na matéria
são do domínio da física.” [3]
Nos tratados
sobre o céu, sobre o movimento dos animais e sobre a geração e a corrupção,
Aristóteles faz três breves alusões à Filosofia Primeira em relação com Deus, o
primeiro Motor, imaterial, eterno e imutável. No Tratado sobre o Céu, I, 8, (277
b 9-12), Aristóteles se demora em primeiro lugar na exposição detalhada das
provas físicas da unidade do céu e do mundo para logo em seguida ajuntar que a
mesma demonstração poderia ser deixada a cargo de argumentos tomados de
empréstimo à Filosofia Primeira, assim como à eternidade do movimento circular
dos céus.
No “Tratado
sobre o movimento dos animais” 6, (700 b 7-9), Aristóteles menciona as
exposições já feitas pela Filosofia Primeira a título de recordar o modo pelo
qual o primeiro movido é posto em movimento, o modo como está sempre em
movimento, a partir de um primeiro Motor, que move sem ser movido.
Há novas
remissões no “Tratado sobre a Geração e a Corrupção”, I, 3, (318 a 3-6), embora
ali os termos sejam colocados de modo menos explícito. Aristóteles alega que a
causa motriz é o fator que assegura a perpetuidade da geração, em conformidade
com o que já fora demonstrado antes nas exposições sobre o movimento. Fica
assim determinado que existe, de um lado, o ser eternamente imóvel, e de outro
o ser que é sempre movido, e que o tratamento desses dois princípios é uma
tarefa que deve ser deixada a cargo de uma filosofia anterior (προτέρᾱς) à
física.
Mas o objeto
dessa filosofia anterior não é exclusivamente Deus, enquanto primeiro Motor. Há
ainda, na introdução metodológica ao “Tratado sobre a Alma” 18 (403 b 15-16),
uma nova e inesperada alusão à Filosofia Primeira, cujo domínio próprio –
Aristóteles diz – contempla o estudo de afecções e funções separadas, ou seja,
imateriais, da alma.
Por fim, na
“Metafísica”, a Filosofia Primeira aparece no livro Ε (1025b - 1026a), no qual
é feita a divisão das ciências em teoréticas, poiéticas e práticas e é
demonstrada a absoluta primazia da proté philosophia, entendida como
teologia. As ciências teoréticas são a física, a matemática e a teologia. O
objeto próprio a cada uma delas é também definido: a ciência física considera
as coisas em movimento afetadas de matéria e não eternas; a ciência matemática
considera as coisas imóveis, mas não separadas, porque abstraídas da matéria; a
ciência metafísica ou teológica considera coisas separadas e imóveis, portanto,
eternas e desprovidas de matéria. Esta última é caracterizada como Filosofia
Primeira. Conclui Mansion que o exame dos textos é suficiente para sustentar
que “o objeto específico e característico da Filosofia Primeira de Aristóteles
não é outro que a coisa imaterial, sob qualquer forma que seja” [4].
Na
sequência, Aristóteles indaga se a Filosofia Primeira é ou não universal colocando-a
em comparação com a ideia de uma matemática geral ou universal (εις ταις
μαθηματικάς (...) ἡ δὲ καθόλου):
Poder-se-ia
agora perguntar se a filosofia primeira é universal ou se refere-se a um gênero
determinado e a uma realidade particular. De fato, a respeito disso, no âmbito
das matemáticas existe diversidade: a geometria e a astronomia referem-se a
determinada realidade, enquanto a matemática geral é comum a todas[5].
Essa linha
de comparação traçada entre matemática universal e Filosofia Primeira não deve
ter, porém, como uma de suas consequências a absorção ou redução de uma ciência
na outra ou de outra na uma. Aristóteles diz, por exemplo, que a matemática não
é uma disciplina apropriada ao estudo da natureza, que deve ser reservado à
física. Aqui, cabe lembrar a famosa passagem da Ética a Nicômaco (1094
b1 10-25), em que Aristóteles observa que “não se deve exigir o mesmo rigor em
todos os argumentos”, pois “um homem educado tem por princípio reclamar, para
cada gênero de afazeres, o grau de rigor autorizado pela natureza do afazer em
questão”, daí é que nós temos, com efeito, mais ou menos a mesma estranha
impressão diante de um matemático que demonstra coisas apenas prováveis do que diante de um retórico que nos oferece
uma demonstração exata de sua matéria.
Na leitura
do livro E da “Metafísica”, não se pode deixar de reparar que o termo Filosofia
Primeira surge dentro de um contexto específico de fundação das ciências, e que
esse contexto é marcado, sobretudo, por um esforço de organização do saber
humano a partir da reflexão filosófica. É quando se medita a hierarquia do
conhecimento e se busca ordenar as ciências conforme a sua situação em relação
aos princípios ou causas (tanto da ordem do ser quanto do conhecer) e em
relação àquilo que pode ser demonstrado cientificamente a partir de tais
princípios ou causas. Assim, é inevitável que se chegue a uma distribuição
ordenada do saber, como determinação do anterior e do posterior, do primordial
e do derivado, e a uma respectiva caracterização das ciências como primeiras,
segundas, terceiras, etc., segundo a disposição das mesmas em relação ao
estabelecimento dos princípios (fundação) e aos procedimentos de demonstração
(fundamentação) que dos princípios se segue.
Aristóteles
sustenta expressamente em “Metafisica”, VI, 2 1026 - 16, 19 e em “Ética a
Nicômaco” VI, 6, que a ciência mais alta deve ter o objeto mais elevado. O ser
se divide em gêneros e, por via de consequência, as ciências devem responder a
esses gêneros dividindo-se por seu turno em primeiras e segundas. Aristóteles
afirma que a posição e o primado das diversas ciências filosóficas são
determinados pela posição e primado de seus objetos. Estabelece-se assim uma
hierarquia dos saberes segundo aquilo a que se referem, conforme três domínios:
(i) o domínio da natureza, cujos corpos, unidos à matéria, estão em movimento e
são, portanto, mutáveis e indeterminados; (ii) o domínio da matemática, cujas
realidades são apenas relativamente separadas, já que abstraídas da matéria e
somente sob essa condição são imutáveis e cognoscíveis; (iii) o domínio do
divino, que, se existir com efeito, será absolutamente separado e absolutamente
imutável, como uma entidade plena. Nessas condições, deve-se conceder a
primazia à filosofia que considera o domínio do divino, que é imutável e
separado.
Segundo
Giovanni Reale[6], em seu comentário
introdutório à “Metafísica”, existem quatro componentes metafísicos que
caracterizam essa ciência:
(I) um
componente aitiológico, referente à doutrina das quatro causas (causa formal,
material, eficiente e final);
(II) um
componente ontológico, referente aos quatro sentidos do ser (sentido
substancial, sentido categorial, sentido lógico e sentido de potência e ato);
(III) um
componente usiológico, que se refere à concepção de substância e aos seus
múltiplos significados;
(IV) por
fim, um componente teológico, que trata da existência e da natureza da
substância suprassensível, primeiro motor imóvel ou Deus.
1.2 Santo
Tomás de Aquino (1225-1274).
Santo Tomás
de Aquino usa com bastante parcimônia o conceito de Metafísica. Na “Suma
Teológica” e na “Suma contra os Gentios”, ele diz que a
Metafísica versa acerca das coisas divinas (circa res divinas). No
proêmio ao “Tratado sobre a Geração e a Corrupção” aristotélico, a Metafísica é
definida por Santo Tomás como a determinação do ente em geral (de ente in
communi) e do ente primeiro (de ente primo), separado da matéria. A
Metafísica, por sua vez, apresentada no livro I do “Sobre os Analíticos” traz o
sentido estrito de uma metafísica das coisas que são comuns. Trata-se de uma
ciência dotada de máxima universalidade, que investiga as determinações comuns
tanto às substâncias compostas quanto às substâncias separadas. Seu campo
excede assim a consideração de todas as ciências particulares.
No
“Comentário à Metafísica” de Aristóteles, Santo Tomás atribui três nomes a essa
ciência universal. Ela é dita Teologia, ou ciência divina, na medida em que
considera as coisas separadas da matéria: tanto os entes de razão – por
exemplo, as idealidades matemáticas abstraídas da matéria – quanto os entes
imateriais absolutamente separados em seu ser, como Deus e as inteligências
angélicas. Ela é dita ainda Metafísica, na medida em que considera o ente e o
que se pode derivar logicamente do conceito de ente, como os acidentes e as propriedades.
Enfim, ela é dita Filosofia Primeira, na medida em que considera as primeiras
causas das coisas. Diz Santo Tomás que todas as outras ciências são dependentes
da Filosofia Primeira, pois dela recebem seus princípios e sua orientação.
Poder-se-ia
sustentar que Santo Tomás, dentre os quatro componentes da metafísica de
Aristóteles (aitiológico, ontológico, usiológico e teológico) privilegia os
seguintes componentes:
(I) O
teológico, já que a metafísica se mantém como a ciência por excelência do divino,
de Deus.
(II) O
ontológico, visto que o divino é compreendido como “ato puro de ser”.
(III) O
aitiológico, porquanto Deus é compreendido como a causa primeira, a causa
criadora não somente das entidades criadas (causalidade ôntica), mas também da
essência das criaturas e do ser das criaturas (causalidade ontológica).
Esse
privilégio dado à teologia, à ontologia e à aitiologia ocorre em detrimento da
usiologia (do estudo da substância). A causa primeira, com efeito, é concebida
não como substância infinita, e sim como “puro ser”.
1.3 João
Duns Scotus (1266-1308)[7].
A metafisica
de João Duns Scotus se concebe como uma ciência dos transcendentais. Esta
promove uma re-fundação da metafísica (um segundo começo da ciência metafísica)
que tenta colocar fim a esta oscilação perpétua e irremediável entre ontologia
e teologia (chamada posteriormente de constituição onto-teológica) que
caracteriza os esforços de definição da metafísica e que remonta a Aristóteles
e aos seus sucessores medievais. Para isso, o “Doutor Sutil” se posiciona
contra a tradição aristotélico-escolástica insistindo
na univocidade do ser.
A
univocidade de que fala Scotus traz uma noção do ente que não se deixa limitar
ao ente físico, mas que pode ser aplicada também, sem equívoco, ao ser divino
(é claro, porém, que a concepção de um conhecimento unívoco do ente, que
envolve tanto o ser infinito de Deus quanto o ser finito das criaturas, fornece
um saber imperfeito de Deus e não pode oferecer senão uma base abstrata e
puramente metafísica para a constituição de uma teologia). Assim, no Prólogo do
primeiro livro de suas Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristoteles,
Scotus transpõe o antigo conceito de Filosofia Primeira para o quadro de uma scientia
transcendens, que pode ser entendida como uma filosofia transcendental ou
uma ciência dos transcendentais. “É necessária uma ciência que considere os
transcendentais (transcendentia). E chamamos metafísica a esta ciência
(...) como, por assim dizer, transcendental (quasi transcendens
scientia), porque ela se volta ao estudo dos transcendentais (quia est
de transcendentibus).”[8]
O que é a
ciência dos transcendentais? Trata-se de uma ciência reservada à consideração
de conceitos especiais (ente, uno, verdadeiro, bom), que não são a mesma coisa
que o conceito de substância (a metafisica como ciências dos transcendentais
não equivale à metafísica como ciência do ente enquanto ente sob a unidade
teórica proporcionada pelo conceito de substância, nem se identifica com uma
interpretação da metafísica na qual Deus é o objeto). Em suma, é uma ciência que
se dirige ao ente em comum no sentido de uma pura e simples alguma coisa,
um puro objeto de pensamento enquanto tal. Os transcendentais são também
designados pelo nome de “paixões do ente” (passiones entis), que
dividem-se em paixões convertíveis: o um, o verdadeiro, o bem, etc., e paixões
disjuntivas, como finito e infinito, necessário e contingente.
Scotus, é
importante que se diga, não foi o primeiro autor medieval que falou de
conceitos transcendentais: esse mérito, provavelmente, se deve a Philippe, o
chanceler, professor na Universidade de Paris, que redigiu logo no início do século
XIII uma Suma de Bono. Mas o doutor Sutil foi, de fato, o primeiro que
de modo explícito e pontual deu à metafísica o título de ciência transcendente
(ciência dos conceitos transcendentes) e articulou pressuposições para
concebê-la como tal. A saber, transcendentais são os conceitos que possuem uma universalidade
transgenérica, eles qualificam aquelas determinações do ente que não se deixam
enquadrar exclusivamente em nenhum dos gêneros que a lógica de Aristóteles definiu
como categorias da substância. Dizer que esses conceitos transcendem as determinações
categoriais significa, literalmente, que eles atravessam os limites lógicos
e ontológicos que distinguem as categorias da atribuição, os gêneros e espécies
de ser, sem se deixar encerrar em nenhum deles.
Outra coisa
que, nesse registro, deve ficar clara é que os conceitos transcendentais são
conceitos reais, isto é, conceitos de primeira intenção, que dizem
respeito intrinsecamente ao objeto. A distinção entre conceitos de primeira e
segunda intenção é o que distingue metafísica e lógica. Enquanto que a lógica define-se
como uma ciência que se dirige a conceitos e relações conceituais produzidos
pelo intelecto, isto é, conceitos de intentio secunda que, tais como gênero
e espécie, não se predicam de coisas extra animam, a metafísica deixa-se
definir como ciência dirigida a conceitos que exprimem realidades, conceitos
que se predicam de indivíduos, de coisas singulares.
Também importa
muito salientar, no tocante à filosofia transcendental scotista, que ela está
ligada a uma teoria da cognição. Scotus rejeita a proposição de que tenhamos
qualquer conhecimento especial da realidade a partir de conceitos inatos e
tampouco para ele existe a via de uma iluminação especial para o conhecimento. Ele
adota amplamente a concepção de Aristóteles de que o conhecimento parte da
experiência do mundo sensorial. No entanto, ele foi profundamente atento à
necessidade de se perceber qual é o desempenho cognitivo que possuímos e em que
medida esse desempenho pode permitir a metafisica como ciência da realidade
como um todo. Em que medida temos um desempenho cognitivo relativo a Deus que
não O reduza aos conceitos apresentados na mitologia ou na revelação? Que tipo
de controle do conceito de Deus se pode ter?
Essa teoria
da cognição passa por uma espécie de “teoria dos conceitos”, segundo a qual o conceito, em última instância, é uma species,
um mecanismo ou artifício pelo qual o objeto é intencionado pelo pensamento. A species
equivale a um medium quo, um meio pelo qual a realidade do objeto é
intencionada. Scotus nega qualquer teoria representacionalista do conhecimento
e procura descrever a obtenção de conceitos como sendo o resultado de uma
dinâmica em que o objeto e o intelecto realizam aspectos causais concorrentes e
independentes em que, em última instância, a realização da forma da coisa na
mente, a species, uma vez refletida pelo intelecto, no pensamento
intencional, é descritivamente entendida como meio pelo qual o objeto é
intencionado.
Scotus deu
um amplo espaço e uma importância especial a essa obtenção da species,
da forma do conceito que no ato do pensamento intenciona o objeto. Essa noção é
particularmente importante para a obtenção dos conceitos metafísicos. Com
conceitos reais de primeira intenção, o intelecto não obtém apenas termos
concretos como cavalo e árvore, ele opera a partir dos termos concretos nas species,
entrando numa dinâmica de percepção dos vários aspectos da coisa. A dinâmica do
intelecto que concorre com o objeto na obtenção dos aspectos da realidade não
chega apenas a termos concretos, mas também, em especial, a termos abstratos,
como cavalidade, humanidade, racionalidade, animalidade, etc. Eles são notados
pela vida intelectual, mas são igualmente intencionais, e como tal apelam
constitutivamente para a concorrência original do objeto. Tratam-se das assim
chamadas na escola scotista “formalidades”.
Se a
metafisica de Scotus corresponde em grande medida à análise conceitual de ente,
quanto ao seu significado, obtenção, realidade, comunidade, etc., vale
assinalar que este conceito resulta do mecanismo da abstração, acrescentando-se
que se trata do primeiro cognoscível abstraído pelo intelecto. Para Scotus, o subjectum
primeiro da metafísica é o ente que se predica univocamente de toda coisa; ele é
o objeto primeiro do intelecto humano por ser um conceito absolutamente simples
e que precede toda determinação e toda divisão. Scotus[9], no entanto, distingue
diferentes sentidos de “primeiro”: um primeiro segundo a ordem de perfeição, um
segundo a ordem de geração e outro segundo a ordem de adequação.
(I) O
primeiro conhecido segundo a ordem de perfeição é Deus.
(II) O
primeiro conhecido segundo a ordem de geração são os acidentes que se verificam
nas coisas e que constituem as razões comuns que nosso intelecto abstrai delas.
(III) O primeiro
conhecido segundo a ordem da adequação é o ente, este é o objeto adequado do
intelecto, a causa de toda inteligibilidade possível e a razão comum de todas
as coisas. Trata-se de um conceito quiditativo extraído por abstração última dos
acidentes da substância em sua indiferença respectivamente a “isto” de que ele
é dito ser.
Pode-se
defender as seguintes teses a respeito desse conceito primordial: (I) ele é o
primeiro conhecido; (II) acha-se implícito em todas as coisas que conhecemos, quer
dizer, está contido em todos os conceitos objetivos distintos, em todos aqueles
conceitos em que temos uma pretensão intencional de seu peso objetivo
constitutivo, o ente está co-conhecido; (III) por essa razão, ele possui
absoluta unidade semântica e comporta assim uma especial generalidade que o candidata
a ser o predicado de todas as coisas, sem exceção.
Uma exemplificação
privilegiada que prova essa tese é o da contradição, que só é reconhecida como
tal porque o conceito de ente é suficientemente unitário. Ou seja, quando incido
numa contradição (A é B e A não é B), o reconhecimento dela só é possível
porque existe uma suficiente base unitária no “é” da cópula, que, apesar das
diferentes variáveis, faz com que essa proposição seja contraditória. Logo, a contradição
pressupõe a certeza e a unidade semântica. Se o conceito de ente é
transcategorial, porque sua unidade de sentido é dita tanto da categoria
acidental quanto da substancial, ele é essa unidade última de abstração que eu
atinjo quando interrogo todas as coisas pela pergunta quiditativa “O que é?” O
conceito de ente é tão simples e a sua unidade significativa é tão absoluta,
que, em grande medida, ele não pode ser definido por alguma coisa mais simples,
ele só pode ser reiterado e explanado, por assim dizer, indiretamente. Quando
digo, por exemplo, que ente é aquilo que imediatamente estabelece a diferença
entre ser e nada, significa que entre o ens e o nihil existe
absoluta contradição, quando eu saio de um estou imediatamente no outro.
Como vemos,
boa parte da metafisica scotista é voltada para a lógica do conceito de ente.
Se na realidade o que existe é prioritariamente substância, o conceito de ente,
como aquilo que responde em última instância ao que as coisas são, é um
predicado quiditativo, que se distingue dos predicados qualitativos. O ente
possui uma comunidade de predicação quiditativa e possui uma dupla primazia de
predicação, de comunidade e de virtualidade, no sentido de dizer que ele é co-implícito,
conhecido conjuntamente em todos os predicados quiditativos, ou está predicado
de maneira virtual, no sentido de que é co-conhecido em todos os predicados
qualitativos, que não são quiditativos, mas que, no entanto, existem e inerem
em coisas substanciais.
Mas, para
além do teor epistemológico contido na filosofia scotista, o que mais interessa
ao doutor Sutil é a possibilidade da “via unitária da metafisica”, isto é, a justificação
da pretensão que a metafísica tem de oferecer uma visão unificada da realidade sob
a base da percepção dos conceitos abstratos e intencionais. Portanto, os
conceitos transcendentais não são recrutados apenas à função de possibilitar
uma reflexão cognitivo-epistêmica, mas respondem a uma reflexão sobre a pergunta
de abertura acerca da realidade e a uma reflexão sobre a estrutura da
realidade dos modos de existência. A ligação entre esses três elementos
torna-se o cabeçalho da concepção filosófica de Scotus.
É claro que
a unidade metafisica só pode ser uma unidade conceitual, já que o conceito é
justamente o mecanismo intelectual que reúne as apreensões dos diversos
aspectos da realidade. O problema que surge diante dessa pretensão de unificação
é que, já na ontologia de Aristóteles, o ser é dito tanto das coisas
substanciais quanto das não substanciais, o que nos deixa, aparentemente,
diante de uma pluralidade e uma plurivocidade irredutível.
Mas Scotus,
mediante uma radical revisão e exame dos conceitos metafísicos que apresentam
significativa generalidade, aqueles que se predicam de muitas coisas diferentes,
parte da suposição de que há conceitos que conseguem vencer a divisão
categorial, e ele logo assume como hipótese de trabalho que o conceito de ente
é o único efetivamente capaz de proporcionar a unidade conceitual real. Logo, se
os conceitos transcendentais devem unificar a investigação da realidade em seus
aspectos fundamentais, o conceito de ente é o único que tem sucesso nessa
pretensão.
A partir
daqui, o esforço de Scotus é mostrar que a única maneira de o mundo não
permanecer separado e dividido em vários gêneros unitários é a defesa da tese da
univocidade do ser. Acrescentando-se, porém, que a ideia da univocidade não é contrária
à da analogia, mas implica que a analogia precisa pressupor o conceito unívoco
de ser, pois, se não pressupor, ela deve pressupor Deus, e Deus não é o
primeiro conhecido e nem a primeira coisa co-conhecida.
O conceito
de ente se notabiliza por possuir elementos fundamentais para a pretendida via unitária
metafisica, na medida em que é um conceito real, em que obedece a um mecanismo
de obtenção de termos abstratos de primeira intenção, em que responde à ideia
de objetividade e traz a universalidade total que supera as diferenças
categoriais. Uma vez que os transcendentais são transcategoriais e não se
restringem nem se limitam a um gênero supremo, eles oferecem o horizonte de
realidade objetiva dentro do qual o nosso conhecimento ocorre e com isso
constituem uma abertura fundamental para a realidade. Mas resta dizer que, se o
conceito de ente é chamado por Scotus de primeiro transcendental, ele não é o único,
pois seus atributos são o uno, o verdadeiro, o bom, que na tradição eram
conhecidos como convertíveis ao ente, e que são posteriores, pois derivam do
ente e ampliam o seu sentido. Uno, verdadeiro, bom, etc. não são definíveis,
mas por assim dizer explicitam a estrutura de sentido que acompanha a estrutura
de sentido fundamental do ente.
É aqui que a
filosofia scotista se deixa levar por uma meta mais ambiciosa, concernente a uma
análise metafísica da estrutura da realidade que é ditada pelos conceitos transcendentais.
Há uma passagem da Ordenatio em que Scotus dá uma definição de
transcendental que o caracteriza como um conceito que, tal como o conceito de
ente, é indiferente ao finito e ao infinito ou então é próprio do ente
infinito. Essa definição traz uma abertura importante: a metafisica, como
ciência da realidade unificada e totalizada pelo conceito de ente, talvez seja
capaz de construir uma estrutura transcendental total na qual esteja indicada
uma realidade objetiva tão ampla que até mesmo Deus possa fazer parte dessa
ciência.
Essa discussão nos levaria muito longe, mas,
em linhas gerais, o argumento é que, com a posição dos conceitos
transcendentais transcategoriais indiferentes ao finito e ao infinito, ou próprio
do ente infinito, o intelecto atinge ao mesmo tempo as assim chamadas “propriedades
disjuntas” (finito-infinito, atualidade-potencialidade, causado-incausado,
etc.) que incluem “perfeiçoes puras” que são propriedades que não contêm
nenhuma limitação intrínseca. O objetivo que se põe é procurar uma indiferença
de conceitos reais que tenha tanta generalidade que possa inclusive estruturar,
ou seja, apresentar uma constelação estrutural sobre a realidade, a partir da
qual, à luz da lógica dos conceitos transcendentais, o pensamento de Deus seja controlável.
Não é por acaso que se diz que o conceito de ente infinito (composto a partir
da natureza dos conceitos transcendentais), sob certo aspecto, controla nossa
representação do que Deus é. Mas o essencial já foi dito e não precisamos nos
estender sobre esse ponto.
Só não podemos
nos esquecer, para finalizar, que, com a determinação da Filosofia Primeira
como estudo do ente unívoco enquanto ente, ocorre uma mudança de orientação
dessa filosofia, uma verdadeira virada “ontológica” (mesmo que o termo
ontologia ainda não existisse) em que a metafísica ganha enfim plena autonomia
em relação à teologia. De ciência do ente primeiro em si a metafísica
devém uma ciência do ente para nós.
1.5 Pedro da
Fonseca (1528-1599)
Já nos Comentários à Metafísica de Aristóteles, obra editada em dois volumes, é de destacar, relativamente à tradição escolástica, que Fonseca rejeita a noção de uma filosofia primeira como serva da teologia, entendendo-a antes como rainha das ciências (omnium scientiarum domina), aprofundando ainda mais esse distanciamento relativamente à teologia pela ausência de referências à teologia natural, que tinha por função o conhecimento das coisas invisíveis de Deus através das coisas visíveis, ou seja, o conhecimento dos atributos divinos através do livro das criaturas.
1.6 Francisco
Suarez (1548-1617).
Diferente de
Santo Tomás, Suarez faz um uso fundamental do termo “Metafísica”, definindo-a
como “a ciência que contempla o ente enquanto ente ou o ente enquanto abstraído
da matéria.”[10] As Disputationes
Metaphysicae de Suarez, publicadas em Salamanca em 1597, são hoje
consideradas o grande tratado metafísico da idade moderna. Elas consistem
inicialmente numa obra de síntese que elabora e sistematiza aquilo que já foi
pensado: numa abordagem retrospectiva de uma série de questões já repertoriadas
e amplamente documentadas, recapitulam toda doxologia legada pela tradição, a
saber, as opiniões principais e dignas de consideração sustentadas pelos
autores do passado em forma de sentenças (sententiae). Após essa
exposição, cada questão recebe da parte de Suarez uma nova explicação e uma
nova justificação, assumida pelo autor em seu nome próprio e formulada como uma
nova sentença.
As Disputationes
Metaphysicae abrangem integralmente a doutrina dos doze livros da Metafísica
de Aristóteles, mas elas colocam em vigor uma nova definição de Metafísica
e do objeto que pertence adequadamente a essa ciência. A Metafísica se divide
em Suarez em Metafísica Geral, consagrada ao estudo do ente enquanto ente, e em
Metafísica Especial, consagrada ao estudo de Deus. Essa divisão vai se tornar
clássica e a Metafísica Geral será designada posteriormente pelo neologismo
“ontologia”.
Assim, a
Metafísica unifica a Filosofia Primeira estabelecendo-se, ao mesmo tempo, como
doutrina dos entes os mais divinos e como doutrina que considera o ente
enquanto ente (todos os predicados que são comuns ao ente em geral). Mas, como
adverte Marion[11], a philosophia prima
de Suarez diz respeito a Deus e às inteligências angélicas sem ultrapassá-los
para um horizonte mais largo. A prima philosophia leva assim ao
estabelecimento da teologia, enquanto que a Metafísica é reconhecida como a
ciência de maior universalidade, na medida em que opera tal ultrapassamento
rumo a uma esfera mais abrangente.
Pois
esta ciência faz abstração das coisas sensíveis e materiais (que são ditas
físicas, porque é delas que se preocupa a filosofia natural); ela também
contempla as coisas divinas e separadas da matéria, assim como as razões comuns
do ente, que podem existir separadas da matéria; ela foi então nomeada
metafísica, instituída depois da física ou além da física[12].
O objeto da
Metafísica, que de início designa-se como o ente enquanto ente real (ens in
quantum ens reale), estende-se em seguida às substâncias imateriais finitas
(criadas) e à substância infinita (incriada). A primeira parte (geral) das Disputationes
estuda o objeto na acepção restrita de real, segundo o conceito comum de ente,
assim como as propriedades, ditas propriedades transcendentais ou paixões, e as
formas de causalidade que se aplicam àquele. A segunda parte (especial)
debruça-se, por sua vez, sobre os entes determinados, Deus e as criaturas, a
existência e os atributos de Deus, a existência e a essência do ente finito, as
substâncias criadas e os acidentes, e, por fim, fecha com o estudo dos entes de
razão. Deve observar-se que a Metafísica inclui o ser infinito na medida em que
ele tem a razão de ente e o tipo de analogia entre finito e infinito empregada
nesse estudo é chamada por Suarez de “analogia de atribuição intrínseca”.
É claro que
a metafísica destina-se a servir à teologia sagrada e sobrenatural, mas com ela
surge uma outra forma de teologia natural e humana. Além disso, por conter uma
parte geral e outra especial, a Metafísica deixa de estar por inteiro
subordinada à teologia e se estabelece efetivamente como ciência primeira[13].
1.7 Benedictus
Pererius ou Bruno Pereira (1536-1610).
Coloca-se em
oposição a Suarez ao privilegiar o conceito de Filosofia Primeira e não o de
Metafisica. Bruno Pereira escreveu um manual de filosofia natural chamado De
communibus omnium rerum naturalium principiis, cujo primeiro livro,
intitulado De philosophia, vai tratar de questões preliminares que
concernem à divisão da filosofia em Especulativa e Prática. A filosofia
Especulativa divide-se em Metafísica, Matemática e Física. O capítulo XVII
desse primeiro livro discute a questão sobre “quae illarum trium scientiarum
sit prima”, ou seja: qual dentre essas três ciências é a primeira, a prima
philosophia.
De acordo
com Crapulli[14], o exame de Pereira é
feito sob um duplo ponto de vista: “secundum naturam e secundum nos,
segundo a ordem natural da realidade da qual tratam, respectivamente, a
metafísica, a matemática e a física, e segundo a ordem e o grau de facilidade
com que as aprendemos”.
Secundum
nos, a
Metafísica é posterior em relação à Matemática e à Física, e em relação a
qualquer outra ciência, já que o conhecimento das coisas imateriais é
precedido, na mente humana, pelo conhecimento da realidade sensível e
menos abstrata da matéria e através do auxílio prestado por outras ciências. Secundum
naturam, porém, a Metafísica é primeira em relação às outras duas
disciplinas especulativas, e em relação a qualquer outra ciência, pois ela se
ocupa “dos predicados e das causas de todas as coisas primeiras e
generalíssimas, isto é, dos transcendentais e das inteligências”[15], por isso, compete a
ela a denominação de Filosofia Primeira.
Diferentes
critérios: Pereira reconhece que há diferentes critérios cuja aplicação resulta
em alteração do estatuto da matemática. Genericamente, Pereira considera a
teologia a mais nobre ciência de todas[16]. Esta posição é
justificada por se debruçar sobre um objecto superior. Por aplicação do
critério ontológico, a posição seguinte é ocupada pela física, que se debruça
sobre substâncias, e a última, pela matemática, que se ocupa de acidentes[17]. Mas se se considerar o
critério da certeza, o cenário muda de figura: a teologia continua a ser
superior às restantes se se entender que o conceito de “certeza” traduz a
firmeza e imutabilidade do objecto, mas se se considerar a certeza do ponto de
vista da força e firmeza das demonstrações, tem de se admitir forçosamente que,
pela dificuldade intrínseca do seu objecto, é superada pelas restantes ciências[18]. Ora, comparando a
matemática com a física (as “restantes ciências”), verifica-se que, em relação
a este critério, a primeira leva de vencida a segunda.[19]
Em Pereira,
temos então a filosofia sendo dividida em três partes: a primeira delas é qualificada
de metaphysica, theologia, sapientia, divina scientia,
ela ocupa-se em considerar as inteligências separadas de toda matéria. A
segunda dessas partes denomina-se prima philosophia universalissima,
trata-se de uma scientia universalis que ocupa-se em considerar os
transcendentais. A terceira parte reserva-se à função de considerar as
categorias e pertence à parte dialética ou lógica das exposições quadripartidas
da filosofia escolar. A universalidade da Filosofia Primeira coincide com a
universalidade das determinações do ente. Logo, ela ocupa-se do ens in
quantum ens.
Contemporâneos
de Pereira que devem ainda ser incluídos na discussão sobre a Filosofia
Primeira são lembrados por Jean-Luc Marion no seu estudo do prisma metafísico
de Descartes. O jesuíta Eustache de Saint-Paul (1575-1640) é um deles e devida
importância lhe advém do manual de filosofia que escreveu, intitulado Summa
philosophica quadripartita de rebus Dialecticis, Moralibus, Physicis et
Metaphysicis, o qual oferece uma concepção da filosofia quadripartida em
Dialética, Moral, Física e Metafísica, propondo a divisão desse manual como
programa de ensino. Nele, a Metafísica é definida como ciência teorética do
ente real e completo, abstraído “por indiferença” de toda matéria. Scipion
Dupleix (1569-1661) é outro deles: notando a recente introdução do conceito de metafísica
nos programas, ele propõe reservar uma segunda posição à Sapiência ou
Sabedoria, uma terceira posição à teologia ou ciência de Deus, e, paradoxalmente,
coloca na quarta posição a filosofia primeira ou ciência primeira, cujo
escopo é o primeiro dos entes. Outro cujo nome
deve constar nessa lista é Abra de Raconis (1580-1646), que estabelece como objeto
adequado da metafísica o ente obtido por abstração das diferenças entre Deus e
as criaturas. Ele detalha os nomes que convêm às disciplinas metafísicas,
mencionando em primeiro lugar a Philosophia simpliciter e, em seguida, a
filosofia primeira, cujo discurso versa sobre as coisas mais nobres, Deus e os
anjos; na posição seguinte encontra-se a theologia rationalis e, enfim, a
Metaphysica propriamente dita.
1.8 Francis
Bacon (1561-1626) e Thomas Hobbes (1588 –1679)[20].
Bacon é um
dos expoentes do empirismo inglês. Em seu livro “O progresso do conhecimento”
(1601), Bacon nomeia Philosophia Prima a matriz de todos os saberes
pertencentes ao domínio da filosofia. Essa matriz é representada pela imagem da
“árvore do conhecimento”, figura tomada de empréstimo da antiga tradição
enciclopédica para representar o nexo entre os saberes. A árvore representa em
seus ramos o intercurso entre os conhecimentos, possui uma estrutura orgânica e
mantém, ao invés de um ponto concêntrico, um tronco comum onde se alimentam
todas as ciências.
Bacon
concebe a divisão do saber humano nas seguintes categorias: a Memória, da qual
surge a História; a Razão, da qual surge a Filosofia; a Imaginação, da qual
nasce a Poesia. Mais tarde, a imagem da “árvore do conhecimento”, inspirada na
ideia de divisão de Bacon, será também proposta pelos enciclopedistas do
iluminismo, Diderot e d'Alembert, os quais dividiram o conhecimento em três
categorias, que determinam a forma pela qual se organizam os assuntos abordados
na Enciclopédia.
O interesse
de Bacon não é puramente científico, seu objetivo é também prático. Para o filósofo
inglês, “saber é poder”, e o interesse de sua filosofia é o poder do homem
sobre a natureza. Bacon possui uma posição histórica na vanguarda da filosofia
moderna, e essa posição se deve ao livro “Novum Organum ou
Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza”, que se caracteriza
por duas coisas:
1) em
primeiro lugar, a exigência de uma reconstrução fundamental das ciências, que
devem se livrar de uma diversidade de ídolos para se constituírem como verdadeiras
ciências.
Os ídolos
são de quatro tipos: a) Os ídolos da tribo (idola tribus), que estão inscritos
na própria natureza humana e se referem à predisposição do homem de enxergar
“causas finais” nas coisas, tendência que dá surgimento ao antropomorfismo, ao
animismo, etc. Os ídolos da tribo surgem de associações e generalizações a
partir de amostras diminutas. b) Os ídolos da caverna (idola specus),
que se referem aos homens enquanto indivíduos,
na medida em que seu espírito está sujeito a várias perturbações; desses ídolos
surgem, por exemplo, o senso comum, as atitudes impensadas, os pressupostos
errôneos, a tendência a aceitar somente o que concordar com a própria opinião. Os
ídolos da caverna são fruto de inferências irrefletidas. c) Os ídolos do foro (idola
fori), que correspondem ao intercurso e à associação recíproca; para Bacon,
as palavras cunhadas pelo vulgo, na medida em que são impostas de modo impróprio
e inepto, acabam por bloquear o intelecto, de onde surgem mal-entendidos e o
uso de conceitos imprecisos, equivocados e deturpados. Os ídolos do foro distorcem
a realidade mediante o discurso, mais precisamente, o discurso retórico. d) Os
ídolos do teatro (idola theatri), que vêm do apelo à tradição ou à
autoridade, e se constituem de dogmas políticos, religiosos, filosóficos, ou de
ideologias. Esses ídolos surgem da crença.
2) Em
segundo lugar, a ênfase no método indutivo. Este se compõe de quatro etapas: a observação
empírica da natureza; o processamento racional dos dados obtidos; a elaboração
de hipóteses fundadas nesses dados; a verificação das hipóteses mediante
experimento replicável.
Bacon
rejeita a indução de Aristóteles e dos escolásticos considerando-a não genuína,
tendo-a na conta de uma inductio per enumerationem simplicem. Para o filósofo,
que se ocupava também de política e ganhou o título de barão de Verulam, o
conhecimento deve estar baseado na experiência, que precisa, por sua vez, ser
elevada metodicamente do individual ao geral. O que se faz em primeiro lugar é expor
os fatos, depois organizá-los claramente, e em seguida derivar leis dos mesmos
mediante a indução legítima e verdadeiramente científica. Bacon optou por usar predominantemente
o princípio da eliminação.
Ligado de
perto a Bacon, está o filósofo Thomas Hobbes, autor do célebre “Leviatã”
e cuja filosofia “fundamentalmente materialista e anti-essencialista” se coloca
também numa posição antagônica em relação a Aristóteles e à escolástica. A Philosophia
prima desenvolvida por Hobbes tem como referência a Física e a
Metafísica de Aristóteles. Ela as toma como alvo de crítica, mas também
como ponto de partida para o remanejamento teórico de uma série de princípios e
conceitos herdados da tradição. A filosofia primeira hobbesiana, considerada em
seu conjunto, é definida amplamente pela metafísica concebida como ciência do
ente enquanto ente (a saber, o ente material), ao invés da clássica definição
de ciência do ser enquanto ser. Duas definições strictu sensu são então erigidas
a partir desse conceito amplo de metafísica: a metafísica como física geral –
na medida em que dizer o ente (ens) é dizer o corpo (corpus) – e
a metafísica como representação.
Hobbes
possui, portanto, uma nova concepção de filosofia radicalmente inscrita no
anti-aristotelismo e cujo corporeísmo mecanicista se deixa inspirar
profundamente pela física-matemática de Galileu. Na visão hobbesiana, a
filosofia deve ocupar-se exclusivamente com o estudo dos corpos, suas causas e
propriedades. Tudo o que não é corpo deve ser assim banido da investigação
filosófica. Os corpos são divididos por Hobbes em três classes: os corpos
naturais inanimados, que incluem os corpos da natureza em geral; os corpos
naturais animados, que incluem o homem; os corpos artificiais, que incluem o
Estado. A filosofia deve, portanto, ser tripartite, de maneira a tratar de cada
uma dessas classes. De onde foi concebida a célebre trilogia hobbesiana: De corpore, De homine, De cive. A
ciência dos corpos naturais dedica-se ao estudo dos corpos e do homem, ao passo
que a ciência do corpo artificial dedica-se ao estudo do Estado.
2.
Historiografia II: de Descartes a Brentano
Em Descartes (1596-1650), a
Filosofia Primeira é evocada nas Meditações, que possuem como título Meditationes
de prima philosophia, e também na Carta-Prefácio aos Principia philosophiæ,
carta em cuja redação o filósofo francês compara a filosofia a uma árvore (a
árvore do conhecimento) cujas raízes são a Metafísica, o tronco a Física e os
galhos o conjunto de todas as outras ciências que se reduzem à Medicina, à
Mecânica e à Moral.
A
determinação cartesiana da essência da filosofia deve definir a filosofia como o estudo da sabedoria, sendo
a sabedoria o perfeito conhecimento daquilo que o homem é capaz de saber, cuja
finalidade é: a condução da vida (moral), a conservação da vida (medicina) e o
domínio da natureza (mecânica). O supremo bem é o conhecimento da verdade pelas
suas primeiras causas, causas que, em seu conjunto, constituem a sabedoria, de
que a filosofia é o estudo (o amor, o devotamento ao saber). Mas na sabedoria a
tarefa mais nobre a que o homem se entrega é a de compreender a si mesmo. Por
isso a pergunta inicial das Meditações é: “Sed quid igitur sum?”
O professor Gilles Olivo[21] examina uma hipótese interessante, relativa ao
desenvolvimento do projeto cartesiano, segundo a qual o ideal de realização da Mathesis
universalis, lançado expressamente por Descartes na sua obra de juventude,
inacabada e não-publicada, Regulæ ad
directionem ingenii,
teria sido abandonado em proveito de um projeto metafísico levado a cabo nas Meditações.
No
texto das Regulæ, o filósofo francês define a Mathesis universalis como “ciência geral da
ordem e da medida” a partir de sua função metodológica de fixação do critério
da evidência como regra da verdade. No entanto, o
conceito de Mathesis é assim definido para logo em seguida desaparecer
de cena, estando ausente das preocupações e dos temas explícitos das obras
publicadas posteriormente por Descartes. Dentre as várias explicações para
isso, diz Olivo, uma é a possibilidade de que o projeto matésico
sofrera depois, nas obras acabadas e publicadas, uma atenuação e uma
subordinação ao projeto metafísico das Meditationes.
Vamos conferir na sequência as regras específicas
apresentadas pelo jovem Descartes que permitem estimar seu projeto de uma Mathesis
universalis.
2.1 As regras para a
direção do engenho
As regras são aquilo que
define o método:
Entendo
por método regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente as observar
nunca tomar por verdadeiro algo de falso e, sem desperdiçar inutilmente nenhum
esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente o saber, atingir o
conhecimento verdadeiro de tudo o que será capaz de saber[22].
Regra II. “Toda a ciência é
um conhecimento certo e evidente.” (Omnis scientia est cognitio certa et
evidens). Na visão do neokantiano Paul Natorp, a regra II exprimiria o
objetivo central da obra: argumentar em favor de uma equivalência entre
evidência e verdade, uma identidade entre esse verum e esse certum.
Com ela, surge o ponto de inflexão da ciência moderna: a certeza não estará
mais do lado do objeto do conhecimento, “o objeto não aparece nessa formulação.
Certeza é uma modalidade do conhecimento em si mesmo, aquilo que nós poderíamos
chamar ‘subjetivo’, embora o próprio Descartes nunca tenha empregado o termo
nesse sentido específico”[23].
Regra IV. Diz que o método
é necessário para a busca da verdade. A equivalência entre evidência e verdade conduz
ao estabelecimento de uma disciplina definida como Mathesis universalis.
Pareceu a Descartes que “deve haver uma ciência geral que explique tudo o que
se pode investigar acerca da ordem e da medida, sem as aplicar a uma matéria
especial: esta ciência designa-se” pelo nome de “Mathesis universalis,
porque contém tudo o que contribui para que as outras ciências se chamem partes
da Mathesis.”[24] As matemáticas, aritmética e geometria, possuem como
objeto as quantidades contínuas e discretas, que são tão simples e fáceis de
conceber que sequer oferecem resistência à nossa apreensão intelectual delas.
Mas esse privilégio não redunda num “monopólio, não precisa ser restrito a um
domínio especial”[25]. Descartes quer dizer que a evidência pode ser
encontrada em qualquer domínio do conhecimento, não importa o tipo de objeto a
ser considerado: números, figuras, astros, sons (nec interesse utrum in
numeris vel figuris, vel astris, vel sonis).
Diz Descartes que a
Matemática universal foi metodologicamente cultivada por ele, o tanto quanto
pôde, antes de passar para as ciências mais elevadas:
Eu,
porém, consciente da minha fraqueza, decidi observar pertinazmente na busca do
conhecimento das coisas uma ordem tal que, principiando sempre pelos objetos
mais simples e mais fáceis, nunca passe a outros sem me parecer que os
primeiros nada mais me deixam para desejar. Foi por isso que cultivei até
agora, tanto quanto pude, essa Matemática universal, de maneira que julgo poder
tratar daqui por diante as ciências mais elevadas, sem a elas prematuramente me
aplicar. [26]
Regra VIII. “Nada se pode
conhecer antes do intelecto, visto que dele depende o conhecimento de tudo o
mais, e não o inverso.”[27] E, por outro lado, “nada pode haver aqui de mais útil
do que investigar o que é o conhecimento humano e até onde se estende.”
[28]. De onde os neokantianos veem uma antecipação da
filosofia crítica, que prescreve que “antes de conhecer qualquer um dos objetos
aos quais o intelecto está relacionado, deve-se conhecer o próprio intelecto” [29].
Regra XIV. Coloca-se aqui
ênfase no papel da imaginação, que, quando representa seu objeto com a ajuda de
figuras simples, permite que o intelecto o perceba muito mais distintamente (ita
enim longe distinctius ab intellectu percipietur). É exigido assim que “o
conhecimento seja limitado de acordo com a representabilidade dos objetos que
são ‘imagináveis’, em vez de ser estendido até os noúmenos puros – já que nunca
se pode saber se realmente existem objetos na experiência que correspondam a
estes” [30].
Apesar de ser um manuscrito inacabado que
Descartes não decidiu publicar, as Regulæ são consideradas pelos fundadores da tradição neokantiana: Paul Natorp,
Ernest Cassirer e Heinz Heimsoeth, a melhor expressão da filosofia moderna e,
por assim dizer, a sua certidão de nascimento. A boa recepção que essa obra
teve entre os neokantianos, e a sua leitura feita da perspectiva
especificamente criticista, não puderam deixar de exercer forte influência sob
a concepção inicial de Husserl da Teoria do Conhecimento como Filosofia
Primeira. De fato, basta lembrar que o ponto forte da leitura neokantiana de
Descartes foi justamente a exposição do programa e da tarefa da Filosofia
Primeira como sendo a “busca e o estabelecimento de um critério geral de
verdade.” [31]
A obra de
Natorp sobre a teoria do conhecimento de Descartes[32], que ele apresenta como
uma pré-história do criticismo, viria exercer influência na concepção de
Husserl tanto da teoria do conhecimento quanto da filosofia cartesiana. Para
Natorp, a teoria do conhecimento não é uma simples parte da filosofia de
Descartes, não é um método, mas trata-se antes do componente fundamental que
permite considerar em seu conjunto a doutrina cartesiana. Natorp não quer dizer
que Descartes já possuía uma epistemologia no sentido estrito da filosofia
transcendental de Kant (ciência da razão ou da verdade), mas que ele já tinha a
ideia de uma tal ciência, e que toda sua filosofia comporta uma remissão a essa
ideia, embora outras intenções assumidas por Descartes tenham acabado por
obscurecê-la. Natorp, porém, acredita que é possível reconhecer a ideia de uma Erkenntnistheorie
na filosofia cartesiana e demonstrá-la nos seus aspectos mais decisivos. Assim,
ele tenta exprimir a relação entre Descartes e a filosofia crítica, e descreve
a filosofia de Descartes como uma pré-história do criticismo[33].
O filósofo
Jean-Luc Marion detectou nas Regulae de Descartes um tipo diferente de ontologia
que ele chamou, no seu estudo “Sur l'ontologie grise de
Descartes”,
de “ontologia cinza”. A cor cinzenta dá indicação aqui a um embaçado, à semi-cobertura
de um “ser” que encontra-se meramente insinuado em tal ontologia. Marion vê as Regulæ como uma reflexão crítica que
Descartes teria reservado a Aristóteles e, de maneira a confirmar essa
hipótese, ele esforça-se em demonstrar todo o aporte aristotélico da obra. Na
visão que aqui se defende, Descartes não contradiz os conceitos aristotélicos,
mas antes os traduz num novo universo conceitual conforme um sutil desvio de
assunto. Ele estabelece uma relação crítica com os tópicos dos temas
aristotélicos. O conceito de Mathesis universalis, por exemplo, seria
assim uma réplica à matemática comum de Aristóteles.
As Regulæ respondem à metafísica
aristotélica na forma de uma epistemologia útil e operatória que não aborda os
temas metafísicos senão indiretamente, operando sobre eles uma modificação
profunda: “a separação das ‘Regulæ’
com o pensamento aristotélico deve-se então, bem mais do que a uma ‘crítica’
dos temas metafísicos, a um seu redobramento e esfacelamento por uma construção
de modelos epistemológicos.”[34] O interesse não é mais
a natureza usiológica (essencial ou substancial) da coisa e sim a determinação
da inteligibilidade (epistemológica) do objeto.
Deve-se
recordar que a unidade da ciência aristotélica devia-se à comum referência à ousia.
Ora, as Regulæ não se reportam a uma suposta
ordem natural, tudo é reconduzido ao ego, a ciência cartesiana recebe sua
unidade do intelecto. A constituição da ordem do conhecimento se perfaz em destituição
das categorias do ser, a coisa se “desrealiza” em objeto, há um desmantelamento
do eidos em função da construção do objeto.
Sobre a Mathesis
universalis, Marion observa que Descartes elimina o ens in quantum ens para
colocar no seu lugar todas as primeiras coisas em geral suscetíveis de
conhecimento por uma mente que filosofa segundo a ordem. A Mathesis
universalis se declina então segundo a ordem, e não mais segundo o ente
enquanto ente. Ela designa uma certa ciência que se engendra na universalidade
da consideração de tudo o que é cognoscível, independentemente do que seja e
independentemente do domínio ôntico a que pertença[35].
A
Mathesis resta indiferente à variação de seus objetos. Faz-se abstração de
toda matéria, e o que é retido no ente que se ordena (que se conforma) ao
intelecto cognoscente é aquilo que ele oferece de ordem e de medida. Assim, com
relação ao primado, fica estabelecido que qualquer termo pode valer como
primeiro, desde que apresente o máximo possível de simplicidade e de
facilidade. O que significa que, nas questões que o intelecto se propõe
solucionar, os problemas devem ser resolvidos partindo-se do mais simples, em
ordem, até outros problemas mais difíceis e complexos.
2.2 As Meditações sobre
Filosofia Primeira
As Meditações
sobre Filosofia Primeira são constituídas de seis meditações nas quais se
busca demonstrar, entre outras coisas, a existência de Deus e a distinção entre
alma e corpo (in quibus Dei existentia & animæ a corpore distinctio
demonstrantur).
Na Meditação I, segue,
entre outras coisas, o argumento de que todas as opiniões que admitimos ao
longo da vida, mesmo as crenças mais básicas, podem ser colocadas sob a
suspeita de falsidade; desta possibilidade, o argumento faz apelo então ao fato
de que todas as crenças são, com efeito, suscetíveis de dúvida.
Assim, nenhuma
ciência não é ainda uma ciência rigorosa, absolutamente fundada, pois não está
imune ao engano nem isenta de ser colocada em questão. Na apresentação que
Husserl faz da primeira meditação de Descartes, ele observa que, se temos a
pretensão de atingir uma ciência universal “através de uma edificação
absolutamente segura e sistemática”, é preciso “fazer tabula rasa (...)
de todo conhecimento aceito até aqui, qualquer que ele seja”, tomando como
princípio “nada admitir que não seja tão seguro que não resista absolutamente a
não importa qual dúvida concebível.”[36] Ora, se não devemos reconhecer validade a
nenhuma esfera que tombe sob o critério da dúvida possível, então o primeiro a desaparecer
nesse procedimento é o “universo inteiro (...), a totalidade desse mundo que
nos é dado por intermédio de nossa sensibilidade.”[37]
Na Meditação II, segue,
entre outras coisas, o relato de como a mente, no uso de sua própria liberdade,
decide levar a cabo a operação proposta de estender o alcance da dúvida até
onde for possível, na esperança de se deparar com algum limite, isto é, algo
que seja, por si mesmo, indubitável, capaz de barrar o caminho à dúvida. A
mente se põe, portanto, a remover todas as coisas que admitem, o mínimo que
seja, algum motivo de suspeição. Para isso, sua investigação deve prosseguir
até onde suceda a ela conhecer algo certo, ou então, caso isso não seja
possível, tornar evidente pelo menos que a única certeza é a de que nada há que
seja perfeitamente certo. É aqui que ocorre a Descartes que mesmo que o mundo
inteiro não passe de ilusão e que seu próprio corpo não exista, nada disso basta
para fazer com que eu, que penso, seja capaz de duvidar que sou, porque, para
pensar-me como não existindo, a primeira condição é justamente que eu seja. Portanto,
o eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeiro toda vez que proferido ou
concebido pela mente. Descartes resolve assim o problema do ponto arquimediano
– sobre o primeiro dado firme, evidente e indubitável, capaz de resistir ao
critério da apoditicidade, ou seja, permanecer intacto após ser submetido a
todas as dúvidas concebíveis:
(...)
uma coisa é indubitável: justamente o fato que eu duvido, e doravante o
fato de que esse mundo me aparece por intermédio de meus sentidos (...)[38].
De fato, na condição de realidade absoluta e indubitável, o sujeito que
medita não retém senão a si mesmo enquanto ego puro de suas cogitationes,
o qual existe indubitavelmente e não pode ser suprimido mesmo se o mundo
inteiro não existisse. Desde então o eu assim reduzido realizará um modo de
filosofar solipsista[39].
Na Meditação III, segue,
entre outras coisas, a regra geral de que “tudo aquilo que percebo muito clara
e distintamente é verdadeiro”[40] e ali se introduz o argumento que parece a
Descartes o principal dentre os argumentos que depõem a favor da existência de
Deus; a saber, “que a ideia que reside em nós de um ente sumamente perfeito
possui tanta realidade objetiva, isto é, participa por representação de tantos
graus de ser e de perfeição, que não pode ser senão a partir de uma causa
sumamente perfeita” (idea entis summe perfecti, quæ in nobis est, tantum
habeat realitatis objectivæ, ut non possit non esse a causa summe perfecta).
A ordem que Descartes se
propôs seguir nas Meditações é a de começar pelas noções mais básicas,
encontradas na mente, para depois passar a outras, decorrentes por necessidade
das primeiras. Seguindo essa ordem, o filósofo distribui seus pensamentos por
gêneros, distinguindo-os pelo critério da verdade e da falsidade. Os
pensamentos que parecem constituir imagens das coisas são denominados ideias: o
pensamento de um homem, de uma quimera, do céu, de um anjo, etc. Os
pensamentos, por sua vez, que assumem o modo do querer, do negar, do desejar,
etc., sempre por referência a algum sujeito (subjectum), são chamados de
vontade, afeto, juízo, etc., e constituem certos modos de pensar.
Descartes salienta, a
respeito das ideias, que quando são consideradas em si mesmas, sem referência
às coisas, não podem ser chamadas propriamente de falsas. A falsidade, além
disso, sequer pode ser atribuída à vontade, pois o querer é sempre verdadeiro,
mesmo que seja o querer de algo que não existe. Só o juízo, portanto, é
suscetível de comportar falsidade, quando reporta a ideia a algo de externo a
ela, postulando haver entre ambos uma semelhança ou conformidade. Se me limito
a considerar as ideias apenas como certos modos do pensamento, sem reportá-las
a outra coisa, elas só poderão, no máximo, dar ensejo a alguma matéria de erro.
As ideias podem ser
divididas em: (a) inatas; (b) adventícias; (c) criadas pela imaginação. Algumas
ideias, com efeito, não parecem ter sido produzidas por mim, e sim obtidas de
certas coisas situadas fora de mim. Outras, no entanto, não parecem ter sido
obtidas de outro lugar a não ser do próprio pensamento, conforme sua natureza.
Parece, de algum modo, que minha razão foi instruída pela natureza a estimar as
ideias obtidas de fora como semelhantes às coisas que elas representam. Um dos
motivos para essa crença é que tudo indica que tais ideias não dependem, em
absoluto, de nossa vontade para serem como são. Descartes, quando menciona
acima que foi instruído pela natureza, está a dizer que foi levado a acreditar
naquelas coisas por um impulso espontâneo, e não por uma luz natural – que é
aquela que me mostra que, ao duvidar, é necessário que eu seja. Os impulsos
naturais, por sua vez, não são tão dignos de confiança, a julgar pela
experiência tida com eles no passado.
Apesar de estabelecer que
algumas ideias são adventícias, provenientes de fora, Descartes observa que não
se trata de uma origem necessária, pois nada impede que haja, assim como
acontece com os impulsos espontâneos, alguma faculdade totalmente desconhecida que,
atuando em sigilo dentro de nós, produza as ideias que costumamos referir às
coisas externas. Descartes faz notar, porém, que mesmo que as ideias
adventícias procedam de algo externo à mente, isso não significa,
necessariamente, que elas sejam semelhantes às coisas. Parece, pelo contrário,
que o mais das vezes há discrepância entre o objeto e sua ideia, como, por
exemplo, na que há entre a ideia do sol, recebida pelos sentidos, e a ideia do
sol adquirida por noções astronômicas. Enquanto que, na primeira, o sol se
apresenta muito pequeno, na outra a mente entende que ele é diversas vezes
maior do que a Terra. A ideia, pois, que parece emanar mais diretamente do sol
é a que, na verdade, menos se lhe assemelha.
Enquanto que as ideias
são apenas modos de pensar, não há entre elas nenhuma diferença. Mas assim que
elas passam a reportar-se a algo, então há diferença, visto que uma ideia está
a representar uma coisa, outra, outra coisa. Mas, na medida em que as ideias
representam substâncias, elas contêm mais realidade objetiva do que aquelas que
só representam modos ou acidentes, “ou seja, elas participam por representação
de mais graus de ser ou de perfeição” (c’est-à-dire participe par
représentation à tant de degrés d’être et de perfection). Daí, sem dúvida
que a ideia referente a Deus, que é infinito, possui mais realidade objetiva do
que qualquer ideia reportada a alguma substância finita.
Logo, a ideia que reside
em nós, de um ente sumamente perfeito, não pode ter sido extraída dos sentidos,
nem mesmo ter sido produzida pela mente, pois contém mais realidade objetiva (plus
realitatis objectivæ in se continent) do que a mente é capaz de produzir,
ela “participa por representação de tantos graus de ser e de perfeição” que sua
causa deve possuir, na mesma medida, tanta perfeição quanto há na coisa
produzida. Quando fazemos a comparação entre a ideia de Deus e a ideia de uma
máquina perfeita que fora, de começo, concebida pela mente de algum artífice,
obtemos com isso ilustrar que a ideia de Deus, ao residir em nós, tem tanta
perfeição que não pode ter senão Deus ele mesmo como sua causa.
Descartes observa
que, do ponto de vista da luz natural, é manifesto que deve haver na causa
eficiente e total tantos graus e ordem de perfeição, pelo menos, quanto existe
em seu efeito, visto que o efeito só recebe sua realidade da causa. O mesmo
grau de ser, portanto, que há no efeito, deve ter existido na causa. Resulta
evidente também que nenhum efeito pode ter recebido sua realidade do nada,
muito menos a ideia de perfeição pode ter recebido sua realidade de algo menos
perfeito que ela própria. Isso é válido tanto para a realidade atual e formal
(a ideia como modo do pensamento ou como evento mental), quanto para a
realidade objetiva (a ideia que representa alguma coisa).
As ideias, quando tomadas
em si mesmas, são apenas modos de pensar, sem representação. Mas na medida em
que as ideias representam alguma coisa, deve ter havido, para isso, uma causa
formal ou atual. Acrescenta Descartes que toda ideia é uma obra da mente. Portanto,
que a ideia tenha realidade formal, segue-se que só pode tê-la recebido da
própria mente, na qual as ideias são modos ou feitios do pensamento. Mas que a
ideia tenha esta ou aquela realidade objetiva, diferente de outras, deve-o ela
certamente a outra causa, e esta última comporta, no mínimo, tanta realidade
formal quanto a ideia contém de realidade objetiva. É absurdo então supor que a
ideia contenha algo que a causa não contenha, na mesma proporção, porque assim
a ideia teria obtido sua realidade objetiva do nada. E embora a ideia, presente
no intelecto, seja imperfeita, seguramente que ela não é um nada nem pode ter
recebido sua realidade do nada.
Resulta, então, que, pelo
menos com relação às causas primeiras e principais, deve ser dito que lhes
pertence por natureza o modo de ser formal. É possível admitir que uma ideia
atue na geração de outra, no entanto, isso não progride infinitamente, devendo
parar, afinal, em uma primeira ideia. A causa desta ideia, por sua vez, surge
como uma espécie de arquétipo que contém “formal e efetivamente toda realidade
e perfeição que na ideia está contida apenas objetivamente ou por
representação” (archetypi, in quo omnis realitas formaliter et en effet
contineatur, quæ est in idea tantum objective). As ideias, na medida em que
aparecem sob o modo de imagens, podem ser um tanto indigentes ou deficitárias
em relação à perfeição das coisas de que foram tiradas. Por outro lado, elas
nunca contêm algo maior ou mais perfeito do que essas coisas.
Uma de minhas ideias,
por conseguinte, possui tanta realidade objetiva que sou obrigado a concluir
que a causa dela não pode estar em mim, nem formal nem eminentemente. De onde
se segue, com absoluta necessidade, o fato de que não estou só no mundo, pois a
causa dessa última ideia também existe.
Nas Meditações IV,
V e VI, Descartes avança a conclusão da Meditação III e obtém com ela
demonstrar a existência das coisas corpóreas: “o
ensinamento da natureza me informa que as ideias das coisas sensíveis em mim
vêm de coisas sensíveis fora de mim; acontece que Deus, a fonte do ensinamento
da natureza, não é um enganador; portanto, existem coisas corpóreas fora de mim”[41].
Diz Husserl a
respeito de tais argumentos que o ego, depois de instaurar na primeira
meditação o modo de filosofar solipsista,
(...) colocar-se-á
no encalço das vias que possuem um caráter apodítico, e pelas quais ele poderá
reencontrar, em sua interioridade pura, uma exterioridade objetiva. (...)
Descartes procede deduzindo de início a existência e a veracidade de Deus,
depois, graças a elas, a natureza objetiva, o dualismo das substâncias finitas,
em uma palavra, o terreno objetivo da metafísica e das ciências positivas,
assim como as próprias ciências. Todas essas inferências se cumprem seguindo,
justamente, os princípios imanentes ao ego, que lhe são “inatos”.[42]
Descartes toma a
percepção clara e distinta como um critério de aferição daquilo que é
verdadeiro. Por conseguinte, a série de demonstrações acima depende da clareza
e da distinção do conhecimento do ego cogito e do conhecimento de Deus
que não é enganador. No entanto, não é nas Meditações que Descartes
define a clareza e a distinção, e sim nos Princípios da Filosofia.
No
artigo 45 dos Princípios, Descartes define o conhecimento claro como
“aquilo que é manifesto a um espírito atento”. Ver com clareza é concentrar a
atenção e exercitá-la no ato mesmo de ver, é dispor os olhos a fitar
atentamente os objetos que se apresentam diante deles e divisá-los segundo suas
notas características. O conhecimento distinto, por sua vez, é definido como
uma apreensão de tal modo precisa, de tal modo circunspecta, que só contempla
no objeto aquilo que aparece manifestamente nele, sem nada acrescentar de
estranho. A distinção surge de uma firme resolução de manter absolutamente
separadas todas as percepções que não estão claramente contidas na percepção
imediata do objeto, e de só afirmar como verdadeiro o que é absolutamente
reconhecido como tal. Assim, Descartes conclui no artigo 46 que o conhecimento
pode ser claro sem ser distinto, mas que ele não pode ser distinto sem ser
claro.
Brentano,
em sua Psicologia do Ponto de Vista Empírico, interpreta a noção
cartesiana de evidência a partir desses dois artigos dos Princípios.
Para ele, a experiência da clara et distincta perceptio, uma vez
formalizada nas assim chamadas regras da verdade, supõe, salvo engano,
uma aplicação do princípio de não-contradição. Se a visão de Brentano foi
certeira, a regra poderia ser então reformulada em termos aristotélicos: o que
eu percebo mui clara e distintamente contém a verdade, logo, não pode ser
verdadeiro e falso ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Brentano está
convencido de que a conclusão acima pode ser extraída do exemplo que Descartes
oferece em seguida para esclarecer a expressão clare et distincte: uma
dor violenta sentida por um homem seria clara, mas nem sempre distinta, na
medida em que frequentemente o homem “que sente a dor a confundiria com o juízo
obscuro que ele emite sobre a natureza da dor.”[43]
Assim, para Descartes, uma “percepção clara, mas não distinta, seria aquela
que não seria clara senão parcialmente”; ao passo que a percepção distinta “não
contém em si nada que não seja claro”[44]. Os homens são induzidos ao erro pelo costume que têm
de incluir na percepção imediata de uma dor o juízo obscuro (judicium
obscurum) que emitem sobre a natureza da dor. A distinção é a única percepção que pode evitar esse erro do juízo, pois, se uma
coisa clara para
Descartes é o que é perfeitamente consciente, uma coisa distinta “é suficientemente consciente para excluir toda
confusão com outra coisa.”[45].
Se a interpretação de Brentano foi certeira, e se
houve, da parte de Descartes, uma aplicação do princípio de não-contradição na
formulação dos critérios da verdade, então é certo que há um privilégio desse
princípio no estabelecimento das distinções metafísicas. Vejamos
como se dá esse privilégio. Será lícito afirmar que, para Descartes, toda vez
que nós temos uma ideia, nós a remetemos a alguma noção primitiva: substância,
número, figura, movimento, pensamento, extensão, etc. Caso nos ocorra a ideia
de “figura” ou de “movimento”, e esta ideia seja clara e distinta, ela será
imediatamente vinculada à ideia de corpo, de substância extensa. As ideias
tornam-se mais claras quanto mais propriedades são reconhecidas como estando
verdadeiramente nelas.
Quando,
com uma mente atenta, eu exibo o conteúdo de uma ideia clara, esse conteúdo é
imediatamente ligado a uma essência, a uma propriedade essencial, ele é
remetido à noção comum de “corpo” ou de “pensamento”, que é o seu atributo
essencial e que se identifica com a substância (substância extensa ou
substância pensante). Existem, porém, outros atributos da substância que não se
identificam com ela, mas que lhe são inerentes. Estes são chamados de modos. Na
visão clara de uma ideia, os modos podem estar misturados com os atributos
essenciais sem se distinguirem deles. A mistura, como sabemos, é uma confusão.
Na visão que, além de clara, é distinta, essa confusão não acontece.
Com
efeito, quando, com uma mente atenta, eu exibo o conteúdo de uma ideia
distinta, esse conteúdo é imediatamente referido a uma essência, só que, nessa
exibição, eu separo tudo o que é contraditório com a essência e reporto a ideia
apenas à propriedade substancial. A visão distinta afasta tudo o que é
contraditório com a essência e só inclui na ideia o que pertence essencialmente
a ela. A distinção é, portanto, uma exclusão do que contradiz a ideia.
Nas
Meditações, Descartes aplica efetivamente esse método de “exclusão do
contraditório” para tornar as ideias cada vez mais claras e distintas. Assim
procedendo, ele consegue demonstrar o que define precisamente a alma e o que
define precisamente o corpo e a distinção real que há entre ambos:
(I)
Com relação à alma, cumpre dizer que a única propriedade que não pode ser
separada de mim, sem que eu deixe de existir, é o próprio pensamento. Quando
Descartes considera o “ego cogito”, ele percebe que as partes do corpo
(braços, pernas, etc.) podem ser amputadas do “eu” sem que ele deixe de ser o
que é, e que mesmo os eventos da mente como sentir, imaginar, podem ser retirados
do “eu” sem que ele deixe, por isso, de existir. A única propriedade que não
pode ser separada do “eu” é justamente o pensamento, é o único atributo que não
se lhe mostra contraditório, o único, com efeito, que não pode ser afastado da noção daquilo que
sou. Descartes reserva então o título de coisa pensante (res cogitans)
para designar esse ente singular, que existe enquanto pensa. Esta res,
no entanto, pede uma maior determinação, que lhe vem da noção de substância. Agora
que sou capaz de distinguir bem que nada
pertence mais essencialmente à minha natureza do que o pensamento, dou-me conta
que faculdades como imaginar, sentir, podem ser afastadas de mim sem
comprometer em nada minha existência, ao passo que o inverso não pode ser
concebido, isto é, a imaginação e o sentir não podem existir sem que haja a substância
pensante. Só o pensamento não pode ser separado de mim sem que eu deixe de
ser o que sou, logo, a essência da minha alma é ser uma substância pensante.
(II)
Com relação ao corpo, cumpre dizer que as coisas que são tocadas, vistas, ouvidas, possuem
menos clareza e distinção do que eu mesmo, quando penso nelas. Consideremos
um pedaço de cera, diz
Descartes: parece não haver nada nele que não seja manifesto, de imediato, à
mente. Sua dureza, sua cor, sua temperatura, o ruído que ele faz ao ser
golpeado com a mão, etc. Contudo, ao aproximar a cera do fogo, tudo que de
evidente havia nela, do ponto de vista dos sentidos, se desfaz, não sobrando
senão uma massa desfigurada em nada semelhante à cera. Não obstante, ninguém
nega que se trata do mesmo pedaço de cera de antes. Fica claro, assim, que
aquilo que constitui a cera, fazendo-a ser concebida como tal pelo
entendimento, não se reduz à doçura, nem à fragrância, nem à dureza, nem nada
que seja referente aos sentidos. O que resta da cera, depois que removemos as
qualidades sensíveis, é unicamente a extensão.
Só a extensão não pode ser separada da cera sem que
ela deixe de ser o que é, logo, a extensão é o seu atributo essencial, e ela é
uma substância extensa. No entanto, a percepção clara e distinta da cera como
extensão não é um ato deixado a cargo da visão, nem do tato, nem da imaginação,
nem de nenhum dos órgãos sensoriais. Trata-se – como diz Descartes – de uma
inspeção só da mente.
E com isso vemos que as ideias claras e distintas são
também independentes dos sentidos, elas são inatas à mente. A propriedade
ineliminável da matéria é a extensão, a propriedade ineliminável da alma é o
pensamento. As outras propriedades são elimináveis sem que matéria e alma
deixem de ser o que são. Semelhantemente, a ideia de Deus é a ideia mais clara
e distinta de todas porque nela o atributo essencial da infinitude é
reconhecido imediatamente. Ou seja, Deus é infinito, e disso se deduz que suas
propriedades são também infinitas: Ele é perfeito (e existir é uma perfeição e
Ele não pode não existir), Ele é sumamente poderoso, sumamente bom e não pode
ser enganador, etc.
Contudo, o critério da clareza e a distinção, se por
um lado me assegura que tudo o que eu percebo clara e distintamente é
verdadeiro, por outro lado, ele não me dá garantia de que o conhecimento
verdadeiro corresponda a alguma coisa fora de minha mente. Onde ir buscar essa
garantia? É aqui que Descartes se vê obrigado a procurar outro princípio que
remeta para além do “eu penso”, e onde ele cai numa espécie de círculo
epistemológico. Ou seja, ele faz uso do critério da evidência para provar a
existência de Deus e faz uso da ideia de Deus para validar o critério da
evidência.
2.3 O problema do círculo epistemológico
O resumo que fizemos
acima contém indicações dos pontos que parecem ser os de maior interesse para o
projeto da fenomenologia. Assinala-se, porém, que a dedução que vai da
existência e veracidade de Deus até a existência e veracidade da natureza, das
substâncias, etc., cai num “círculo epistemológico” que, na visão de Husserl[46], coloca todas as meditações
que se seguem a girar em torno de si mesmas sem sair do lugar de onde tinham
partido. A saber: que Deus me assegura que as coisas percebidas clara e
distintamente são verazes, mas eu só conheço Deus pela ideia clara e distinta
que tenho Dele. Husserl vê entre as duas afirmações um vaivém vicioso[47] que impede Descartes de
resolver o problema da transcendência: como uma interioridade pura pode atingir
uma objetividade transcendente à consciência? Por fim, esse vaivém redunda no
fracasso da tentativa de validar a evidência a partir do recurso à veracitas
dei. Na parte histórica das lições sobre Filosofia Primeira, Husserl
diz a respeito:
Ora, se o “eu puro” em
sua consciência tem a experiência sensível de um mundo objetivo e edifica suas
ciências por seus atos de conhecimento, em que medida ele não é puramente uma
posse imanente de aparições subjetivas e de juízos produzidos subjetivamente em
evidências subjetivas? Se é a evidência, se é a intuição da razão que confere
aos juízos científicos a preeminência sobre os juízos vagos e cegos da vida
cotidiana, nem por isso ela deixa de ser um evento subjetivo da consciência.
Que é isto que nos autoriza a atribuir a este caráter subjetivo o valor de
critério de uma verdade válida em si, de uma verdade que, para além do vivido
subjetivo, pode pretender uma validade? (…) Vemos Descartes aqui tentando
demonstrar a legitimidade da evidência e de seu alcance transsubjetivo e ele
tomba em círculos viciosos que não tardaram a ser percebidos e que
frequentemente foram deplorados. Ele deduz, pouco importa como, da finitude do
ego humano puro a existência necessária de Deus – que Deus não poderia nos
enganar com o critério de evidência. Desde então é legítimo recorrer a esse
critério. E, por ele guiado, Descartes conclui a validade objetiva da
matemática e da ciência matemática da natureza, e, portanto, do ser verdadeiro
da natureza tal como é conhecido pela ciência.[48]
Husserl volta a
mencionar o círculo em Filosofia Primeira II, ao tratar da problemática crítica
do começo, perguntando-se se ele próprio, por acaso, não está a começar também
com um círculo crítico-gnosiológico. Desde então, a ciclofobia “se torna um topos
regular na crítica husserliana (…)”[49].
Sabe-se, porém, que a
objeção a Descartes de circularidade nas suas provas não é de hoje, ela já
havia sido feita por críticos contemporâneos do filósofo como Mersenne, Arnauld
e Gassendi. Estes já haviam feito notar na sua época o ciclo vicioso escondido no
argumento da garantia mútua da certeza: Deus me assegura que as coisas
percebidas clara e distintamente são verazes, mas eu só conheço Deus pela ideia
clara e distinta que tenho Dele[50]. Parece então que a
crítica “ciclofóbica” de Husserl só repete a mesma objeção: de que as Meditationes
não saem do lugar na hora de fornecer a justificação última da veracidade
do conhecimento extra mentis.
O quadro crítico no interior do qual Husserl considera
a filosofia cartesiana foi de certa forma delineado pela interpretação de
Descartes que prevaleceu na França na época de fundação da fenomenologia. A
saber, a interpretação do filósofo Martial Guéroult (1891-1976), que vê
Descartes como um racionalista de estrita observância. O que essa tradição
predominante tem a dizer com relação ao problema do círculo epistemológico? De
que modo ela se pronuncia sobre isso, por exemplo, na clássica interpretação de
Guéroult, exposta no livro “Descartes segundo a Ordem das Razões”?
Guéroult admite que é impossível chegar a uma solução
rigorosa do problema do círculo vicioso, mas ele afirma em seguida que essa
impossibilidade permite “precisar a verdadeira natureza do problema”[51]. Como se sabe, a tese de Guéroult parte da carta de
Descartes a Mersenne de 24 de dezembro de 1640:
É notável, em tudo o que escrevi, que não sigo a ordem
das matérias, mas somente a das razões, isto é, que não pretendo dizer em um
mesmo local tudo o que pertence a uma matéria, porque me seria impossível
realizar a prova adequadamente, havendo para isso algumas razões que devem ser
tiradas de pontos mais distantes do que outras; porém, raciocinando por ordem a
facilioribus ad difficiliora, deduzo o que posso, tanto de uma matéria,
quanto de outra – o que é, na minha opinião, o verdadeiro caminho para
adequadamente encontrar e explicar a verdade. Quanto à ordem das matérias, ela
só é boa para aquelas cadeias em que todas as razões estão soltas e podem
referir-se tanto a uma dificuldade quanto à outra.
Trata-se
de um nexus rationum através do qual Descartes recomenda que “as coisas
que são propostas como primeiras devam ser consideradas sem a ajuda das
seguintes e que as seguintes devam em seguida ser dispostas de tal modo que
elas sejam demonstradas apenas pelas coisas que a precedam”[52].
Para isso, Descartes distingue entre ordem sintética e ordem analítica a fim de
situar “doutrinas iguais em lugares diferentes”[53].
No Discurso do Método e nas Meditações a ordem é analítica, ao
passo que nas Segundas Respostas e nos Princípios a ordem é
sintética.
Na
ordem sintética, o procedimento consiste em pôr diante dos olhos do leitor os
resultados já alcançados na investigação, de modo a fazê-lo compreender num
único relance a demonstração. É “a ordem da ratio essendi em que as coisas
estão dispostas quanto à dependência real de uma em relação às outras”[54].
Na ordem analítica, por sua vez, o procedimento consiste em ensinar o método
pelo qual aquelas mesmas coisas foram inventadas (inventio). A ordem
analítica, portanto, é uma ordo inventionis, uma ordem das descobertas.
Nas palavras de Guéroult, é uma “ordem da invenção (…) da ratio cognoscendi.
Ela se determina segundo as exigências de nossa certeza, ou seja, é o
encadeamento dessas certezas que a tornam possível”[55].
As
Meditações, na visão de Guéroult, são a obra de Descartes que permitem
compreender singularmente o conjunto de sua doutrina, e a apreciação adequada
dessa obra, por sua vez, depende da ordem analítica das razões, caso seja
evitada a confusão entre ela e a via sintética e seja colocada em evidência a
ordem da análise seguida nas seis meditações. As teses metafísicas ali
presentes estão ligadas a três grandes problemas: (I) o do “fundamento da
verdade”; (II) o dos “limites de nossa inteligência”; (III) o do “fundamento
das ciências da natureza”[56].
Na abordagem desses três problemas, a trajetória que se estabelece segundo a
ordem analítica das razões é a seguinte:
(…)
partimos do conhecimento certo do meu eu que, como primeira verdade para o
sujeito (Cogito), é para mim o primeiro princípio. Em seguida, graças ao
conhecimento desse primeiro princípio, chegamos ao conhecimento da existência
de Deus, isto é, o conhecimento de que a ideia de perfeito tem um valor
objetivo. Tal conhecimento, por sua vez, torna possível, nos seus respectivos
limites, o conhecimento do valor objetivo das ideias claras e distintas, e
depois o conhecimento do valor objetivo das ideias obscuras e confusas. Estamos
às voltas com uma linha que jamais se inclina, indo sempre do mais simples ao
mais complexo, a facilioribus ad difficiliora, e em que Deus é apenas um
anel como qualquer outro numa cadeia de conhecimentos. Passa-se, assim, por
todas as condições que esgotam gradualmente o conteúdo de minha alma;
legitimando a cada condição uma nova espécie de conhecimento, e determinando,
por fim, seus limites.[57]
Se
o Cogito então é posto como verdade primeira, Deus segue-se a ele apenas
na quarta posição de acordo com a ordem: (I) cogito; (II) minha
existência; (III) a “prioridade da consciência de minha alma sobre o meu
corpo.” [58]
Assim, os princípios que se constituem como causa primeira mudam conforme a
ordem racional que se decide seguir. Na ordem da síntese (ratio essendi),
o primeiro princípio é Deus, tal como na Ética de Spinosa. Na ordem da
análise (ratio cognoscendi), o primeiro princípio é o eu pensante. Deve
ser notado que a ciência filosófica não se ordena conforme uma estrutura aut-aut
de alternação entre um ou outro princípio (Cogito e Deus), mas conforme
uma estrutura et-et de complementação entre esses princípios:
(…)
a ciência filosófica pode e mesmo deve reclamar dois princípios primeiros, sem,
contudo, contradizer-se. Não apenas um ou o outro aparecerão como primeiro,
segundo o ponto de vista que tomamos, mas um e o outro serão primeiros,
pois é necessário se colocar nos dois pontos de vista ao mesmo tempo.[59]
A
certeza do cogito, porém, não segue sem inconvenientes: trata-se de uma
certeza indiscutível de facto, mas nem por isso ela é uma certeza
justificada de juris, porque ela encontra um limite na atualidade e na
pontualidade do Cogito, quer dizer, ela só é certeza no instante em que
o eu pensa em si mesmo. Sua evidência, portanto, não vale mais fora dos limites
em que está encerrada: “(...) o Cogito tem uma evidência incontestável
no interior dos limites de sua intuição atual, mas ele não a tem mais para além
daqueles limites, quando ele é mantido, fora dessa intuição, apenas pela
lembrança.”[60]
Assim,
o Gênio maligno pode ameaçar a certeza que o próprio eu tem de si mesmo. Diz
Guéroult, “assim que me separo do Cogito atualizado para objetivá-lo com
relação a mim (…) eu o encontro (…) confrontado com a hipótese ainda válida do
Gênio Maligno.”[61]
Logo que meu espírito deixa de fixar-se atual e imediatamente sobre o Cogito
e dirige-se alhures, “esse ponto é engolido na noite da dúvida universal,
arrastando com ele toda a cadeia de razões”[62].
Para o autor, eu sou então forçado a recair na dúvida “em nome do direito, isto
é, em nome do princípio do embuste universal”[63].
Surge assim a dificuldade de restaurar a certeza do eu vacilante, que
transcorre no tempo indo da percepção pontual e imediata de si mesmo para a
ulterior recordação dessa percepção.
É
confrontado com esse problema que o Cogito deve então recorrer a uma
razão mais alta, que envolverá com toda evidência a refutação da hipótese do
demônio enganador. No momento em que a análise se vê constrangida a abandonar o
fio condutor que ela obtém do Cogito, surge outro fio condutor obtido da
“ideia do perfeito, originalmente presente em nós.”[64]
Por aí “se vê que Deus será o anel superior da cadeia de certezas (…) em lugar
do Cogito que será concebido somente como seu ponto de partida”[65].
Se for provada a existência necessária de Deus, seguir-se-á como resultado
necessário a destruição da hipótese do Deus enganador e, com ela, desmoronará a
ficção do Gênio maligno. De uma só vez, a dúvida metafísica que atacava as
ideias claras e distintas será abolida e todas estas ideias serão ipso facto
reinvestidas do valor objetivo do qual se achavam provisoriamente privadas.
O
salto para fora da subjetividade se dá através do princípio da causalidade (a
ideia de infinito que em mim reside não pode ter senão uma causa infinita, que
não sou eu próprio, que sou finito, mas que só pode ser Deus, que intervém como
causa eficiente). O valor objetivo das coisas exteriores, por sua vez, pode ser
tirado do princípio da correspondência, que supõe semelhança e conformidade da
ideia com seu ideado. O problema: “como provar que é efetivamente semelhante e
conforme?” é resolvido, por sua vez, no momento em que se estabelece “que a
ideia de Deus em mim é o reflexo, conforme, de uma realidade formal, arquétipo
existente fora de mim.”[66]
Para
Guéroult, o princípio de causalidade tem um papel predominante na prova, mas
ele não se realiza sem o concurso do princípio de correspondência, que com ele
se entrelaça. Graças à aplicação legítima dos dois princípios e do
entrelaçamento entre eles, “estou seguro, não apenas de que minha ideia é
necessariamente produzida pela coisa que ela representa, mas que ela lhe é
efetivamente semelhante” [67].
O
quadro da ciência será então organizado da seguinte forma:
Do
ponto de vista da ratio cognoscendi, da consciência pura, da certeza
subjetiva e das necessidades colocadas por meu entendimento, o primeiro
princípio será o Cogito. Do ponto de vista da ratio essendi,
daquelas mesmas necessidades quando são válidas para as coisas, o primeiro
princípio será necessariamente Deus, que “é o único que pode conferir certeza
objetiva às minhas ideias.”[68]
Desse modo, o Cogito é o primeiro princípio de toda ciência humana
possível, ao passo que Deus o é de toda ciência humana válida, transmutando “a veritas
rationum em veritas rei (…)”[69].
Mas Deus, na
mesma medida em que é princípio das realidades objetivas que constituem o
conteúdo dos modos de consciência, revela-se ao mesmo tempo ser o princípio
dessa mesma consciência:
Deus,
por intermédio da ideia do perfeito, não aparece mais apenas como condição do
valor objetivo de minha ciência subjetivamente necessária, mas também como
condição direta dessa necessidade subjetiva. Deus não é mais apenas ratio
essendi, mas ratio cognoscendi, pois é ele que me faz reconhecer
a desigualdade da perfeição do conteúdo de minhas diversas ideias, a
imperfeição do meu eu, do conhecimento filosófico do Cogito, quando esse
último é posto separadamente, independentemente do conhecimento do perfeito,
que é o único capaz de elevar esse Cogito a um conhecimento
perfeitamente claro e distinto. Enfim, o conhecimento de Deus modifica o
caráter de minha certeza subjetiva, estabilizando a certeza do Cogito
por uma certeza de terceira potência. [70]
Guéroult
demonstra com isso que há “uma união indissolúvel e original na nossa
consciência primeira da ideia de mim mesmo como finito e imperfeito e da ideia
de Deus como infinito e perfeito.”[71]
É neste ponto que surge o que Guéroult chama de paralogismo, de uma violação do
princípio cardinal da ordem, pois se “o Cogito serve para provar Deus e
Deus para provar o Cogito” [72],
estamos bem diante de um círculo vicioso.
Diz
Guéroult que existem dois meios de resolver o problema: “ou reduzir as duas
séries a uma só (…) ou restabelecer a completa independência das duas séries
que apenas se entrecruzariam” [73].
A solução número 1 é a assertiva de que o conhecimento do Cogito é
completado em Deus:
A
passagem a Deus é apenas o acabamento do conhecimento claro e distinto do Cogito
que, abrindo-se à plena intuição de Deus que ele encerra implicitamente e que o
sustenta, desembaraça-se daquilo que o mantinha em confusão enquanto permanecia
separado daquilo, isto é, ignorante daquilo. Há, então, uma só e mesma intuição
que se atualiza, um só e mesmo desenvolvimento da luz (…) A intuição da
natureza absoluta, única e completa, dá a evidência total e a certeza completa;
a evidência limitada e temporal do Cogito (que serve de trampolim e da
qual parece inicialmente depender a certeza de Deus) aparece então, ao
contrário, como dependente da ratio absoluta que a sustenta e arrancada,
pela autossuficiência desta razão, da precariedade temporal. [74]
A
posse da ideia de perfeição é uma conditio sine qua non para o eu
compreender-se como finito, imperfeito, a vacilar no estado de dúvida:
A
constatação do meu estado de dúvida e imperfeição, que torna indubitável a
certeza da minha existência imperfeita, coaduna-se com duas condições que,
tornando essa certeza possível, são, por consequência, tão indubitáveis quanto
ela. Essas duas condições são, em primeiro lugar: ‘para pensar, é preciso
existir’ e, em segundo, que, para me julgar falível e imperfeito, devo possuir
a ideia de perfeição, cuja realidade objetiva, por definição, incomensurável
com a realidade formal de meu eu, é irredutível a esta realidade formal. A
objetividade do ser perfeito estaria, então, imediatamente contida na
necessidade subjetiva-objetiva do juízo concernente à minha existência. [75]
A
solução número 2, por sua vez, é:
(…)
a independência recíproca da série do Cogito e da série de Deus, e seu
entrecruzamento num ponto dado. Acha-se uma natureza que se revela à nossa
intuição como fundamento que encontra em si mesmo, e não em nós, seu ponto de
apoio, como se impondo em mim a despeito de mim, e que testemunha
irresistivelmente seu valor objetivo, fazendo-me tocar diretamente no fundo de
mim mesmo o Outro que não sou eu mesmo.[76]
2.3 A constituição
onto-teológica da metafísica de Descartes
Agora, a
questão que inevitavelmente se levanta é: em que medida a filosofia de
Descartes pode reivindicar o título de metafísica, ou, então, o título de
Filosofia Primeira? Metafísica e Filosofia Primeira são idênticas da
perspectiva do cartesianismo? Vamos tentar fornecer uma resposta a essas indagações
apoiando-nos na visão sustentada por Jean-Luc Marion no seu livro “Sobre o
prisma metafísico de Descartes” [77].
A tese de
Marion fecha com uma resposta positiva a questão da legitimidade metafísica de
Descartes e a validade da própria onto-teologia como determinação fundamental
da metafísica. Marion perseguiu por mais de uma década o objetivo de constituir
o pensamento cartesiano como uma metafísica plena, e expôs o resultado dessa
longa série de investigações na célebre trilogia “Sur l’ontologie grise de
Descartes”, “Sur la théologie blanche de Descartes” e “Sur le
prisme métaphysique de Descartes”. Os três ensaios correspondem a três
disciplinas da tradição cuja relação deve ser neles explicitada e determinada:
a ontologia, a teologia e a metafísica, representadas metaforicamente pelas
cores e pelo prisma.
Na primeira
investigação, sobre a ontologia cinza, Marion debruçou-se sobre a epistemologia
“real” e “aparentemente praticada” por Descartes nas Regulae e tentou
nela descobrir a figura de uma contra-ontologia. Mais exatamente, de uma
ontologia anti-aristotélica, que, uma vez exercida pela mente (l’sprit),
autoriza-a a desqualificar a interrogação sobre a οὐσία dos entes e permite
reduzi-los, assim, à condição de “objetos”. É então que Marion fez vislumbrar a
presença de uma ontologia cartesiana, uma ontologia “cinzenta”, semi-visível,
semi-encoberta por uma doutrina da ciência certa e evidente, e nos fez
constatar como essa ontologia se desdobrou na instauração da filosofia de
Descartes.
Na segunda
investigação, sobre a teologia branca, Marion esforçou-se em situar o lugar
preciso do “primeiro princípio” e do “ente primordial” (Deus) na filosofia
cartesiana, assim como identificar a razão da ambiguidade e da polissemia do
conceito a eles correspondente. Marion partiu da visão de que a doutrina
cartesiana de 1630 sobre a livre criação das verdades eternas “constitui uma
retomada da questão medieval da analogia entis e, ao mesmo tempo, uma
transição para a problemática concernente ao fundamento e, assim, ao princípio
de razão.”[78].
Na última
investigação, sobre o prisma metafísico, Marion reúne o resultado dos dois
primeiros ensaios em função da proposta de demonstrar o que ele designa de
“figura onto-teológica” do pensamento cartesiano. O termo onto-teologia é
extraído de Heidegger, que o extraiu, por sua vez, de Kant, mas isso não
significa que Marion assuma uma posição heideggeriana, pois o objetivo não é
especular sobre qualquer “fim da metafísica”. Pelo contrário, Marion aplica o
modelo onto-teológico sobre o pensamento cartesiano de modo a harmonizar numa
mesma lógica os dois entes contemplados pela ontologia e pela teologia.
Mas essa
articulação entre a ontologia cinza e a teologia branca, diz Marion, não pode
ser operada senão no cruzamento de uma metafísica. Uma metafísica que, segundo
ele, é mais antiga do que a ontologia e a teologia juntas e que, antes mesmo de
existir como conceito, as teria governado desde a origem. É aqui que Marion
introduz a figura do prisma: “a constituição onto-teológica se exerce sobre o
pensamento cartesiano e sua evidência própria como um prisma sobre uma luz que ele
filtra: ele faz aparecer o espectro metafísico do pensamento cartesiano” [79]. Sob a ótica do prisma,
esse espectro deixa-se descobrir mesmo nos textos de aparência não-metafísica
do corpus cartesiano.
Assim,
conclui Marion, na ontologia de Descartes, há um “nada de ontologia” que se
oferece como pressuposto da própria ontologia. Descartes esvazia a ontologia para ocupar-se em fixar as
condições de representação e de pensabilidade do ente. O nada de ontologia
se marca por três operações constantemente conduzidas: uma eliminação,
uma redução e uma postulação. Essas três operações são promovidas
pela Mathesis universalis. Eliminar é não levar em conta as figuras
categoriais do ens. Reduzir consiste em considerar somente o resíduo da
coisa que permanece após a eliminação: uma objetividade minimalizada que se
oferece ao olhar como simples, vazia e uniforme. Postular significa evidenciar
o ser dos entes como aquilo que admite representação certa e indubitável, o que
equivale a existir.
Na teologia, há a introdução do conceito de causa
sui. Conceito radicalmente paradoxal, causa sui supõe uma
incompreensibilidade divina (supõe que a mente pode entender Deus, no
sentido de tocá-lo[80] de algum modo, mas não
pode compreendê-lo, ou seja, abrangê-lo dentro dos limites do
pensamento). Marion reinscreve o motivo cartesiano da incompreensibilidade de
Deus em uma história metafísica da univocidade do ser. A
figura da teologia cartesiana é apresentada como “branca”, neutra, de certo
modo uma teologia marcada pela “suspensão” e pela ausência de compromisso com
as posições teológicas da tradição, que se furta às posições tradicionais e é
como “um cheque em branco” que pode ser preenchido posteriormente com
diferentes valores e assinado com diferentes nomes. Nela, a constituição onto-teológica
é esboçada, por um lado, pela dualidade do conceito de princípio e, por outro,
pela prioridade da cogitatio. No último ensaio, o título não é tingido
então por nenhuma cor, pois a onto-teologia identifica-se com o prisma que
precede e produz as cores, ela permanece acromática ao mesmo tempo em que se
exerce sobre o cinza da ontologia e o branco da teologia e nelas provoca as
“cores metafísicas elementares” que atestam a constituição metafísica da
filosofia cartesiana[81].
É por esse
motivo que Marion, contra todas as aparências, negações e paradoxos presentes
no léxico cartesiano, diz não poder renunciar a descobrir, numa análise
espectral dos textos, um “estatuto estritamente metafísico” no pensamento
de Descartes. Seu objetivo é fechar com uma resposta positiva a questão da
legitimidade metafísica de Descartes e a validade da própria onto-teologia como
determinação fundamental da metafísica.
Para
alcançar a meta proposta, Marion deve antes verificar como a filosofia de
Descartes se comporta diante de uma tradição que havia se posicionado de
diferentes maneiras quanto à determinação conceitual e histórica do nome da
filosofia fundamental e do objeto pertencente a essa filosofia. Tais são os
filósofos que surgem no caminho dessa discussão, elencados por Marion: Santo
Tomás de Aquino, Pedro da Fonseca, Benedictus Pererius ou Bruno Pereira,
Francisco Suarez, Eustache de Saint-Paul, Scipion Dupleix, Abra de Raconis e
Rudolf Goglenius.
Face a essa
tradição, em que a determinação da Metafísica e da Filosofia Primeira oscila
numa tensão entre o estudo do ente primeiro e o estudo do ente
enquanto ente, a investigação de Marion se justifica de um ponto de vista
histórico e conceitual. Da perspectiva da história, justifica-se pela
necessidade de verificar o sentido exato em que se diz que Descartes, antes de
Kant, promoveu uma espécie de virada copernicana na metafísica, e, se houve
realmente uma virada, há que se ver como ela modificou a própria essência do
pensamento metafísico. Da perspectiva do conceito, justifica-se pela
necessidade de estimar até que ponto a filosofia de Descartes pode ser dita
legitimamente uma metafísica.
A grande
dificuldade a ser enfrentada é que o estado dos textos no corpus
cartesiano deixa a questão sobre a metafísica indeterminada e, como tal, aberta
à discussão. A obra de aparência mais metafísica de Descartes, as Meditationes
de prima Philosophia, não é chamada de “metafísica” pelo autor no instante mesmo
em que lhe ocorre a preocupação de intitulá-la. Descartes se refere ao livro
como “minha Metafísica”, ou “meu escrito de Metafísica”, para logo em seguida
dar como sugestão o título de prima Philosophia, e não o título de
metafísica, como o pronome possessivo dava a entender. A saber, quando o
filósofo francês faz chegar o texto pronto das Meditações ao seu
correspondente, o padre Mersenne, ele lhe escreve o seguinte:
Eu
enviei desde ontem minha Metafísica ao M. de Zuylichem para que ele vos
endereçe; mas ele só o fará em oito dias, já que eu lhe dei esse tempo para a
ver. Eu não pus título, mas me parece que o mais próprio será colocar: Renati
Descartes Meditationes de Prima Philosophia; pois eu não trato em particular
de Deus e da alma, mas em geral de todas as primeiras coisas que se pode
conhecer ao filosofar.[82]
A expressão
“minha Metafísica”, como nota Kambouchner[83], é uma abreviação
metonímica que significa evidentemente “meu tratado”, “meu ensaio”, “meu
escrito”, “minhas meditações”, e seu uso, sob a pluma de Descartes, equivale ao
uso de “minha Física” para se referir ao Tratado do Mundo e às partes
II, III e IV dos Principia, ou, então, ao uso de “minha Moral” para se
referir a algumas doutrinas esparsas in nuce no escrito As Paixões da
Alma. Se a função que o termo cumpre nesse contexto é a de uma simples
metonímia, é plausível supor que Descartes o achasse menos apropriado para
figurar como título principal da obra.
Portanto,
Descartes não reivindica para as suas meditações o título de “metafísicas”.
Além disso, o autor emprega o conceito de modo deveras problemático. No livro
inteiro, há apenas uma única ocorrência de “metafísica” à maneira de um hapax,
além disso, com uma conotação expressamente depreciativa: fala-se na ocasião de
uma razão tênue e metafísica de duvidar. Algo que também foi
assinalado por Marion, entre outros intérpretes, é que “metafísica” só aparece
mesmo na tradução francesa das Meditationes.
Outras
ocorrências da palavra, no restante da obra, dão margem a uma série de
ambiguidades. Numa carta a Mersenne de 1630, o termo “metafísica” é empregado
como um qualificativo e não como um substantivo, o que parece diminuir sua
relevância. Neste ínterim, Descartes falava da possibilidade de demonstrar as
verdades metafísicas. No Discurso do Método, igualmente, há duas
ocorrências na forma de adjetivos. Em carta de 1637, a metafísica é considerada
estranha e pouco comum, razão pela qual não pode ser compreendida pela maior
parte das pessoas, nem, particularmente, pelos versados nas matemáticas
(geometria e aritmética).
Surge, no
entanto, a impressão de que estamos diante de uma contradição. Pode-se
perguntar, com efeito: ora, não é da alçada da metafísica, justamente,
demonstrar a existência de Deus e a distinção entre alma e corpo? A impressão
de contrassenso aumenta, além disso, quando verificamos o número de vezes que
Descartes insiste em evocar a expressão “minha metafísica” para se referir à
sua filosofia. Mas Descartes vai mais longe: na carta que pode servir de
prefácio à tradução francesa dos Principia, o filósofo comenta a
organização do livro da seguinte maneira:
Eu
dividi <o livro dos Princípios da Filosofia> em quatro partes, das quais
a primeira contém os princípios do conhecimento, a qual pode ser nomeada a
primeira Filosofia ou bem a Metafísica: é porque, a fim de bem entendê-la, vem
a propósito ler antes as Meditações que escrevi sobre o mesmo assunto.
Mais
adiante, Descartes fixa o lugar que pertence por direito à metafísica no
sistema filosófico em que as ciências são organizadas:
(...)
a verdadeira filosofia, cuja primeira parte é a Metafísica, que contém os
princípios do conhecimento, entre os quais a explicação dos principais
atributos de Deus, da imaterialidade de nossas almas, e de todas as noções
claras e simples que estão em nós (...). Assim toda a filosofia é como uma
árvore, cujas raízes são a Metafísica, o tronco é a Física e os ramos que saem
desse tronco são todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a
saber, a Medicina, a Mecânica e a Moral.
Em que
sentido o autor emprega “metafísica” para que o conceito esteja sujeito a
tamanha indeterminação? Ele desempenha efetivamente o papel de um conceito
“técnico” na filosofia de Descartes, ou é usado indiferentemente, como uma
palavra entre outras, corrente no vocabulário filosófico da época? Vimos que a
noção de metafísica legada pelos medievais e pelos comentadores de Aristóteles
(ao oscilar numa tensão entre ontologia, teologia e Filosofia Primeira) não é
muito estável para decidir em favor de uma resposta à questão da definição
precisa do conceito.
A fim de
determinar, então, o modo como a filosofia de Descartes se inscreve no meio
dessa tensão, pode-se falar tanto de adesão quanto de ruptura com a tradição.
Por um lado, uma adesão terminológica aos termos “metafísica” e “Filosofia
Primeira”, que são efetivamente adotados, e, por outro lado, pode-se falar
também de uma inversão conceitual no significado desses mesmos termos, o que
assinala uma ruptura com o legado do passado.
Tratando em
primeiro lugar da adesão, Marion observa que, no esquema da árvore do
conhecimento, Descartes tinha em vista menos a imagem da árvore de Porfírio do
que o curso de Eustache de Saint-Paul Summa philosophica quadripartita, já
citado acima. A influência do jesuíta pode também ser presumida na definição
cartesiana de filosofia como “estudo da sabedoria”, que faz de certa maneira um
eco ao título Summa Philosophia de Eustache. É consabido que Descartes
concebeu os Princípios da Filosofia como um texto escolar de introdução
à filosofia e os propôs como uma alternativa aos manuais escolásticos, baseados
em Aristóteles.
Mas o
objetivo que se coloca em pauta, de substituir Aristóteles nas escolas, não
exclui de nenhum modo a organização aristotélica das ciências, antes a retoma.
Marion fez notar que o esquema cartesiano das três ciências principais:
metafísica, matemática e física, “reproduz o tópico das mesmas três ciências
principais segundo Aristóteles”[84], que expõe no livro E
da Metafísica o objeto próprio a cada uma delas. Em suma, a relação
entre os tópicos aristotélico e cartesiano é assim confirmado:
Aristóteles
não submete as matemáticas somente particulares (geometria, aritmética, etc.) à
ciência teológica; ele considera nada menos que uma matemática universalmente
comum a todas, καθόλου πασών κοινή, logo, uma ciência universal da quantidade e
da medida que, sem se confundir com elas, precede e torna possível as ciências
comumente ditas matemáticas. Ora, semelhante ciência meta-matemática, em
Aristóteles, se antecipa à Mathesis universalis da Regula IV, ao
menos nisto que concerne ao parâmetro da medida - aquele da ordem que é própria
à empresa cartesiana.[85]
Como Marion
nota, Descartes adere também, terminologicamente, a um significado específico
de metafísica que remonta ao τῶν μετά τα φυσικά aristotélico[86]. Na correspondência de
Descartes a Mersenne[87], encontram-se duas
caracterizações da metafísica como transgressão. As verdades matemáticas
(aritméticas e geométricas), que são nomeadas eternas, dependem completamente
de Deus, na medida em que foram estabelecidas por Ele em um gesto criador
onipotente e livre (doutrina da livre criação das verdades eternas)[88]. O que equivale a
dizer, por outras palavras, que as verdades metafísicas transgridem as verdades
matemáticas por criação. Por sua vez, as verdades físicas, na medida em que são
extraídas da experiência sensível, permanecem sem fundamento, por isso, devem
receber sua racionalidade das verdades metafísicas, que as ultrapassam. Assim a
metafísica transgride a física por fundação.
A metafísica
elaborada pelos escolásticos opera pela abstração (abstractio)
das coisas dotadas de matéria, opera pela separação da forma, tanto na
consideração do ente primeiro quanto na consideração do ente enquanto ente.
Descartes parece se referir a essa abstração através da expressão “abductio
mentis a sensibus” empregada na primeira meditação num contexto em que o
objetivo é “pavimentar a via mais fácil para afastar a mente dos sentidos”. A abductio
em que a mente é afastada dos sentidos consiste numa transgressão da física,
indo para além da sensação e do sensível, assim como numa transgressão da
matemática, indo para além da imaginação.
É assim, por
conseguinte, que o uso do conceito de metafísica por Descartes parece abrigar o
sentido de uma adesão terminológica ao vocabulário escolar. Duas hipóteses
candidatam-se a explicar essa adesão terminológica, e ajudam a medir seu
alcance. Ou Descartes ter-se-ia visto obrigado a fazer uma concessão ao termo,
corrente nas escolas, para adaptar-se ao uso habitual entre os estudantes; ou
Descartes, face a seus antecessores e contemporâneos, viu-se confrontado com a
questão de uma definição da metafísica e entregou-se então, sem mais, a essa
tarefa. Marion aposta nesta última hipótese.
Com ela,
anuncia-se a ruptura de Descartes com a tradição a partir da inversão que ele
promove no significado dos termos. Ele só vai aceitar o léxico filosófico em
vigor sob a condição de que as definições sejam outras, diferentes das
tradicionais. Para Marion, Descartes vai tomar duas decisões em favorecimento
do título Filosofia Primeira em detrimento do título Metafísica.
É esse privilégio concedido ao conceito de prima Philosophia que está
exprimido no título latino das Meditações. E o mais próprio que
está contido na carta a Mersenne, em que se faz a sugestão do título, assinala
justamente a prioridade dada à Filosofia Primeira, que preenche o sentido
requerido por esse “mais próprio”.
Com efeito,
Marion defende que há uma decisão nítida e constante de Descartes de favorecer
o título de Filosofia Primeira em detrimento do de Metafísica. A hipótese que
ele se permite levantar é a de que Descartes teria tomado duas decisões em
relação à Filosofia Primeira, duas decisões que acabam por transformar a
essência da metafísica, assim como a essência do primado. A primeira decisão é
a de ver a questão da Filosofia Primeira como mais essencial do que a questão
da metafísica. E essa resolução, na visão de Marion, diz respeito à essência da
metafísica como tal. A segunda decisão, por sua vez, é a de que o primado
conferido à Filosofia Primeira pertence à ordem do conhecimento, não mais à
ordem do ente. E o que se segue é que o primeiro cognoscível na ordem do
conhecimento é o ego.
A primeira
decisão recusa o primado da metafísica como título e como ciência. A segunda
decisão remove do sintagma “filosofia primeira” a sua antiga acepção
aristotélica para forjar um conceito novo sob o mesmo título. É assim que a
ontologia cinzenta se obscurece para abrir o horizonte para a Filosofia
Primeira; é assim que a teologia se torna “branca”, como um cheque
não-preenchido, não-assinado, para ceder à prima philosophia a
assinatura e o protagonismo na investigação dos princípios. Mas isso não
significa ausência de ontologia, nem ausência de teologia.
Mas, se é
verdade que o privilégio é concedido à Filosofia Primeira às expensas da
metafísica, como fica em seguida a relação entre as duas disciplinas? Em que
sentido se estabelece, exatamente, a hierarquia entre ambas?
Para Marion,
a chave que permite elucidar essa questão encontra-se no pequeno trecho da
carta a Mersenne que vem logo depois da sugestão do título. Descartes acha mais
próprio “Filosofia Primeira” porque ele não trata “em particular de Deus
e da alma, mas em geral de todas as primeiras coisas que se pode conhecer ao
filosofar.” Numa outra versão desse fragmento, consta: “pois eu não trato somente
de Deus e da alma, mas em geral de todas as primeiras coisas que se pode
conhecer ao filosofar por ordem.” Os advérbios particularmente e somente
foram grifados aqui de propósito, de modo a neles assinalar o aspecto
restritivo que se opõe ao geral: as Meditationes não devem ser reputadas
“metafísicas” porque nelas se considera mais coisas do que somente Deus e a
alma.
Isso permite
explicar por que o subtítulo das Meditações: “in quibus Dei
existentia et animae a corpore distinctio demonstratur” não entra em
conflito com a negação do título “metafísica” como o mais próprio a
batizar o texto. Não é porque a
demonstração respeitante a Deus e à alma esteja ausente das Meditationes
que estas não devem receber o título de “metafísicas”, mas simplesmente porque
as Meditationes não se esgotam nessa demonstração, não são redutíveis a
ela, e se deixam ampliar para um universo mais extenso: o da busca de todas as
primeiras coisas suscetíveis de conhecimento.
Portanto, a
Filosofia Primeira é mais universal do que a metafísica, e só coincide
parcialmente com ela. Para Descartes, Deus e a alma preenchem o campo da
metafísica, que se identifica com o da teologia natural, mas a sua decisão pela
Filosofia Primeira envolve um alargamento desse campo, de modo a contemplar universalmente
as primeiras coisas, não importa quais sejam nem qual seja seu primado. A
decisão de Descartes pela Filosofia Primeira anuncia uma decisão pela
universalidade. Do mesmo modo como a metafísica caracteriza-se por um
ultrapassamento em relação às matemáticas, por criação, e um ultrapassamento da
física, por fundação, a Filosofia Primeira caracteriza-se por um
ultrapassamento desse próprio ultrapassamento, em direção às coisas mais
universais. Como diz Marion[89]: “(...) a filosofia
primeira ultrapassa a metafísica estendendo-se a todo primado; assim ela
é universal enquanto primeira: basta às ‘coisas’ atestarem-se como ‘primeiras’
para que, imediatamente, a ‘filosofia primeira’ nelas confirme sua
universalidade.”
Na medida em
que cobre o domínio de Deus e da alma, a Filosofia Primeira coincide em parte
com a metafísica, mas ela estende sua consideração para além desse âmbito,
tratando das primeiras coisas em geral suscetíveis de conhecimento claro e
distinto. Assim, a prima philosophia de Descartes possui absoluta
liberdade em relação aos enquadramentos teóricos da metafísica e da teologia,
que tratam de Deus e da alma operando por simples abstração. O estilo
cartesiano de filosofar é determinado pelo primado conferido à ordem do
conhecimento. E o que tem prioridade na ordem cognoscitiva é o conhecimento do
ego, que precede tanto o conhecimento de Deus quanto o conhecimento da alma.
Pela força
da tradição, Descartes é convidado a pensar a metafísica sob o modelo da
teologia, por um lado, e sob o modelo da ontologia, por outro, que lidam com o
ente, concebido como primeiro ou como ente enquanto ente. Descartes recusa
pensar em termos de ente os princípios da filosofia. Quanto à classificação das
ciências, o procedimento cartesiano não é mais conduzido pela hierarquia dos
entes, como era entre os escolásticos. Descartes rompe com o modelo de
demarcação pela ordem das matérias para instaurar em seu lugar uma
classificação “regulada pela ordem de engendramento dos conhecimentos uns pelos
outros.” [90] Essa última ordem não
deve mais satisfação à dignidade hierárquica dos entes referidos pelo
pensamento. O primado que a filosofia reivindica não é mais tomado de
empréstimo a certas regiões ônticas, como da teologia ou da ontologia. O ente
desaparece, a ordo essendi é retirada de cena para que o interesse
filosófico seja dirigido exclusivamente para a ordo cognoscendi.
Nós
constatamos que, segundo a letra dos textos cartesianos, a metafísica torna-se
filosofia primeira, na medida em que todo ente se encontra nela considerado
não, de início, enquanto ele é, mas enquanto conhecido ou cognoscível, de sorte
que o primado passa do ente supremo (qualquer que ele seja) à instância do
conhecimento (qualquer que ele seja).[91]
Marion
propõe então a tese de que a Filosofia Primeira de Descartes é estabelecida ao
modo de uma protologia da ordem do conhecimento conforme a clareza e a
distinção. Há um primado do método, e a prima philosophia chega à
universalidade pela consideração da ordem do conhecimento, do conhecimento como
disposição e princípio de ordem. De modo que não se fala mais da ciência do
ente enquanto tal, mas da disposição na ordem do conhecimento, do conhecimento
segundo a ordem da colocação em evidência.
O gesto de
dupla decisão, sem ambiguidades, em que Descartes favorece a prima
philosophia em prejuízo da metafísica, equivale também a uma mudança
essencial na própria metafísica, que não é mais identificada como teologia nem
como ontologia. Por um lado, ela não se reduz à teologia racional, mas sem que
seja aceito, por outro lado, a sua universalização pelo conceito objetivo de ens.
Como se explica Marion, ao falar da decisão de Descartes face à tradição:
No
momento preciso em que a metafísica se constitui como uma ciência articulada –
escolarmente, mas também fundamentalmente - em uma protologia (teologia e, em
anexo, pneumatologia e cosmologia racionais) que ultrapassa uma ontologia
universal, Descartes procede inversamente: ele ultrapassa o objeto teológico da
metafísica ao recusar também sua empresa ontológica, recorrendo, nos dois
casos, somente ao primado da colocação em ordem segundo as exigências do
conhecimento certo. Uma prima philosophia intervém, em que prima não indica
nem a teologia racional, nem a ciência do campo objetivo do ens, mas a
ciência de todas as coisas enquanto dispostas em ordem pelo conhecimento -
primeiras enquanto que conhecidas. A metafísica se constitui como uma universal
protologia da colocação em evidência[92].
O que se
conclui, porém, é que a destituição da Metafísica em benefício da Filosofia
Primeira só ganha inteligibilidade sob o novo conceito de primado elaborado por
Descartes. Ao repercutir tanto sob a Filosofia Primeira quanto sob a Metafísica,
o novo primado ensina que, sob a condição da refundação nele operada, os dois
termos poderão ser empregados quase indiferentemente. É sob o quadro da
protologia universal da colocação em evidência que a equivalência entre
Filosofia Primeira e Metafísica é reconquistada.
Marion[93] afirma que com as
Meditações ocorre uma passagem do primado epistêmico ao primado ôntico que
testemunha de uma continuidade entre os dois momentos do pensamento cartesiano
(o momento das Regulae e o das Meditationes) que, longe de se
desdobrarem independentemente, remetem um ao outro, combinando-se até mesmo em
suas dissimilitudes. E a prima philosophia progride para os entes
respeitando o que a ordem parece exigir.
No seu livro
As Meditações Metafísicas de Descartes, Kambouchner subscreve a
interpretação de Marion, em suas linhas diretrizes, como indiscutível. Mas, com
relação a essa interpretação, ele sugere quatro inflexões menores que são as
seguintes:
(I) A
constituição da philosophia prima não destitui a Metafísica de sua
função. Não é que Descartes exclua uma denominação para conservar a outra;
antes, ao dar preferência a uma delas em detrimento da outra, o seu gesto
implica mais uma simples conotação do que uma denotação.
(II) Que a
Filosofia Primeira e a Metafísica sejam ciências de desigual extensão,
recobrindo-se só em parte: em tese, isso não significa apenas que o programa
das Meditações trate em particular de Deus e da alma junto com outros
objetos, mas também que ele não trata de Deus e da alma em todo o detalhe,
tal como convém a um tratado propriamente metafísico.
(III) É
preciso, sem dúvida, dar razão a Marion quanto ao seguinte: “(...) a
identificação integral da filosofia primeira e da metafísica não se torna
possível (...) senão sob a base de uma importante mutação conceitual, que se
efetuará mais facilmente e mais diretamente sob a primeira denominação do que
sob a segunda.”[94] A filosofia primeira é
que se torna mais diretamente a ciência das coisas pelas quais o começo é
possível; antes da aquisição dela, não há ciência no pleno sentido da palavra.
Aos olhos de Descartes, parecerá útil enquadrar ou contrabalancear o privilégio
dado à Filosofia Primeira pela indicação de uma maior abertura programática
contida no termo. Por ser menos usual nas escolas, este termo evocará não um
domínio de objetos, mas uma tarefa que deve ser considerada a mais importante,
tendo em vista a dimensão fundacional que ele comporta.
(IV) A palavra “metafísica” é mais usual, mas
“Filosofia Primeira” é sem sombra de dúvida a mais apropriada para designar o
modo pelo qual Descartes considera a operação filosófica em geral.
Quanto ao
que sejam os princípios de que deve se ocupar a Filosofia Primeira, Descartes
lhes identifica com “as primeiras causas”, com “todas as primeiras coisas que
um homem pode conhecer”, e lhes atribui expressamente uma primeira propriedade:
de serem tão claros e tão evidentes que não se pode duvidar deles: e uma
segunda propriedade: a de que, a partir deles, instaura-se a ordem dedutiva da
qual depende o conhecimento de todas as outras coisas.
Para
Kambouchner[95], é claro que os
verdadeiros princípios “se deixam exprimir por uma série de proposições
existenciais” concernentes à nossa alma ou pensamento, ao Deus criador e aos
corpos, mas essas proposições são descobertas e experimentadas “no curso de uma
démarche metódica” e não designadas “a partir de um simples conceito”,
pois a numeração dos princípios é “uma tarefa inteiramente contingente em
relação à experiência que se pode adquirir deles”, o que nos deixa advertidos
para o fato de que, “enquanto experiência, a metafísica de Descartes tem seu
lugar para além de todo conceito”.
2.4 Propostas
de Filosofia Primeira pós-cartesiana
Podem
constar da historiografia da Filosofia Primeira pós-cartesiana alguns contemporâneos
de Descartes como Clauberg e Rudolf Goclenius. Este último é conhecido por ter inventado
o termo “ontologia”, cunhado em grego (οντολογία), em seu célebre Lexicon
Philosophicum de 1613[96]. O contexto em que
Goclenius parece ter chegado à ideia da ontologia é o de um estudo consagrado à
questão da abstração material, distinguida por ele em (i) abstração física,
feita a partir da matéria sensível, (ii) abstração matemática ou ontológica
(abstractio mathematica seu οντολογική), que parte
da matéria intelectual, singular ou universal, segundo a razão, (iii) abstração
transnatural, operada tanto segundo a coisa quanto segundo a razão, mas de que
são capazes apenas Deus e as inteligências angélicas.
O filósofo,
porém, que vai tornar a ontologia uma ciência independente é Christian Wolff (1679-1754). Em Wolff, a Filosofia Primeira encontra-se
definida como ontologia no § 1 da obra “Filosofia Primeira ou Ontologia, que
contém todos os princípios do conhecimento humano, tratada sob o método científico”[97]. A ontologia, por sua
vez, define-se aqui como a “ciência do ente em geral” (scientia entis in
genere) ou “do ente enquanto ele é ente.” À diferença da Filosofia Primeira
de Aristóteles, essa ciência do ente em geral (Wissenschaft vom Seienden
überhaupt) pretende estender-se ao domínio o mais universal possível, sem
ficar restrita à existência. Com isso, ela oferece uma tentativa de resolução da
tensão onto-teológica da metafísica aristotélica, que resta dividida em
ontologia e teologia.
Wolff é um filósofo relativamente esquecido, seu nome costuma
ser evocado de forma um pouco anedótica como o autor de uma filosofia “dogmática”
criticada por Kant. Por isso, julgamos que não seria impertinente de nossa
parte, nesta exposição, demorarmo-nos um pouco mais na apresentação em linhas
gerais do sistema wolfiano. Sua filosofia preconiza uma divisão entre níveis
epistêmicos diferentes. O primeiro nível é chamado por Wolff de história, conhecimento
que é produzido pela constatação
a partir da experiência comum. O segundo nível
epistêmico é o do conhecimento filosófico e toma como princípio máximo
do conhecimento humano o princípio de razão suficiente –
quando se pergunta pela razão (ratio,
Grund) das
coisas.
O conhecimento, por sua vez, que determina as
quantidades das coisas – na medida ou proporção em que elas aumentam ou
diminuem – é o da matemática. Esses três domínios encontram-se numa relação não
estática, mas dinâmica.
Mas há,
contudo, uma nítida diferença de complexidade entre história,
filosofia e matemática. Como a história se ocupa do factual, ela depende da
informação dada pelos sentidos e não pressupõe assim nenhum conhecimento que
lhe seja anterior e que lhe sirva de premissa para a
dedução de uma cadeia de provas. A filosofia, portanto,
estabelece-se num
plano mais elevado do que a história, na medida em que
fornece a causa ou razão (Causa sive Ratio) do
conhecimento histórico. Mas, como nada é mais
importante do que o conhecimento certo, a filosofia somente pode
atingir a máxima certeza e alcançar o grau mais elevado possível de conhecimento associando-se
à matemática.
Além
da definição particular da filosofia como conhecimento da causa, Wolff propõe
uma definição geral que a apresenta sob a forma de uma ciência do possível
enquanto possível: “Costumo definir a filosofia como a ciência do possível
como tal. É tarefa do filósofo, então, não apenas saber o que pode e o que não
pode acontecer, mas intuir com perspicácia as razões pelas quais algo pode ou
não acontecer”.[98]
O possível
se caracteriza pela não-repugnância a existir, ou seja, é determinado logicamente
como “o que não envolve nenhuma contradição, ou o que não é impossível.”[99] Assim, o possível é o
que se opõe ao nada, aqui definido como “aquilo a que não corresponde nenhum conceito”[100], e que, não pode, por
isso, sequer ser pensado. É claro que certas expressões absurdas podem simular
um conceito, como, por exemplo, uma “figura delimitada por duas retas”, mas expressões
assim não correspondem de modo algum a uma noção concebível, pois o item de contradição
nelas verificado repugna deixar-se atualizar em qualquer um dos mundos
possíveis.
Wolff divide
a filosofia em física (physica), psicologia (psychologia) e
teologia geral (theologia generalis) ou teologia natural (theologia
naturalis), conforme os três tipos de ser considerados existentes: os
corpos materiais, as almas e Deus, criador tanto dos corpos quanto das almas.
Mas deve haver uma parte da filosofia que seja reservada àquilo que é comum a
todos os seres, tratando do ser em geral e suas afecções: esta é a ontologia ou
filosofia primeira, que, exaustivamente, fornece a todas as outras disciplinas as
noções gerais (a saber: essência, existência, atributo, modo, necessidade,
contingência, lugar, tempo, ordem, simplicidade, composição, etc.). Assim o sistema
filosófico pode ser construído a priori, de forma demonstrativa, a
partir da ideia de ser, que é inata. No entanto, como além do mundo real-atual
outra infinidade de mundos podem ser pensados (mundos possíveis), deve haver
ainda uma ciência que explique aquilo que mundo atual e mundos potenciais possuem
em comum: disso se encarrega a cosmologia geral (cosmologia generalis).
Identificando-a
como primeira, Wolff eleva a ontologia à posição de uma disciplina
independente, seguindo o modelo dos manuais metafísicos do século XVIII.
Diferente do que acontece em Aristóteles, a Filosofia Primeira de Wolff fornece
os princípios e conceitos elementares que formam a base do conhecimento
dedutivo, e que permite assim a organização das ciências humanas numa
arquitetônica geral.
A fórmula de
Wolff, quanto aos princípios, se repete em Baumgarten (1714-1762), na definição
da metafísica como “a ciência que contém os primeiros
princípios do conhecimento humano.”[101]
O que, por
sua vez, volta a aparecer nos escritos pré-críticos de Kant (1724-1804): “Mas a filosofia que contém os primeiros princípios do uso do intelecto
puro é a Metafísica.”[102] Convém enquadrar essa
afirmação no contexto em que Kant passa da fase pré-crítica para a fase de concepção
da Crítica da Razão Pura. O filósofo de Königsberg começa sua carreira
filosófica sob profunda influência do sistema elaborado por Wolff e sob
profunda impressão deixada pelo ceticismo de Hume.
Por um lado,
temos um otimismo epistemológico absoluto que crê reservar para a metafísica um
lugar destacado entre as ciências. Wolff esperava que, a partir da determinação
legítima dos princípios, da clara definição dos conceitos, do rigor nas
demonstrações e da prevenção quanto a saltos temerários, fosse possível à
metafísica ser a rainha das filosofias e a primeira de todas as ciências. Wolff
busca a perfeição racionalista de seu sistema orientado por um método
semelhante ao da matemática. Só que o filósofo, ao empreender essa busca,
assume a tarefa sem submeter a uma crítica prévia o instrumento que devia
utilizar para tanto, ou seja, sem examinar os limites e possibilidades da
própria razão. De onde ele cai num dogmatismo.
Por outro
lado, temos um pessimismo epistemológico suscitado pela pretensão, vista como
excessiva, do racionalismo. Hume, representante de uma fase cética da filosofia
que se segue à fase dogmática de Wolff, desiste da “crença” de que seja
possível constituir e justificar uma metafísica conforme o modelo matemático.
Os racionalistas tinham tentado identificar a causalidade com um princípio de
razão suficiente: nihil est sine ratione, e, assim, conferir a ela o
caráter da absoluta necessidade. Hume, opondo-se a isso, busca mostrar que a
noção de causa resulta de simples associações psicológicas, sendo resultado de
um hábito, e que julgamos a verdade da conexão entre causas e efeitos guiados
somente por uma crença, a qual surge da parte sensitiva e não da parte
cognitiva da razão. Assim, o fundamento da causalidade reside numa simples
crença, a qual aderimos por uma disposição afetiva, cujo caráter é simplesmente
subjetivo.
O projeto filosófico
de Kant, já despertado do seu sono dogmático e em vista do dilema deixado por Wolff
e Hume, cujas posições parecem inconciliáveis, propõe inaugurar uma nova fase
da filosofia, a fase crítica, que deve se sobrepor às outras fases,
conciliando-as, e preencher as lacunas deixadas pelo dogmatismo racionalista,
representado por Wolff, e pelo empirismo cético, representado por Hume. Para
isso, Kant deve submeter a julgamento a própria razão, buscando determinar
quais são as exigências da razão suscetíveis de serem legitimadas e
justificadas, e quais são as pretensões da mesma que não possuem fundamento,
devendo ser abandonadas. Como a metafísica deve ser independente do
conhecimento empírico, Kant designa para sua crítica a tarefa de determinar a
possibilidade, os princípios e a extensão de todo conhecimento a priori.
A filosofia desenvolvida na Crítica deverá, portanto, ser
transcendental, ou seja, ela deve ocupar-se não tanto com os objetos, mas antes
com o modo de os conhecer, em particular, com o modo a priori,
independente da experiência. A Crítica coloca-se assim sob a cifra da scientia
transcendens de Scotus, restringindo o valor cognitivo das categorias à
experiência.
Kant não
propõe ipsis litteris uma “Filosofia Primeira” tal como praticada pela
metafísica tradicional, ocupada com as questões “o que é” (ontologia) e “por
que é” (teologia), mas ele substitui essas questões por uma atitude que
considera “primeira” que é a “atitude crítica” e que reconduz a inquirição
sobre a “quididade” e a “primariedade causal” para a inquirição sobre as
condições sob as quais um conhecer e um agir são possíveis e se deixam
justificar como racionais. É por isso que neokantianos como Natorp puderam
considerar que a crítica do conhecimento merece o título de proté
philosophia e Eduard von Hartmann julgou-se autorizado a escrever que “a
teoria do conhecimento é a verdadeira philosophia prima.”[103]
A crítica de
Kant opera em três níveis: trata da faculdade da sensibilidade, na “Estética
Transcendental”; da faculdade do intelecto, na “Lógica Transcendental”; da
faculdade da razão, na “Dialética Transcendental”. Afirma Kant que a intuição
não pode esperar obter nada a priori dos objetos se ela se deixar guiar
por eles; pelo contrário, é a intuição mesma que deve submeter os objetos à
natureza de sua faculdade de conhecer. É a estrutura que reside no próprio
sujeito o que torna possível a experiência. Assim, a viragem copernicana da
filosofia transcendental exige que sejam buscadas no próprio sujeito as
condições de possibilidade do conhecimento, mediante as faculdades aplicadas na
sua constituição.
Os objetos assim
submetidos não são, porém, as coisas em si, e sim os fenômenos. As duas
faculdades que respondem pelo conhecimento dos fenômenos são a sensibilidade e
o intelecto. A sensibilidade limita-se a receber aquilo que se apresenta, ela é
uma faculdade passiva ou receptiva, mas possui uma forma a priori (tempo
e espaço) pela qual os objetos são apresentados, ao passo que o intelecto
possui um sistema de categorias a priori (tábua dos juízos) pela qual os
objetos são pensados. Tempo, espaço e categorias a priori residem em
nós, como formas da intuição, antes mesmo do aparecimento de qualquer objeto e
independente deste.
O intelecto,
enquanto faculdade ativa do conhecimento, liga sinteticamente os objetos da
sensibilidade, convertendo-os em conceitos. O intelecto unifica, sob conceitos,
o diverso dado na experiência. Ele unifica a matéria, correspondente à sensação,
que é sempre a posteriori, nela aplicando a forma que reside a priori
no intelecto. Isso permite que o diverso do fenômeno possa ser ordenado
segundo determinadas relações. As representações são assim ordenadas e
unificadas de acordo com os conceitos já distribuídos aprioristicamente nas
estruturas da subjetividade.
Se o
intelecto, pois, pode ser definido como a faculdade de unificar os fenômenos
mediante regras, a razão é a faculdade que se volta para as regras do intelecto
e unifica-as mediante princípios. A razão, portanto, nunca se dirige
diretamente aos objetos da experiência, mas tão-só ao intelecto, a fim de
conferir ao diverso dos conhecimentos produzidos por essa faculdade uma máxima
unidade a priori, por meio de conceitos. A essa unidade, que é
totalmente diferente da unidade do intelecto, podemos reservar o nome de
unidade da razão. Esta, enfim, tem um uso lógico, na medida em que busca, por
meio do raciocínio, reduzir a diversidade dos conhecimentos do intelecto ao
número mínimo de princípios, alcançando assim a unidade suprema capaz de
abrangê-los a todos.
O interesse
da razão possui um caráter excessivamente especulativo. Kant fala de aparência
transcendental, em relação à dialética em que a razão entra consigo mesma,
porque ela influi sobre princípios cujo uso nunca se aplica à experiência, mas
que nos arrasta totalmente para além do uso empírico das categorias,
enganando-nos com a miragem de uma ampliação da extensão do intelecto. Os
princípios que transpõem a fronteira de toda experiência possível recebem o
nome de princípios transcendentes, para serem diferenciados dos princípios
imanentes, cuja aplicação se mantém inteiramente dentro dos limites da
experiência. Os conceitos do intelecto têm uso apenas empírico, sendo ele a
faculdade das regras, ao passo que os princípios da razão têm uso
transcendental, sendo ela a faculdade dos princípios.
O
conhecimento da razão, na busca de encontrar, para o conhecimento condicionado
do intelecto, o incondicionado capaz de lhe completar a unidade, não permite
assim que seu conceito fique confinado nos limites da experiência. O uso da
razão, por conseguinte, já não se aplica a nenhuma intuição concreta. Com
efeito, no interesse de conhecer, ela abandona tudo ao intelecto, que se refere
imediatamente aos objetos da intuição, por meio de sua síntese na imaginação.
Assim, a razão conserva para si, unicamente, a totalidade absoluta no uso dos
conceitos do intelecto e procura levar, até ao absolutamente incondicionado, a
unidade sintética condicionada que é pensada nas categorias.
Os
raciocínios da razão progridem para o incondicionado numa série ascendente até
chegarem à unidade racional da 1) Psicologia – para o sujeito pensante; da 2)
Cosmologia – para o conjunto de todos os fenômenos (mundo); da 3) Teologia – para a coisa que contém a
condição suprema da possibilidade de tudo o que pode ser pensado (o ente de
todos os entes). Mas, correspondente a esses três tipos de ideias
transcendentes, não podemos ter nenhum objeto no conhecimento. No máximo,
podemos obter um conceito problemático, pois a inferência dialética incide,
respectivamente: num 1) Paralogismo transcendental, referente ao sujeito; numa 2)
Antinomia da razão pura, referente à totalidade absoluta da série de condições;
num mero 3) Ideal da razão pura (Deus), referente à unidade sintética absoluta
de todas as condições da possibilidade das coisas em geral.
Por
conseguinte, a Metafísica dos primeiros princípios do
uso do intelecto puro da fase pré-crítica transforma-se numa “metafísica
da metafísica” na fase crítica. No seio do sujeito transcendental, a razão
designa uma faculdade que brota da natureza humana e é desta que deriva a metaphysica
naturalis como um fato fundamentalmente antropológico. As estruturas
racionais são primariamente subjetivas e a partir delas se desenha a
necessidade “humana” de uma relação com os objetos suprassensíveis. A disciplina
elaborada por Kant vai assumir como tarefa principal elucidar a possibilidade,
o alcance e os limites da metafísica enquanto disposição natural do sujeito. Tudo
isso tem como consequência que a dedução das Ideias transcendentais da razão
não pode ser uma dedução objetiva, mas somente subjetiva, uma vez que as
estruturas racionais que pertencem ao sujeito não passam de um fato
antropológico que não é possível determinar em termos, eles próprios,
racionais. Por isso, as “questões supremas e últimas”: “O que eu posso saber? O
que eu devo fazer? O que eu posso esperar?” reduzem-se todas à questão “O que é
o homem?”
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Dos filósofos
propositores de uma “Filosofia Primeira” que aparecem no horizonte filosófico
imediato traçado pelo kantismo, pode-se nomear em primeiro lugar Fichte (1762-1814),
um dos fundadores do idealismo alemão. Com
Fichte acontece uma transposição do idealismo gnosiológico de Kant à dimensão
de um idealismo ontológico, feito da radicalização e tradução da epistemologia
kantiana em termos ontológicos. Fichte empregou a expressão “Filosofia
Primeira”[104] para designar o conjunto de suas exposições fundamentais, que
dizem respeito aos princípios de sua Doutrina da Ciência.
De acordo com Luft[105], apesar de, ou pelo fato de que Kant parece não ter visto o
problema de encontrar um princípio que sirva de fundamento absoluto ou justificação
última para o conhecimento, fez com que a recepção imediata de sua filosofia
(mais particularmente, Reinhold e Fichte) abraçasse a meta do estabelecimento
de uma Filosofia Primeira. Em Reinhold, essa meta é perseguida na Elementarphilosophie,
em Fichte, ela é perseguida no projeto da Wissenschaftlehre.
Em Kant, o eu posiciona o ser no conhecimento como
representação (uma re-tomada ativa dos dados passivos da sensibilidade), e seu
idealismo, ao mesmo tempo em que concebe o ser como unidade sintética obtida na
dinâmica centrípeta que faz convergir todas as representações à apercepção transcendental
do eu que acompanha as representações, absorve o ser no conhecer de tal modo
que o ser em si resta um dado inalcançável pelo conhecer e, portanto,
incognoscível[106]. O idealismo de Fichte vai suprimir essa cisão entre ser
em si e ser para nós, o conhecimento põe o ser na medida em que o
tem diante de si e o ser nada mais é fora dessa posição. Sob um aspecto, Fichte
é fiel à tarefa instaurada por Kant de conduzir a seu termo a dedução de todas
as representações a priori a partir de um princípio supremo, mas sob
outro, ele leva o idealismo de Kant à sua extrema consequência erradicando as coisas
em si como último remanescente de um dogmatismo.
O princípio supremo de Fichte é o Eu que pensa em si mesmo.
Este pensar se joga na transição de um pôr a um opor e daí a uma limitação. O
primeiro princípio, que é o do Eu que, ao pensar, põe a si mesmo (tese), é
seguido por um segundo princípio que é o do Eu que opõe a si um não-eu
(antítese). O terceiro princípio, por sua vez, é uma reformulação da síntese
kantiana que traz de inovador a proposição de que a síntese entre Eu e não-eu
redunda numa mútua delimitação entre ambos. Ficam estabelecidos assim três
momentos: o primeiro princípio do Eu autoponente é uma afirmação; o
segundo princípio do eu que posiciona o não-eu é uma negação; o terceiro
princípio da síntese entre eu e não-eu é uma limitação.
Pensar, no entanto, é em última análise uma atividade, sua
história, que se dá desde o centro absoluto do Eu ponente e autoponente, não é um fato (Tatsache),
mas uma “ação” (Tathandlung). É aqui que Fichte propõe que nada há antes
do ato e que a gênese se encontra no Eu agente que dá nascimento a todo ser
como produto de suas ações. O Eu é o centro do qual irradiam os atos, mas como
determinar a atividade egóica em seus justos termos? A
partir da base proporcionada pelos três princípios acima, Fichte deduz categorias
que lhe permitem explicar tanto a atividade cognoscitiva quanto a atividade
moral. A atividade cognoscitiva, de seu lado, recebe fundamento da determinação
do Eu pelo não-eu. A atividade prática, por seu turno, recebe fundamento inverso
da determinação do não-eu pelo Eu.
O Eu determina o não-eu, o mundo, estabelecendo metas para serem conduzidas sempre à
sua mais cabal realização, e estabelecendo sempre outra vez novos limites a
serem superados. Cada meta comporta uma teleologia, uma finalidade. No entanto,
a cadeia de objetivos, propósitos, tarefas, é uma infinidade que restaria
sempre desconectada se os sujeitos humanos não fossem membros de um mundo comum
e não encontrassem já despontado nas alturas desse horizonte comum a ideia
absoluta de Deus enquanto ordem moral do mundo. No entanto, o fato é que eles
possuem esse universo comum e compartilham essa ideia reguladora, e disso
resulta a suprema conexão teleológica entre as almas. Se o Eu absoluto de Fichte
aparece factualmente como infinidade de “eus” individuais cindidos entre si,
suas ações aparentemente isoladas coincidem num ponto, a saber, num impulso ilimitado
que anseia por uma satisfação última, e Deus é o único objetivo moral supremo
que pode dar satisfação a este anseio, é a única ideia que pode mobilizar teleologicamente
a história e unificar os homens numa humanidade ética. O idealismo ontológico
de Fichte resolve-se assim num idealismo eminentemente moral.
Como Husserl explica Fichte, “Deus é
completamente imanente ao eu absoluto”, este “é absolutamente autônomo” e porta
em si “seu Deus como ideia-fim vivificante e orientadora de suas ações, como
princípio de sua própria razão autônoma. É a ideia normativa de Deus a base e a
causa teleológicas do mundo.”[107]
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Outro
filósofo propositor de uma “Filosofia Primeira” que surge no horizonte marcado pelo
kantismo, desta vez do lado do empirismo restrito de Kant, é Auguste Comte
(1798-1857), fundador da filosofia positivista. Comte fixou ao longo de sua
vida o duplo objetivo de fundar, por um lado, uma filosofia positiva e, por
outro, uma sociologia positiva, dois projetos que devem andar lado a lado e que
são inseparáveis. Comte ministrou diversos cursos consagrados a essa dupla fundação.
Assim, na publicação em 1854 do quarto volume do Curso de Política Positiva,
o filósofo francês expõe a concepção e o plano de uma Filosofia Primeira.
O êxito das
ciências físico-matemáticas da natureza, precipitado pela Revolução científica,
levou Comte a interpretar a história como a dinâmica de um progresso constante
do conhecimento humano que passa do estado mítico-teológico ao estado metafísico
e do estado metafísico ao estado científico, que é o estado positivo, que se
estabelece na época moderna e que consiste na culminação última do destino
racional da humanidade. Esse desenvolvimento é determinado por uma lei, chamada
por Comte de “lei dos três estados”. Estado não significa aqui apenas a
situação factual vivida pela sociedade em cada fase, mas significa também o “Estado”
político.
A fase
científica é vista como o coroamento de todo o processo histórico, nela as
visões religiosas e metafísicas são tidas como superadas, são vistas como
ficções, e os cientistas, detentores do conhecimento positivo do mundo, devem
se tornar os verdadeiros administradores da sociedade. Para Comte, a classe dos
especialistas científicos deve tomar o poder político e administrar
racionalmente a vida pública, conforme o lema “ordem e progresso”. Ordem, que
vem da ideia de organização racional da vida humana, e progresso, que vem da
ideia do constante desenvolvimento histórico proporcionado pela razão.
O positivismo
é um herdeiro direto do racionalismo iluminista, mas sua ideia de três fases de
desenvolvimento repercute, num nível mais imediato, a ideia do desdobramento
dialético do espírito de Hegel, com sua tese, antítese e síntese, e repercute
ainda, num nível mais profundo, os mitos das “três idades” que recuam mais
longe na história: na teologia de Joaquim de Flora, por exemplo, que fala de
uma “idade do Pai, uma “idade do Filho” e uma “idade do Espírito Santo”, ou
então na mitologia das “idades de ouro, prata e bronze” da antiguidade.
Comte costumava
dizer que a ciência tem como principal função a previsão dos acontecimentos
futuros para apoderar-se da capacidade de controlá-los e submetê-los aos
interesses sociais. Assim, a frase que melhor traduz o espírito positivista é
“ver para prever, prever para prover”. O ideal iluminista da razão é convertido
por Comte no ideal da tecnocracia, que pode ser entendida como a ideologização
política da técnica. O governo (a cracia) não deve mais ser exercido por
uma autoridade estatal política, monarquista ou religiosa, e sim pela classe
dos especialistas técnicos. A justificativa dessa decisão encontra-se no fato
de que só os especialistas possuem o conhecimento positivo, pois, ao atuarem nas
diferentes seções do saber (física, química, biologia, economia, psicologia,
etc.), tornam-se os únicos capazes de dominar tecnicamente os objetos e dispor
das habilidades necessárias para levar a sociedade, através de uma
administração racional, a uma ordem e a uma absoluta prosperidade.
A Filosofia
Primeira de Comte é vista como resultado de uma evolução, ela ocupa-se do
estudo do homem e do mundo, debruçando-se sobre o “conjunto de leis gerais
abstratas independentes da natureza dos fenômenos”, enquanto que uma Filosofia
Segunda ocupa-se em estudar o “conjunto das leis próprias às diversas ordens de
fenômenos, organizados segundo seu grau de complicação crescente, desde a
matemática até a moral.”[108] O que significa, exatamente, as leis
gerais abstratas e independentes com as quais lida a Filosofia Primeira? A
razão abstrata se compõe de duas ordens de elementos, que são as propriedades
abstratas propriamente ditas e as leis ou relações que as ligam. A passagem do
Estado Metafísico para o Estado Positivo consiste justamente no modo de
considerar tais leis abstratas: enquanto que o estado metafísico do
entendimento consiste em personificar essas abstrações, que tornam-se então
entidades e que desempenham o papel de realidades efetivas, o estado científico
consiste precisamente no estabelecimento positivo de tais leis, que passam a
ter sua base na observação e que proporcionam a conciliação entre a
estabilidade e a mudança, uma vez encontrado o constante na variação.
O que há de
propriamente positivo no positivismo de Comte, malgrado as ideologias
racionalistas e tecnicistas, a “religião” e a “igreja” positivistas que dele
nascem, é a confiança incondicional nos poderes da razão e a ambição, dela resultante,
de tornar a filosofia uma verdadeira ciência fundada integralmente na
positividade da experiência. É esta, pelo menos, a opinião de Franz Brentano (1838-1917),
que deixou-se inspirar pelo espírito positivista em sua Psicologia do Ponto
de Vista Empírico, e que assumiu as pretensões gerais do projeto da
filosofia como uma ciência de rigor. Mas Brentano ficou muito conhecido também pelo
resgate histórico que fez do conceito de “intencionalidade”.
Intencionalidade
é um conceito introduzido pelos filósofos escolásticos medievais para
elaboração de sua teoria do conhecimento. A palavra vem do latim escolástico “intendere”
que significa tender para, dirigir-se para, voltar-se para. O problema
epistemológico, que implica entender a intencionalidade da alma humana, é
tratado por Santo Tomás de Aquino nas questões 84 até 89 da primeira parte da Suma
Teológica. Ali, o filósofo procura descrever e explicar como a alma humana,
estando unida ao corpo, consegue conhecer as coisas corporais, que lhe são
inferiores. A opinião assumida por Santo Tomás é a de que o ato de
conhecimento, realizado pelo intelecto, tende para fora da alma para alcançar
os objetos corporais que existem fora dela. Diz ele, com efeito, que “o ato de
conhecimento se estende ao que está fora do cognoscente, pois conhecemos também
o que está fora de nós.”[109]
Para resolver
a questão sobre como o conhecimento é possível e como ele se processa, Santo
Tomás de Aquino retoma a doutrina de Aristóteles exposta no tratado De Anima.
Para Santo Tomás de Aquino, o sentido recebe as formas sensíveis sem a matéria,
ao passo que o intelecto recebe as espécies dos corpos materiais e mutáveis de
modo imaterial e imutável, quer dizer, ao modo do intelecto. É dito, portanto,
que as espécies imateriais e inteligíveis, por sua própria essência, estão no
intelecto, não, porém, de modo material e mutável, e sim conforme o modo do
intelecto. O que Santo Tomás ilustra dizendo que “o recebido está no recipiente
ao modo do recipiente”[110]. Assim, ele põe-se a explicar como a alma intelige as
coisas mediante as espécies, ou seja, por meio da unidade conceitual
específica.
Brentano converte
o conceito escolástico de intencionalidade num conceito descritivo fundamental
de sua psicologia empírica. Apoiado na epistemologia medieva, Brentano distingue
os atos psíquicos dos atos físicos caracterizando-os como intencionais:
Todo fenômeno mental é
caracterizado por aquilo que os escolásticos da Idade Média chamaram a
inexistência intencional (ou mental) de um objeto, e aquilo que podemos chamar,
ainda que de forma não completamente não-ambígua, referência a um conteúdo de
direção, no sentido de para um objeto (que não deve aqui ser entendido como
querendo dizer uma coisa), ou objetividade imanente. Todo o fenômeno mental
inclui algo em si como objeto, embora nem todos o façam da mesma maneira. Na
representação algo é representado, no juízo algo é afirmado ou negado, no amor
amado, no ódio odiado, no desejo desejado, e assim por diante. Esta “in-existência”
é uma característica exclusiva dos fenômenos mentais. Nenhum fenômeno físico
exibe nada parecido. Poderíamos, portanto, definir os fenômenos mentais,
dizendo que eles são aqueles fenômenos que contêm um objeto intencionalmente
dentro de si.[111]
Em
seus cursos de história da filosofia, Brentano toma emprestado de Comte aquilo
que julga conciliável com sua teoria. Assim, ele retém a lei dos três estados
de Comte e a aplica à sua própria versão da narrativa histórica. Brentano
propõe um modelo geral do desenvolvimento da filosofia que lhe atribui um
caráter cíclico de ascensão e queda, de desenvolvimento e decadência. Esse mesmo
ciclo histórico se repetiria nas três épocas comumente aceitas pela
historiografia: a antiguidade, a idade média
e a modernidade. Nessa repetição, cada ciclo se caracterizaria por quatro
etapas consecutivas que se desdobrar-se-iam conforme determinada lógica.[112]
O
ponto culminante da primeira fase do ciclo filosófico da antiguidade é
Aristóteles, o da filosofia medieval é Santo Tomás, o da modernidade, por sua
vez, tem em Bacon, Descartes, Leibniz e Locke suas figuras centrais e é
marcado pelo retorno aos métodos empíricos.
Na
primeira fase, o pensamento grego antigo deve passar por um estado teológico e
um metafísico antes de sua marcha ascendente propiciar as condições que dão
nascimento à obra de um Aristóteles. O teísmo aristotélico não é “metafísico-religioso”
no sentido pejorativo do termo, ele deixa-se animar de um espírito científico autêntico
e assim concorda com os critérios da investigação positiva. No entanto, o
aristotelismo entra em decadência assim que as escolas estoica e epicurista dão
ao pensamento uma orientação mais prática, tendo como consequência uma certa
banalização dos problemas filosóficos. Isso não significa que Brentano conteste
a legitimidade do problema moral, ele sustenta, antes, que o gesto de dar à
filosofia a função exclusiva de fornecer regras para a conduta social, absorvendo
a filosofia na ética, diminui a força ou a potência da filosofia e gera um
certo desequilíbrio entre ela e suas sub-disciplinas filosóficas. Junto com o
estoicismo (particularmente, a física estoica), o neoplatonismo também é visto
como um outro representante da decadência: ambos parecem voltar às formas de
pensamento antigas, em que predominava o hilozoísmo (a tendência a explicar os
fenômenos segundo figuras antropomórficas).
Os
escolásticos dos séculos onze e treze retomam como ponto de partida o que foi o
ponto culminante do passado. No entanto, o contexto de rivalidade entre as
ordens dominicanas, representadas por Santo Tomás, e ordens franciscanas, representadas
por Duns Scotus, teve como consequência a recaída da investigação positiva em sutilezas
metafísicas e a investigação filosófica autônoma acabou abandonada em
proveito da doutrina dogmática defendida por tomistas ou scotistas. Esse sutil dogmatismo
encontra resistência, de uma parte, do nominalismo de Ockham, e, de outra parte,
da filosofia de Mestre Eckhart, que reage ao racionalismo medieval retornando
ao misticismo neoplatônico. Ambos representam um novo episódio da decadência.
Do mesmo
modo, os tempos modernos conhecem um impulso novo e fecundo do pensamento com
Bacon, Descartes, Locke e Leibniz, mas, pela terceira vez, a decadência se
produz assim que ao kantismo se segue o idealismo alemão, que distancia de tal modo
a filosofia do espírito positivo que ela sofre uma verdadeira deformação no
panteísmo de Schelling e Hegel. Brentano coloca Kant na posição de principal
protagonista dessa tendência decadente na modernidade. Para ele, o pretenso
racionalismo da Crítica revela-se no fim das contas um irracionalismo profundo.
Não
faz sentido expor a filosofia de Brentano como uma espécie de escolasticismo
perdido no século XIX. Se ela é estranha à Weltanschauung que assume o
centro da cultura europeia nesse século não é porque pretenda se oferecer como
um programa filosófico refratário ao giro epistemológico moderno, e sim porque,
por um lado, conserva o programa moderno em sua versão pré-kantiana e, por
outro, reata os debates próprios à ontologia clássica, com particular enfoque
em Aristóteles, o que tem como interessante consequência uma reunião entre
empirismo e metafísica.
Para
Brentano, não se trata de um defeito do programa de Locke
aquilo que conduziu seu realismo ao fenomenismo de Berkeley e deste ao
ceticismo de Hume, essa decaída seria, antes, pura consequência de erros na
realização do programa científico traçado de início pelo empirismo lockiano. Aqui
se encontra o grande equívoco de Kant, que supõe tratar-se de uma fatalidade do
devir filosófico moderno o que não é em si mesmo senão uma deriva acidental e,
portanto, contingente. O retorno a Aristóteles e Santo Tomás, bem como a Descartes
e a Leibniz, é uma iniciativa capaz de corrigir o programa de Locke nas
principais carências de que este se ressente. Volver a Aristóteles,
principalmente, significa revitalizar o projeto filosófico moderno.
Quanto à interpretação da Filosofia
Primeira, cumpre dizer que Brentano, em seu estudo dos quatro tipos de ser em Aristóteles
(sentido substancial, sentido categorial, sentido lógico e sentido de potência
e ato), deu particular primado ao ser categorial e, dentre as categorias, a de substância
é colocada por ele na posição de primeira. A Filosofia Primeira em Aristóteles seria
assim a investigação dos princípios e causas da substância. Com efeito, a
conclusão do estudo de Brentano diz:
Dentre
os quatro significados de ὄν em que este se distribuiu inicialmente, o mais
nobre resultou ser o ὄν que se divide segundo as figuras das categorias (...)
todas se denominam assim em referência a um ser, em referência ao ser da
primeira categoria – e as restantes devem antes denominar-se de um ente
que ente em si mesmas. Disso resulta, pois, que a substância é o ente
por antonomásia, que não somente é, mas é em termos absolutos. E embora
do “primeiro” se fale também em múltiplos sentidos, a substância é a primeira
de todos os entes em todos os sentidos, tanto segundo o conceito quanto segundo
o conhecimento e segundo o tempo. Seu ser é o termo a respeito do qual todos os
demais se dizem em analogia, como a saúde é o termo em referência ao qual todo
são se denomina são, seja porque a põe, a produz, a mostra, etc. Assim, a
metafísica é a ciência do ente enquanto tal, resultando então claro que seu
objeto principal é a substância. Pois, em todos os casos de analogias
semelhantes, a ciência trata fundamentalmente do primeiro analogado, do que
dependem e recebem seu nome todos os demais. O filósofo primeiro deve,
portanto, investigar os princípios e causas da substância. Dela deve,
sobretudo, em primeiro lugar e, por assim dizer, exclusivamente, considerar que
seja.[113]
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Edmund Husserl. Filosofia Primeira não é
metafísica, mas uma teoria da razão. Desde que Husserl, por algum motivo, não quis
publicar os manuscritos de Ideen II, planejou outro trabalho fundamental na
fenomenologia que o levou a essas lições sobre "Filosofia Primeira",
que quer dizer filosofia que deriva sua justificação de uma evidência última.
Isso o leva na primeira parte a realizar uma consideração da gênese histórica e
desenvolvimento da ideia da filosofia. As lições começam com a ideia da
dialética platônica, movem-se para as concepções aristotélicas e estoicas de
uma lógica da consistência com um excurso para sua própria ideia da ontologia
formal e da "lógica da verdade", então vão para os começos de uma
ciência da subjetividade em Descartes, seguidos de uma longa discussão do
empirismo britânico de seu próprio ponto de vista, isto é, como uma antecipação
da fenomenologia constitutiva, finalmente terminando com a monadologia de
Leibniz e a crítica kantiana da razão. Descartes é reconhecido como o
inaugurador da ideia de fundar todo conhecimento na imanência pura do ego
cogito, mas Descartes não foi capaz de tematizar o ego cogito como um campo de
experiência transcendental e como o domínio de uma ciência descritiva.
Semelhantemente, Leibniz é interpretado como tendo chegado perto da ideia de
uma ciência da pura essência de um ego como o sujeito de uma vida de consciência
- uma ciência a priori de verdades necessárias. Em sua consideração, Husserl
coloca Leibniz mais alto do que Kant. A KrV de Kant faz a seu ver uma série de
descobertas de grande importância, mas se interrompe bem quando estava perto de
chegar à ideia de uma ciência fundacional da subjetividade transcendental que
pertence ao seu "procedimento metodologicamente regressivo" e uma
concepção mítica das faculdades transcendentais. Esta parte histórica da Erste
Philosophie é considerada uma introdução à fenomenologia transcendental,
baseada numa história das Ideias.
A segunda e sistemática parte
das lições desenvolve uma teoria da redução fenomenológica. Aqui a ideia da
filosofia transcendental é executada em uma maneira que tenta ser muito mais
radical do que Ideias. O ponto de partida cartesiano do mero "Eu sou"
é tomado como cheio de pressuposições, como também da certeza sobre a
existência do mundo. Ambas as certezas são sujeitas ao criticismo, e Husserl
prefere começar com "Eu, como filósofo que começa". O método da
redução é então buscado ser livre do clamor pela apoditicidade do
autoconhecimento transcendental, e redução transcendental é distinguida daquilo
que é chamado "redução apodítica". Nesse sentido, a redução
transcendental não pretenderá chegar em verdades apodíticas. A via cartesiana
de Ideias I, enquanto requer "uma ascensão imediata à atitude
fenomenológica", é deixada de lado em favor de uma segunda via - a
fenomenológica-psicológica - onde todo ato particular, cada um com seu próprio
clamor pela validade, é separadamente sujeito à epoché. Essa via tem a vantagem
que parece abrir uma via da vida natural da consciência para a transcendental.
Mas o que ela faz? Como pode alguém alcançar o transcendental quando um clamor
de validade tem sido deixado fora do escopo da epoché? Como pode essa aplicação
da epoché, em relação a cada ato separadamente, construir a totalidade da vida
transcendental? De forma a mostrar isso, Husserl faz uso das ideias de
implicação intencional, horizonte (interno e externo) e o horizonte de validade
(Geltungshorizont). Isso o conduz à tese que todo ato intencional implica uma
vida fluente intencional e o "horizonte do presente vivo". Isso torna
possível extensão da redução ato-a-ato a uma epoché universal. Mas não desejando
comprometer na radicalidade de sua reflexão, Husserl continua a sugerir a
necessidade de uma "crítica apodítica da experiência transcendental",
porque há, ele nos diz, uma ingenuidade transcendental assim como há uma
ingenuidade natural. Tal crítica vai justificar o clamor que não somente alguém
precisa reforçar a redução, mas precisa-se também ter "uma fenomenologia
da redução fenomenológica" - portanto, conflitando a pretensão de Eugen
Fink que a redução, para Husserl, mantém-se somente como um conceito operativo
que nunca é tematizado.
Há outra importante ideia
nessas lições que parte de Ideias I em um respeito significativo. Se Ideias I
contém somente descrições eidéticas, e o transcendental foi tomado também como
eidético (mesmo se o contrário não é verdadeiro), então Husserl não falaria
agora também de "experiência transcendental" (de "Empiria
transcendental"), então que uma ciência transcendental de fatos (ao invés
de essências) é tido por ser possível. Tal concepção faria a tese, frequentemente
asserida por ele, de um paralelismo entre o empírico e o transcendental mais
inteligível.
[1] MANSION,
Auguste. Philosophie première, philosophie seconde et métaphysique chez
Aristote. In: Revue Philosophique de Louvain. Troisième série, tome 56, n°50,
1958. pp. 165-221.
[2]
Ibid., p. 166.
[3]
Ibid., p. 168.
[4]
Ibid., p. 177.
[5] Aristóteles
Metafísica. E, 1, 1026 a 24-26. In: REALE, Giovanni. Metafisica: texto grego com tradução
ao lado. Edição brasileira de Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2002,
p. 273. A propósito, Jean-Luc Marion diz a respeito dessa “καθόλου πασών κοινή”
que se trata de “uma ciência universal da quantidade e da medida que, sem se
confundir com elas, precede e torna possível as ciências comumente ditas
matemáticas (MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses
Universitaires de France, p. 21).
[6]
REALE, Giovanni. Metafisica: Ensaio Introdutório. Tradução de Marcelo Perine. São
Paulo: Edições Loyola, 2001.
[7] Nesta exposição sobre
Scotus, ficamos em dívida para com o professor Roberto Hoffmeister Pich e sua
conferência “Scotus, a metafisica dos transcendentais e o caminho para a
metafisica moderna” ministrada na XXIII Semana de Filosofia da Universidade
Federal de Uberlândia. Nosso texto foi construído em cima das anotações feitas da
fala do professor mais a consulta a textos originais de Scotus e de intérpretes
da filosofia scotista.
[8] Quaestiones super
libros Metaphysicorum Aristoteles. In: Opera
philosophica, 5 vol. Ed. G. J. Etzkorn et al. New York: Franciscan
Institute of the St. Bonaventure University, 1997, n. 18, p. 9.
[9] 1950
sq Ordinatio, I-II. Opera Omnia, studio et cura commissionis scotisticae.
Ed. C. Balic, Vaticano, Typis Polyglottis Vaticanis.
[10] “Sub
qua ratione definiri potest metaphysicam esse scientiam quae ens, in quantum
ens, seu in quantum abstrahit secundum esse, contemplatur.” Disputationes
Metaphysicae, I, s. 3, n. I. Apud MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses
Universitaires de France, p. 2.
[11] Ibid., p. 43.
[12] Abstrahit enim haec scientia de sensibilibus seu
materialibus rebus (quae physice dicuntur, quoniam in eis naturalis philosophia
versatur) et res divinas et materia separatas et communes rationes rationes
entis, quae absque materia existere possunt, contemplatur: et ideo metaphysica
dicta est, quasi post physicam seu ultra physicam constituta. Disputationes
Metaphysicae, I, Proemium, t. 25, p. 2.
[13] Para mais
detalhes, cf. COURTINE, J.-F. Suarez et le système de la métaphysique.
PUF: 1990. E também COUJOU, J.-F. Suarez et la refondation de la
métaphysique comme ontologie. Louvain: Peeters, 1999.
[14] CRAPULLI, Giovanni. La ‘scientia mathematica communis’ in analogia alla
‘prima philosophia’ secondo B. Pereira. In: Mathesis Universalis: Genesi di
un'idea nel XVI secolo. Roma: Edizioni dell'Ateneo, 1969, pp. 93-94.
[15] (…) de
praedicatis caussisque omnium primis et generalissimis, hoc est de
transcendentibus et inteliigentiis
[16] “Est concors
sententia omnium Metaphysicam dignitate antecellere reliquis disciplinis propter
summam nobilitatem earum rerum, quas tractat; agit enim de Deo &
intelligentiis; quapropter vocatur prima Philosophia, Metaphysica, Sapientia,
Theologia hoc est scientia Dei; vel quoniam hanc proprie solus Deus habet, vel
quia haec sola continet scientiam rerum diuinarum". Pereira 1585, 33. Pereira
1585. Benedictii Pererii Societatis Iesu De communibus omnium rerum
naturalium principiis et affectionibus libri quindecim qui plurimum conferunt,
ad eos octo libros Aristotelis, qui de Physico auditu inscribuntur,
intelligendos. Adiecti sunt huic operi tres indices, vnus capitum singulorum
librorum; Alter Quaestionum; Tertius rerum. Omnia vero in
hac quarta editione denuo sunt diligentius recognita, et emendata. Cum
privilegio, et facultate superiorum. Romae. Ex officina Iacobi
Tornerii, et Iacobi Biricchiae. MDLXXXV.
[17] Ibid. “Secundum locum dignitatis obtinet
Physica; extremum autem doctrina Mathematicae; etenim Physicus disserit de
substantiis & corporibus naturalibus...”; “Mathematicae autem disciplinae
in sola cognitione accidentium occupantur; agunt enim de quantitate, & his
quae in quantitate insunt affectionibus...”.
[18] Pereira
1585, 34: “Certitudo autem scientiae duplex est; vna spectatur ex firmitate ac
immutabilitate rerum quae docentur, eaque tantum maior est quanto res quae
cadunt sub scientiam, sunt magis immateriales et expertes potentiae; quo fit vt
Metaphysica maxime certa hoc nomine censeri debeat; propterea quod agit de
rebus diuinis quae a materiae, potentiaeque concretione penitus segregatae omni
ex parte immutabiles sempiterno aeuo perseuerant...”; “Altera certitudo
scientiae nascitur ex ui firmitateque rationum ac demonstrationum, quibus
nititur scientia, quarum maior copia est in aliis scientiis quam in
Metaphysica, propter summam difficultatem earum rerum quas tractat...”.
[19] Pereira 1585, 34: “Si
autem Physicam cum Mathematicis disciplinis conferamus secundum certitudinem
comperiemus doctrinas Mathematicas certiores esse quam Physicam tribus de
causis...”
[20] Bacon e Hobbes são, em
geral, considerados pelos historiadores da filosofia como autores modernos, mas
optamos por incluí-los na seção intitulada De Aristóteles à escolástica
tardia não apenas pelo fato de que Bacon foi contemporâneo de escolásticos
como Suarez, mas também pelo fato de que os dois estavam inseridos num contexto
nominalista, por influência da tradição inglesa tardio-escolástica, e são
representantes-mor de um anti-aristotelismo que foi se engendrando no interior
do aristotelismo da época, do que decorre que sua proposta de uma nova Philosophia
Prima (Novum Organum em oposição ao Organum aristotélico)
traz, sem dúvida, ao nosso ver, a marca de elementos enraizados na escola
aristotélica.
[21] OLIVO, Gilles. “L'évidence
en règle: Descartes, Husserl et la question de la Mathesis Universalis.” Les Études Philosophiques, no. 1/2,
1996, pp. 189–221. JSTOR,
www.jstor.org/stable/20849012. Accessed 15 June 2021.
[22] “Per methodum
autem intelligo regulas certas et faciles, quas quicumque exacte servaverit,
nihil unquam falsum pro vero supponet, et nullo mentis conatu inutiliter
comsupto, sed gratiam semper augendo scientiam, pervenit ad veram cognitionem eorum
omnium quorum erit capax.” (DESCARTES, René. Regras para
a direção do espírito. Tradução de João Gama. Lisboa:
Edições Setenta, p. 8).
[23] MEHL, Édouard. Phenomenology
and the Cartesian Tradition. In: The Routledge Handbook of Phenomenology
and Phenomenological Philosophy, 2020, p. 66.
[24] “(...) ac proinde generalem quandam esse debere scientiam, quæ id omne explicet, quod circa
ordinem et mensuram nulli speciali materiæ addicta quæri potest (…) Mathesim universalem nominari, quoniam in
hac continentur illud omne, propter quod aliæ scientiae et Mathematicæ appelantur. (DESCARTES, René. Regras para
a direção do espírito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições Setenta, pp. 11-12).
[25] MEHL, Édouard. Op. Cit., p. 66.
[26] “At ego tenuitatis meae
conscius talem ordinem in cognitione rerum quaerenda pertinaciter observare
statui, ut semper a simplicissimis et facillimis exorsus, nunquam ad alia
pergam, donec in istis nihil ulterius optandum superesse videatur; quapropter
hanc Mathesim universalem, quantum in me fuit, hactenus excolui, adeo ut
deinceps me posse existimem paulo altiores scientias non praematura diligentia
tractare.” (DESCARTES, René. Regras para a direção do espírito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições Setenta, p. 12).
[27] “(...) nihil prius cognosci posse quam intellectum, cum ab
hoc cæterorum omnium
cognitio dependeat et non contra.” (DESCARTES, René. Ibid., p. 23).
[28] “(...) At vero nihil hic utilius quæri potest, quam quid sit humana
cognitio et quo usque extendatur” (DESCARTES, René. Ibid., p. 23).
[29] MEHL, Édouard. Op.
Cit., p. 66.
[30] MEHL, Édouard. Op.
Cit., p. 66.
[31] MEHL, Édouard. Op.
Cit., p. 66.
[32]
NATORP, Paul. Descartes’ Erkenntnisstheorie. Eine Studie zur Vorgeschichte des
Kriticismus. Marburg: N. G. Elwert’sche Verlagsbuchhandlung, 1882.
[33] Veja-se o programa anunciado por Natorp já no prefácio do livro: „Der Titel der
vorliegenden Schrift bedarf einer doppelten Erläuterung. Dieselbe behandelt die
Erkenntnisstheorie Descartes’: damit ist erstens nicht ein bestimmter Theil
seiner Philosophie gemeint, etwa die ‘Methode’; sondern es soll seine ganze
Lehre, nur unter dem Einen Gesichtspunkt des Erkenntnissproblems, erwogen
werden. Zweitens will der Titel nicht besagen, dass bei Descartes eine
Erkenntnistheorie, im strengen Sinne der Transscendentalphilosophie Kants, d.
h. einer festsgegründeten Wissenschaft der Vernunft oder der Wahrheit, in der Tat
vorliege, wohl aber, dass er die Idee einer solchen Wissenschaft gesfasst, und
dass seine ganz Philosophie auf diese Idee eine zwar vielfach durch
anderweitige Absichten verdunkelte, in den entscheidenden Punkten aber doch
sehr kenntliche und bestimmt nachweisbare Beziehung hat. Beides, die
Verwandtschaft Descartes’ mit der kritischen Philosophie in der Grundidee und
die Unvollkommenheit in der Durchführung dieser Idee suchte ich damit
auszudrücken, dass ich diese Arbeit als eine Studie zur Vorgeschichte des
Kriticismus bezeichnete.“ (NATORP, Paul. Ibid., p. III).
[34] MARION, Jean-Luc. Sur l'ontologie grise de Descartes.
Science cartésienne et savoir aristotélicien dans les « Regulae ».
Paris:
Vrin, 1975, p. 181.
[35] É clara aqui a polêmica
instaurada contra a afirmação de Ética a Nicômaco (1094 b1 10-25),
citada na primeira seção do capítulo anterior, dedicada a Aristóteles.
[36] Hua VII. Lição 10, p.
64 (trad. fr. 90).
[37]
Ibid., p. 64 (trad. fr. 90).
[38] Hua VII. Lição 10, p. 64 (trad.
fr. 90).
[39] Hua
I. Introdução, § I, p. 3.
[40] “(...) illud omne esse verum, quod ualde clare et distincte
percipio.” DESCARTES, René. Meditações sobre Filosofia Primeira. Tradução de
Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 71. Eis outras
diferentes versões da regra geral espalhadas pela obra cartesiana: a) Omne id,
quod valde dilucide et distincte percipio, verum est. b) Probatur, ea omnia,
quae clare et distincte percipimus, vera esse. c) Scio, me in illis, quae
perspicue intelligo, falli non posse. d) Quamdiu aliquid valde clare et
distincte percipio, non possum non credere verum esse. e) Illia omnia, quae
clare et distincte percipio, necessario sunt vera. f) Nihil potest clare et
distincte percipi, quod non sit tale, quale percipiatur, hoc est, quod non sit
verum.
[41] HEFFERNAN, George. An Essay in Epistemic Kuklophobia:
Husserl’s Critique of Descartes’ Conception of Evidence. Netherlands: Kluwer
Academic Publishers, pp. 89–140, 1997, p. 93.
[42] Hua I, Introdução, § I, p. 3.
[43] BRENTANO, Franz.
Psychologie du Point de Vue Empirique. Traduction et préface de Maurice de
Gandillac. Paris: Aubier, Éditions Montaigne, 1944, p. 373.
[44] Ibid. p. 374.
[45] Ibid. p. 374.
[46] Hefferman (op. cit., p. 90) classifica em três grupos
os textos que envolvem a crítica de Husserl da posição de Descartes sobre a
evidência: I. Os textos de menor importância, em que se fala de evidência, mas
sem referência a Descartes: A Filosofia da Aritmética (1891); Estudos sobre
Aritmética e Geometria (1886-1901); Fantasia, Consciência Pictórica
(1898-1925); Sobre a Fenomenologia da Intersubjetividade (1905-1935); Coisa e
Espaço (1907); Análise das Sínteses Passivas (1918-1926). II. Os textos de
maior importância, que são os três trabalhos principais de Husserl em que prevalece
a teoria do conhecimento: o precoce “Investigações Lógicas” (1900/01-1913/21),
o médio “Ideias para uma fenomenologia pura e para uma Filosofia
Fenomenológica” (1913) e o tardio “Lógica Formal e Lógica Transcendental”
(1929). III. Um terceiro grupo de textos, que não tem o mesmo peso dos textos
do grupo II, mas que estabelece uma ligação entre estes últimos: a “Ideia da
Fenomenologia” (1907), que liga as Investigações e as Ideias; “Filosofia
Primeira” (1923/24), que conecta Ideias I à Lógica Formal e Transcendental.
[47] O problema do
círculo é um problema clássico na filosofia. No diálogo Mênon, Platão
formula o dilema de que todo conhecimento é circular porque, por um lado, não
pode haver conhecimento a não ser que exista um conhecimento do próprio
conhecimento, e, por outro lado, não pode haver conhecimento do conhecimento a
não ser que exista conhecimento. Parece que o conhecimento está condenado por
sua própria natureza circular a cair numa regressão ao infinito, e essa
consequência absurda coloca em xeque a própria possibilidade de adquirir e
fundamentar o conhecimento. A aporia é dirigida a Sócrates na parte 80 d. do
diálogo: “de que modo procurarás, Sócrates, aquilo que não sabes absolutamente
o que é? Pois procurarás propondo-te que tipo de coisa, entre as coisas que não
conheces? Ou, ainda que, no melhor dos casos, a encontres, como saberás que
isso que encontraste é aquilo que não conhecias?” A tentativa de Sócrates de
sair da aporia é feita pela teoria da reminiscência, que concebe o conhecimento
como reconhecimento. Em suma, conhecer é reconhecer. Para Platão, a alma é
imortal e carrega em si ideias inatas, ideias que, por sua vez, participam das
formas eternas que já foram contempladas uma vez antes do seu nascimento e que
foram esquecidas, assim que a alma encarnou no corpo. A alma então, quando
conhece, recorda-se da visão daquelas formas eternas (teoria da reminiscência),
na medida em que a memória é despertada pela visão das coisas sensíveis. O
inatismo das ideias é demonstrado por Sócrates do seguinte modo: o filósofo
leva um jovem escravo de Mênon que nunca estudou geometria a resolver o
problema clássico: “qual o lado do quadrado de área dupla?”. O jovem resolve o
problema respondendo às várias perguntas que Sócrates dirige a ele. Assim,
Sócrates defende que a alma, para se recordar das formas eternas que já foram
uma vez contempladas, deve ser estimulada pelo exercício da dialética ou
maiêutica. Nos Segundos Analíticos, Aristóteles discute duas posições
que dizem respeito à possibilidade do conhecimento científico: a posição dos agnósticos
(expressão de Barnes) e a posição dos que defendem demonstrações circulares. Os
agnósticos põem em xeque a possibilidade da ciência afirmando que toda
demonstração acaba num regresso ao infinito. Os que defendem demonstrações
circulares reagem aos agnósticos afirmando que é possível fazer demonstrações
“em círculo”, de modo que as premissas figurem também como conclusões, sendo,
por conseguinte, também demonstradas. Curiosamente, so agnósticos partem de
algumas premissas para sustentar sua posição: Premissa 1. O que quer que seja
conhecido cientificamente tem de ser demonstrado. Premissa 2. As premissas de
uma demonstração têm de ser cientificamente conhecidas. A partir daí, eles
colocam em seguida o dilema: “1. Se as premissas de uma demonstração são
conhecidas cientificamente, então elas têm de ser demonstradas. 2. As
premissas, das quais cada premissa é demonstrada, têm de ser conhecidas
cientificamente. 3. Ou esse processo continua para sempre, criando um regresso
infinito, ou ele para em algum ponto. 4. Se ele continua para sempre, então não
há premissas primeiras a partir das quais as subsequentes são demonstradas, e
assim nada é demonstrado. 5. Por outro lado, se param em algum ponto, então as
premissas em que ele para não são demonstradas e, portanto, não são conhecidas
cientificamente; consequentemente, também não o são as outras deduzidas a
partir delas. 6. Portanto, nada pode ser demonstrado.” (SMITH, Robin.
Aristotle's Logic. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2000). Com relação
à posição dos agnósticos, vê-se que ela se auto-destrói, porque os agnósticos
negam a possibilidade de demonstrar no mesmo momento em que estão a usar o
próprio processo de demonstração para defender sua posição, no mesmo momento em
que estão partindo de premissas e chegando a conclusões. Com relação à posição dos
que defendem demonstrações circulares, Aristóteles rejeita-a, dizendo que toda
demonstração deve parar em algum ponto. Este ponto é justamente o conhecimento
autoevidente dos princípios realizado pelo Noûs, ou seja, a
inteligência. Não se pode exigir demonstração dos princípios (exigir esta
demonstração é incidir numa petição de princípio), uma vez que demonstrar,
literalmente, significa mostrar a partir de algo. Este “algo” é um princípio,
um pontapé inicial, um começo. A necessidade da conclusão deve ser mostrada a
partir de alguns princípios, os quais, se fossem também suscetíveis de
demonstração, então não seriam princípios, e exigiriam outros princípios, o que
levaria a uma regressão ao infinito, destruindo a possibilidade de qualquer
demonstração. Na Metafísica 993 b 8-11, Aristóteles diz o seguinte sobre
o Noûs: “Assim como os olhos dos morcegos reagem diante da luz do dia,
assim também a inteligência (Noûs) que está em nossa alma se comporta
diante das coisas que, por natureza, são as mais evidentes.” Em Aristóteles,
pode-se falar do Noûs como uma espécie de visão intelectual análoga à
visão sensível e que desperta nos homens o desejo de mais ver, a tendência de
mais conhecer. Aristóteles compara o ato do Noûs a um atingir, a um
tocar. É como se a inteligência atingisse num ato imediato o princípio
autoevidente. Este atingir se subtrai à alternativa entre verdadeiro e falso,
ele somente pode acontecer ou não acontecer. Se ele não acontecer, não falamos
que ocorreu um erro, e sim que se tem ignorância do princípio. Mas é claro que
o ato de ensinar, realizado pelo professor, ajuda os alunos a despertar a
inteligência dos primeiros princípios. Entre Descartes e Husserl, a discussão
sobre a circularidade recai justamente sobre o estatuto desse “conhecimento
autoevidente”.
[48] Hua VII, Lição 10, p. 65.
[49] HEFFERNAN, op. Cit., p.
106.
[50] Descartes responde a Mersenne nas Segundas Respostas às Objeções,
a Arnauld nas Quartas Respostas, e a Gassendi em um escrito póstumo. Sua
resposta é a mesma para os três. No entanto, ele se limita a esclarecer nos
três textos que quando ele afirmava nas Meditações que não se pode ter
certeza de nada até que se tenha provado que Deus existe, isso significava
apenas que não se pode ter certeza do conhecimento daquelas conclusões que
podem ser recordadas quando a atenção não está mais voltada para elas, das
conclusões que foram esquecidas, ou dos argumentos passados pelos quais elas
foram deduzidas, e que não são mais objeto da atenção atual. Logo, a resposta
de Descartes aos três objetores limita-se a mencionar os lapsos de memória, e
não se pronuncia sobre a relação geral entre evidência e verdade.
[51] GUÉROULT, Martial. Descartes segundo a ordem das
razões. São Paulo: Discurso Editorial, 2016, p. 282.
[52]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 275.
[53]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 26.
[54]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 30.
[55]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 29.
[56]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 28.
[57]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 30.
[58]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 272.
[59]
GUÉROULT, Martial Ibid., p. 272.
[60]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 277.
[61]
GUÉROULT, Martial. Ibid., pp. 182-183.
[62]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 185.
[63]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 183.
[64]
GUÉROULT, Martial. Ibid., pp. 273-274.
[65]
GUÉROULT, Martial. Ibid., pp. 185-186.
[66]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 237.
[67]
GUÉROULT, Martial. Ibid., pp. 235-236.
[68]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 272.
[69]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 273.
[70]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 274.
[71]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 274.
[72]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 275.
[73]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 275.
[74]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 278.
[75]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 279.
[76]
GUÉROULT, Martial. Ibid., p. 280.
[77] MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris:
Presses Universitaires de France, 1986.
[78] MARION,
Jean-Luc. Ibid., p. 6.
[79] Ibid., p. 7.
[80] E neste tocar talvez
haja um eco do θιγεῖν platônico.
[81] MARION,
Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses
Universitaires de France, 1986, p. 7.
[82] À Mersenne, 11 de
novembro de 1640, AT, III, 235, 13-18. Algo semelhante é dito numa segunda
carta que data do mesmo dia: “Je vous envie enfin mon écrit de Métaphysique,
auquel je n’ai point mis de titre, afin de vous faire le parrain, et vous
laisser la puissance de le baptiser. Je crois qu’on le pourra nommer, ainsi que
je vous ai écrit par ma precedente, Meditationes de prima Philosophia,
car je n’y traite pas seulement de Dieu et de l’âme, mais en général de toutes
les premières choses qu’on peut connaître en philosophant par ordre.” AT III,
238, 19 – 239, 11.
[83] KAMBOUCHNER,
Denis. Les Méditations métaphysiques de Descartes. Paris: Presses
Universitaires de France. 2005, p. 44.
[84] MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de
Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, 1986, p. 19.
[85] Ibidem, p. 21.
[86] Os autores
supramencionados, que Marion faz entrar em interlocução com Descartes, assim
traduziram a expressão aristotélica em seus respectivos comentários ao conceito
de metafísica: Fonseca: das coisas pós-naturais ou supranaturais.
Suarez: das coisas que seguem as ciências e as coisas naturais. Eustache
de Saint-Paul: do que segue a física ou vem depois dela. Abra de
Raconis: das coisas pós-naturais ou coisas que se seguem às coisas naturais.
Scipion Dupleix: das coisas sobrenaturais, das que seguem as naturais ou
disto que se segue à física e à ciência das coisas naturais.
[87] Nesse contexto,
Descartes está a separar a teologia da metafísica. Para ele, só há teologia
sobrenatural (dependente da revelação) e não teologia natural. A metafísica
ocupa-se de todas as questões que a teologia tinha antes como objeto,
concernentes a Deus e à alma, mas restringe sua consideração àquelas que o
intelecto pode investigar por si mesmo, sem assistência divina. Desse modo, em
Descartes, a metafísica substitui terminologicamente a teologia natural.
[88] Aqui se acha uma
diferença capital entre Descartes e seus contemporâneos, Kepler, Mersenne e
Galileu, que têm as verdades matemáticas na conta de verdades incriadas, isto
é, verdades que seriam constitutivas do próprio intelecto divino. Para eles, a
metafísica ou teologia ultrapassa a física somente na medida em que as
matemáticas são divinizadas. Em Descartes, a matemática se encontra decaída da
posição divina e só resta a metafísica para se ocupar do estudo de Deus, cedendo
o segundo lugar à física.
[89] MARION,
Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses
Universitaires de France, 1986, p. 38.
[90] Ibidem., p. 40.
[91] Ibidem., p. 74.
[92] Ibidem., p. 59.
[93] Ibidem., pp. 69-70.
[94] KAMBOUCHNER,
Denis. Les Méditations métaphysiques de Descartes. Paris: Presses
Universitaires de France, 2005, p. 47.
[95] Ibid., pp. 51-52.
[96] Segundo pesquisas mais
recentes, porém, a honra de ter instaurado o termo “ontologia”, em sua forma
latina, deve-se a Jacobus Lorhardus, que fez publicar em 1606 uma obra que
porta o título Ogdoas Scholastica, no frontispício da qual lê-se Metaphysices,
seu Ontologiae. Mais detalhes sobre podem ser conferidos em: RICHARD, Sébastien. De la forme à l’être. Sur la genèse du projet husserlien d’ontologie formelle.
Montreuil-sous-Bois : Ithaque, 2014.
[97] Philosophia
Prima, sive Ontologia, Methodo Scientifica Pertractata, qua Omnis Cognitionis
Humanae Principia continentur
[98] « Philosophiam
ego definire soleo per rerum possibilium, qua talium, scientiam. Philosophi
igitur est, non solum nosse, quae fieri possint, quae non; sed & rationes
perspicere, ob quas aliquid fieri potest, vel esse nequit. » (Wolff,
C. (2006). Discursus praeliminaris de philosophie in genere (G. Gawlick und L.
Kreimendahl, Übers. und Hgg.). Stuttgart/Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog
(Erstausgabe 1728).
[99]
« quod nullam contradicitonem involvit, quod non est impossibile » (1730,
§ 85, p. 65).
[100]
« cui nulla respondet notio » (1730, § 85, p. 65).
[101] Baumgarten, Metaphysica, § I: “Metaphysica est scientia
prima cognitionis humanae principia continens.” Apud. MARION, Jean-Luc. Sur le prisme méthaphysique de Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, 1986, p.
3.
[102] Kant, De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et
principiis, § 8. “Philosophia autem prima continens principia usus intellectus
puri est Metaphysica.” Apud. MARION, Jean-Luc. p. 3.
[103] VON HARTMANN,
Eduard. Op. Cit. p. XXV.
[104] Cf. Nachgelassene Werke, Bd. II, p. 37.
Textos escolhidos da Filosofia Primeira de Fichte podem ser
lidos em FICHTE, J. G. Oeuvres choisies de Philosophie Première. Traduction par A. Philonenko. Paris : Librairie
Philosophique J . Vrin, 1964.
[105] Cf. LUFT,
Sebastian. Phenomenology as first philosophy: a prehistory. Diálogos, 93 (2012), pp.
167-188.
[106] Não esquecer, porém,
que o ser noumenal é causa de nossas representações. E aqui reside o
grande paradoxo da filosofia kantiana: se as coisas em si são completamente
incognoscíveis, como falamos delas e como, inclusive, aplicamos a elas a
categoria da causalidade que, por princípio, pertence a priori ao nosso
intelecto?
[107] HUSSERL, E. Fichte's ideal of humanity (Three
Lectures). Translation by James G. Hart. Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 1995, 111-133, p. 119. In: Hua
XXV. Aufsätze und Vorträge (1911-1921). Ed. Thomas Nenon and Hans Reiner Sepp. The Hague: Martinus Nijhoff, 1987,
pp. 267-293. As conferências que Husserl proferiu sobre Fichte em
1917-1918 apresentam o filósofo exotérico da A Vocação da Humanidade
e A Vocação do Sábio e não o filósofo esotérico da Doutrina da
Ciência, pois interessava-lhe mais a questão da vocação e da vontade em
Fichte do que os fundamentos do sistema de seu idealismo.
[108] LAFITTE, Pierre. Cours de philosophie première. Théorie
générale de l’entendement. p. V.
[109] Santo Tomás DE AQUINO.
Suma de Teologia: (Primeira parte – Questões 84 – 89). Tradução e introdução
Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. Uberlândia: EDUFU, 2004, p. 87.
[110] Ibid., p. 81.
[111]
BRENTANO, Franz. Psychology from an Empirical Standpoint, edited by
Linda L. McAlister London: Routledge, 1995, p. 88-89.
[112] Nossa exposição é mais
ou menos uma paráfrase que toma como referência o artigo “A filosofia da
história da filosofia e a modernidade segundo Franz Brentano” de STARZYNSKI,
Wojciech Zbigniew.
[113] BRENTANO, Franz. Sobre
los múltiples significados del ente según Aristóteles. Presentación y
traducción de Manuel Abella. Madrid: Ediciones Encuentro, 2007, p. 245.
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