Resumo integral das Meditações sobre Filosofia Primeira de Descartes

 

Descartes e as Meditações sobre Prima Philosophia


1. Primeira Meditação


Na primeira das seis meditações, Descartes se dá conta de que admitira muitas opiniões falsas ao longo da vida, acreditando serem verdadeiras, e que hoje, refletindo melhor, ele percebe que nada que sobre elas construiu parece certo, sendo possível colocá-las todas sob a suspeita de falsidade. Descartes vê assim que, se quiser estabelecer algo de firme e certo nas ciências, será necessário colocar abaixo todas as antigas opiniões em que até então acreditara, a começar dos próprios fundamentos em que elas repousam.


Para negar o assentimento às ciências – diz o filósofo – basta que encontre em cada uma delas uma só razão que seja de duvidar. Assim, depois de ter derrubado os princípios gerais que se mostrarem duvidosos, todas as ciências desmoronam, sem que seja preciso percorrer todas elas. A proveniência de cada conhecimento em particular é o primeiro item a ser examinado. Descartes declara que tudo o que ele havia consentido ser o mais verdadeiro, até o momento, fora recebido justamente dos sentidos, isto é, através de algum órgão sensorial. Sobre isso, cabe notar que é um sinal de prudência não confiar inteiramente nos sentidos, uma vez que eles já nos enganaram, e nada garante que aquilo que já nos enganou uma vez não esteja a nos enganar sempre.

No entanto, parece que a utilidade de tamanha dúvida não seja tão evidente, a princípio. Descartes deve apresentar, por isso, alguns motivos que falam a favor da necessidade da dúvida: (a) libertar dos preconceitos; (b) aplainar um caminho para a mente ficar livre dos sentidos; (c) mostrar em seguida como é impossível suspeitar das coisas que se descobrirem verdadeiras, depois de resistirem a tamanha dúvida.

O procedimento da dúvida universal revela-se então necessário, assim que nos propomos não agir, mas quando assumimos a pretensão de encontrar algo certo e indubitável nas ciências. A partir das coisas que se revelarem indubitáveis, o próximo passo será encontrar os princípios nos quais o conhecimento está fundado. Descartes levanta nessa altura as razões por que podemos, de algum modo, duvidar do conhecimento obtido pelas sensações: (a) os sentidos às vezes enganam, sendo por isso prudente nunca confiar cegamente no que uma vez já nos enganou; (b) posto que, com alguma frequência, estando adormecidos, havemos nos persuadido de coisas usuais, como se estivéssemos despertos, é manifesto que a vigília não pode ser distinguida do sono por indícios certo; (c) segue, portanto, a pôr-se crédito nos argumentos anteriores, que as coisas reais podem não ser mais do que coisas imaginárias, sem que nos demos conta de que o sejam.

No entanto, após uma breve reflexão, Descartes chega à conclusão de que será preciso confessar pelo menos, com relação às coisas tidas por reais no sonho, que se, por um lado, elas não são verdadeiras, por outro lado, elas só puderam parecê-lo por similute de outras coisas que, na certa, o são. Aqui, é possível recorrer a uma analogia com um pintor que, para figurar personagens imaginárias, não inventa formas novas e desconhecidas, mas, antes, ele usa do artifício de misturar partes e membros de criaturas já vistas. Ou, então, se esse pintor conseguiu inventar algo novo, pelo menos as cores que usou para compô-lo são as mesmas que já estiveram, alguma vez, presentes aos seus sentidos.

Vê-se que as partes e as cores usadas pelo pintor, para compor figuras de ficção, devem pelo menos ser verdadeiras, embora as figuras não o sejam. Ao pegar esse argumento e transpô-lo para o caso de certos princípios, somos levados a decidir a favor da existência dos mesmos, pois é preciso admitir que existem algumas coisas simples e gerais que estão na base de nossos pensamentos, do mesmo modo como as formas e cores reais estão na base da imagem figurada na pintura.

Propriedades como a extensão, a figura, a quantidade ou grandeza, o número, o lugar, o tempo, parecem possuir esta natureza da simplicidade e da generalidade, pois são propriedades que pertencem por igual a todos os corpos materiais, e não podem ser separadas da natureza deles. Isso leva a concluir, necessariamente, que as disciplinas tais como Astronomia, Física, Medicina, não são do mesmo gênero daquelas como a Aritmética e a Geometria, na medida em que elas dependem da consideração de coisas compostas, sendo, por isso, suscetíveis à dúvida, ao passo que essas últimas disciplinas, ao tratarem de coisas tão simples e tão gerais, contêm algo independente dos sentidos, não estando, por isso, sujeitas a nenhuma espécie de dúvida.

Mas a acrescentar a essas considerações, resta ainda o fato – observado aqui por Descartes – de que ele possui, fixa em sua mente, certa opinião de que há um Deus onipotente e criador. E já que esse Deus, que dizem ser sumamente bom, não pode ter desejado enganar sua criatura, ao fazê-la acreditar, pelos sentidos, que há um mundo, só pode seguir-se então, como resultado, que essas mesmas coisas, ao serem apreendidas, são-no verdadeiramente, ou seja, elas existem deveras.

Com efeito, logo que se tenha como certo que Deus é sumamente perfeito e poderoso, a conclusão que se chega não pode ser outra além desta última, pois se Ele houvesse criado um ser que sempre erra, julgando acertar, isso seria testemunho de que Ele não é tão perfeito e poderoso como dizem, a avaliar Sua perfeição por comparação com o grau de perfeição do ente criado. Assim, a probabilidade de que estou a errar tanto mais aumenta quanto menos poderoso for o ser que me criou. Mas, tomando a matéria pelo lado inverso, se Deus é perfeito como dizem-No ser, é evidente que eu não erro nos meus juízos. Contudo, como salta aos olhos que, pelo menos em algumas ocasiões, eu estou sujeito ao erro, deveria contrariar também a Deus que eu errasse de vez em quando, assim como repugna a Ele que eu erre sempre. Pois o erro, estando na criatura, mesmo que seja uma única vez, diminui proporcionalmente a perfeição do criador.

Descartes resolve, por conseguinte, recusar por enquanto o assentimento a quaisquer opiniões não esclarecidas, pelo menos até o momento em que algo seja descoberto de maneira clara e evidente. Assim, a título provisório, ele supõe haver não um Deus sumamente bom, mas um gênio maligno que, detendo o mesmo poder divino, esteja a enganá-lo, colocando diante dele a mera imagem de um céu, uma terra, um ar, etc., para fazê-lo acreditar que tais coisas existem, quando não passam de um sonho. Descartes assim o faz, confessando ao mesmo tempo que, se ele não for capaz de chegar por fim à verdade, que, pelo menos, resista em continuar a ser iludido, negando depositar qualquer crença em tais falsidades. Desse modo, o enganador já não será capaz de impor a ele algo que não contenha realidade.


2. Segunda Meditação


Na segunda das meditações, Descartes relata como a mente, no uso de sua própria liberdade, decide levar a cabo a operação proposta de estender o alcance da dúvida até onde for possível, na esperança de deparar com algum limite, isto é, algo que seja, por si mesmo, indubitável, capar de barrar o caminho da dúvida. A mente se encarrega, portanto, de remover todas as coisas que admitem, o mínimo que seja, algum motivo de suspeição. Para isso, sua investigação deve prosseguir até onde suceda a ela conhecer algo certo, ou então, caso isso não seja possível, tornar evidente pelo menos que a única certeza é a de que nada há que seja perfeitamente certo.

Assim, os modos da coisa sensível: a extensão, a figura, o movimento, o corpo, o lugar, caem sob o crivo da dúvida, podendo ser simples fantasia. Descartes não permite que seja feita nem mesmo a suposição de que há um Deus, já que o que supomos ser o criador, na verdade, pode revelar-se, no final, ser apenas criatura, ou seja, Deus pode ser um simples produto criado pela imaginação, a qual é capaz de misturar formas, membros e cores tirados da sensação, tal como ocorre na pintura.

Descartes assume o discurso em primeira pessoa: se existe a possibilidade de que eu mesmo seja o autor de tudo que creio existir, como simples ficção, não se torna então manifesto que eu, pelo menos, que assim o imagino, não devo existir deveras? Por que, depois de compilar todas as coisas que podem ser postas em dúvida, não é verdade que resta, ao menos, eu, que duvido? Não estou, por isso mesmo, isento de toda possibilidade de não existir? Porque a existência é a primeira condição, única e indispensável, para se estar em erro. E mesmo que exista um gênio maligno, e que ele me engane, isso não exclui o fato de que devo existir, primeiro, para que ele depois me induza em erro. Posso, na verdade, não estar unido a corpo algum, todos os meus sentidos podem ser um mero sonho. Nada disso basta para fazer com que eu, que penso, seja capaz de duvidar que exista, porque, para pensar-me como não existindo, a primeira condição é justamente que eu exista. Para Descartes, portanto, o eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeiro toda vez que proferido ou concebido pela mente.

Mas se essa série de meditações, por um lado, resolve o problema do ponto arquimediano – sobre o primeiro dado firme, evidente e indubitável – por outro lado, ela não ajuda em nada a decidir que tipo de coisa é esta, que pensa, e que não pode duvidar de si quando pensa. O primeiro impulso que temos, em relação a essa pergunta, é responder com base na tradição: eu sou um animal racional. Descartes, no entanto, rejeita logo esta solução, que ela, na sua opinião, em lugar de resolver, acaba duplicando o problema. Porque, com efeito, surge logo em seguida a dificuldade de definir o que seja homem e o que seja animal, e a questão, por esse caminho, ver-se-ia embaraçada em duas complicações ao invés de uma.

Parece, no entanto, que a solução esteve clara desde o início, pois, se é mister admitir que eu penso, para duvidar, e que existo necessariamente, ao pensar, fica manifesto que a única propriedade que não pode ser separada de mim, sem que eu deixe de existir, é o próprio pensamento. O resto: braços, pernas, mãos, cabeça, podem ser mera ilusão sem que isso comprometa em nada o fato de que existo, deveras. Além disso, parece que as coisas que dissemos, antes, pertencerem à natureza do corpo (terminar em alguma figura, ser extenso e ocupar um lugar que lhe é próprio, com exclusão de outros corpos), não podem ser atribuídas à natureza da mente, porque todo corpo é percebido pelos sentidos, e pode haver de fato um gênio maligno empenhado em enganar estes últimos. Por conseguinte, será prudente não afirmar por enquanto a existência de coisas corporais.

Com o pensamento, as coisas se passam de outra maneira. Com efeito, somente o pensamento não pode ser separado daquilo que sou. Descartes reserva então o título de coisa pensante (res cogitans) para designar esse ente singular, que existe enquanto pensa. Parece, pois, que tudo o que foi suposto até agora como não existindo, por obra de um gênio enganador, admite ser pensado assim por diferença da coisa pensante, cuja possibilidade de não existir está, em absoluto, fora de cogitação. Acontece, com efeito, que a mente possui modos que não podem ser separados dela (como, por exemplo, entender, afirmar, negar, duvidar, querer, desejar, sentir), ao passo que os modos da coisa corporal (cor, som, frieza, impenetrabilidade, etc.) podem ser separados dela por um ato de imaginação.

Descartes declara, portanto, que para que a mente consiga apreender apropriadamente sua natureza, sem ser desviada, é preciso preveni-la para que se mantenha afastada da imaginação, que só se aplica aos sentidos, os quais podem não ser senão um sonho. Mas importa reter ainda, com relação à imaginação, que mesmo que se trate de uma faculdade enganadora, na medida em que se aplica aos sentidos, nem por isso é menos certo que o eu, que dela faz uso, exista necessariamente, embora toda coisa a mais por ele imaginada seja falsa. A própria força de imaginar, que reside no eu, não está sujeita a ser simples ilusão, mesmo que as demais coisas, por ela imaginadas, sejam-no inteiramente.

De onde extrai-se a conclusão de que todas as aparências podem ser falsas, já que existe a possibilidade de que eu esteja dormindo. No entanto, parece-me de tal modo que vejo, que ouço, que sinto, que isso não pode ser posto em dúvida. Ainda que imagine e sinta ficções, o ato de imaginar e sentir é indubitavelmente real. Para Descartes, sentir, ouvir, ver, considerados apropriadamente, nada mais são do que pensar.

Causa admiração, no entanto, que as coisas que são tocadas, vistas, ouvidas, possuam menos clareza e distinção do que eu mesmo, quando penso nelas. Tomemos, então, como exemplo, um pedaço de cera: parece não haver nada nela que não seja manifesto, de imediato, à mente. Sua dureza, sua cor, sua temperatura, o ruído que ela faz ao ser golpeada com a mão, etc. Contudo, ao aproximar a cera do fogo, tudo que de evidente havia nela, do ponto de vista dos sentidos, se desfaz, não sobrando senão uma massa desfigurada em nada semelhante à cera. Não obstante, ninguém nega que se trata do mesmo pedaço de cera de antes.

Fica claro, assim, que aquilo que constitui a cera, fazendo-a ser concebida como tal pelo entendimento, não se reduz à doçura, nem à fragrância, nem à dureza, nem nada que seja referente aos sentidos. O que resta da cera, depois que removemos as qualidades sensíveis, é unicamente a extensão. Contudo, a percepção da cera, enquanto extensão, não é um ato deixado a cargo da visão, nem do tato, nem da imaginação, nem de nenhum dos órgãos sensoriais. Trata-se – como diz Descartes – de uma inspeção só da mente.

O que foi descrito, no caso da cera, vale igualmente para os transeuntes que passam em frente à minha janela: julgo, num primeiro momento, distinguir homens. Depois de uma breve consideração, porém, percebo que nada vejo na rua senão chapéus e trajes, e que nada na visão me certifica de que, por trás deles, haja homens efetivamente, e não autômatos. O que os olhos puderam captar não basta para certificar-me da existência de homens, ser-me-á então preciso, para assim o concluir, de uma faculdade de julgar que só reside na mente.

Além disso, isso que acaba de ser observado pode ser aplicado a todas as coisas que se apresentam fora de mim. Pode-se perfeitamente admitir que nada disso que atribuo ao mundo exterior exista realmente. Pode ser que eu não tenha sequer os olhos com que julgo ver alguma coisa. Mas que eu pense ver, que eu veja-me vendo: sobre isso, não há discussão. É impossível que o eu não seja alguma coisa, na medida em que o pensamento se vê habitado por ele.

Por conseguinte, Descartes pode passar para a próxima meditação, depois de adquirir, como dado inquestionável, a noção de que os corpos deixam-se perceber não propriamente pelos sentidos ou pela faculdade de imaginar, por sua vez, mas tão somente pelo intelecto. E justamente porque os corpos não são percebidos por serem tocados ou vistos, mas unicamente porque entendidos, conheço de modo manifesto que nada pode ser por mim percebido mais facilmente e mais evidentemente do que minha própria mente.


3. Terceira Meditação


Na terceira das meditações, Descartes estabelece a regra geral de que tudo aquilo que é percebido muito clara e distintamente é verdadeiro (illud omne esse verum, quod ualde clare et distincte percipio) e introduz o argumento que lhe parece o principal dentre os argumentos que depõem a favor da existência de Deus; a saber, “que a ideia que reside em nós de um ente sumamente perfeito possui tanta realidade objetiva que não pode ser senão a partir de uma causa sumamente perfeita” (idea entis summe perfecti, quæ in nobis est, tantum habeat realitatis objectivæ, ut non possit non esse a causa summe perfecta).

Sensações e imaginações, como vimos, constituem certos modos de pensar, e só são dados como certos, enquanto tais, na medida em que estão na mente. O requisito para se estar certo de alguma coisa é uma percepção clara e distinta. Nada do que for por mim percebido clara e distintamente pode ser falso, antes, é preciso admitir que a clareza e a distinção são critérios seguros para se obter a verdade a respeito de algo. Se antes dei por verdadeiras as percepções dos sentidos, julgando-as claras e distintas – isso se deve a um hábito de crer que adquiri. No entanto, ocorre agora de me vir à mente que um Deus poderia, muito bem, ter me dotado de uma natureza tal que não pudesse deixar de me enganar, mesmo em relação às coisas mais óbvias e manifestas.

Do que chega a ocasião de examinar dois pontos fundamentais: (a) se existe, de fato, um Deus; (b) se, havendo Deus, ele pode ou não ser enganador. A ordem que Descartes se propôs seguir nas Meditações é a de começar pelas noções mais básicas, encontradas na mente, para depois passar a outras, decorrentes por necessidade das primeiras. Seguindo essa ordem, o filósofo distribui seus pensamentos por gêneros, distinguindo-os pelo critério da verdade e da falsidade. Os pensamentos que parecem constituir imagens das coisas são denominados ideias: o pensamento de um homem, de uma quimera, do céu, de um anjo, etc. Os pensamentos, por sua vez, que assumem o modo do querer, do negar, do desejar, etc., sempre por referência a algum sujeito (subjectum), são chamados de vontade, afeto, juízo, etc., e constituem certos modos de pensar.

Descartes salienta, a respeito das ideias, que quando são consideradas em si mesmas, sem referência às coisas, não podem ser chamadas propriamente de falsas. A falsidade, além disso, sequer pode ser atribuída à vontade, pois o querer é sempre verdadeiro, mesmo que seja o querer de algo que não existe. Só o juízo, portanto, é suscetível de comportar falsidade, quando reporta a ideia a algo de externo a ela, postulando haver entre ambos uma semelhança ou conformidade. Se me limito a considerar as ideias apenas como certos modos do pensamento, sem reportá-las a outra coisa, elas só poderão, no máximo, dar ensejo a alguma matéria de erro.

As ideias podem ser divididas em: (a) inatas; (b) adventícias; (c) criadas pela imaginação. Algumas ideias, com efeito, não parecem ter sido produzidas por mim, e sim obtidas de certas coisas situadas fora de mim. Outras, no entanto, não parecem ter sido obtidas de outro lugar a não ser do próprio pensamento, conforme sua natureza. Parece, de algum modo, que minha razão foi instruída pela natureza a estimar as ideias obtidas de fora como semelhantes às coisas que elas representam. Um dos motivos para essa crença é que tudo indica que tais ideias não dependem, em absoluto, de nossa vontade para serem como são. Descartes, quando menciona acima que foi instruído pela natureza, está a dizer que foi levado a acreditar naquelas coisas por um impulso espontâneo, e não por uma luz natural – que é aquela que me mostra que, ao duvidar, é necessário que eu seja. Os impulsos naturais, por sua vez, não são tão dignos de confiança, a julgar pela experiência tida com eles no passado.

Apesar de estabelecer que algumas ideias são adventícias, provenientes de fora, Descartes observa que não se trata de uma origem necessária, pois nada impede que haja, assim como acontece com os impulsos espontâneos, alguma faculdade totalmente desconhecida que, atuando em sigilo dentro de nós, produza as ideias que costumamos referir às coisas externas. Descartes faz notar, porém, que mesmo que as ideias adventícias procedam de algo externo à mente, isso não significa, necessariamente, que elas sejam semelhantes às coisas. Parece, pelo contrário, que o mais das vezes há discrepância entre o objeto e sua ideia, como, por exemplo, na que há entre a ideia do sol, recebida pelos sentidos, e a ideia do sol adquirida por noções astronômicas. Enquanto que, na primeira, o sol se apresenta muito pequeno, na outra a mente entende que ele é diversas vezes maior do que a Terra. A ideia, pois, que parece emanar mais diretamente do sol é a que, na verdade, menos se lhe assemelha.

Enquanto que as ideias são apenas modos de pensar, não há entre elas nenhuma diferença. Mas assim que elas passam a referir-se a algo, então há diferença, visto que uma ideia está a representar uma coisa, outra, outra coisa. Mas, na medida em que as ideias representam substâncias, elas contêm mais realidade objetiva do que aquelas que só representam modos ou acidentes, “ou seja, elas participam por representação de mais graus de ser ou de perfeição” (c’est-à-dire participe par représentation à tant de degrés d’être et de perfection). Daí, sem dúvida que a ideia referente a Deus, que é infinito, possui mais realidade objetiva do que qualquer ideia reportada a alguma substância finita.

Logo, a ideia que reside em nós, de um ente sumamente perfeito, não pode ter sido extraída dos sentidos, nem mesmo ter sido produzida pela mente, pois contém mais realidade objetiva (plus realitatis objectivæ in se continent) do que a mente é capaz de produzir, ela “participa por representação de tantos graus de ser e de perfeição” que sua causa deve possuir, na mesma medida, tanta perfeição quanto há na coisa produzida. Quando fazemos a comparação entre a ideia de Deus e a ideia de uma máquina perfeita que fora, de começo, concebida pela mente de algum artífice, obtemos com isso ilustrar que a ideia de Deus, ao residir em nós, tem tanta perfeição que não pode ter senão Deus ele mesmo como sua causa.

Descartes observa que, do ponto de vista da luz natural, é manifesto que deve haver na causa eficiente e total tantos graus e ordem de perfeição, pelo menos, quanto existe em seu efeito, visto que o efeito só recebe sua realidade da causa. O mesmo grau de ser, portanto, que há no efeito, deve ter existido na causa. Resulta evidente também que nenhum efeito pode ter recebido sua realidade do nada, muito menos a ideia de perfeição pode ter recebido sua realidade de algo menos perfeito que ela própria. Isso é válido tanto para a realidade atual e formal (a ideia como modo do pensamento ou como evento mental), quanto para a realidade objetiva (a ideia que representa alguma coisa).

Descartes recorre, para ilustrá-lo, ao exemplo da pedra, que não existia num ponto qualquer do tempo e que depois começou a existir devido a alguma causa, que para produzi-la possuía formal e eminentemente tudo o que agora está presente nela. Do mesmo modo, o sujeito que antes era frio e passou a ser quente só pode ter recebido o calor de uma causa que comportava em si a mesma ordem, grau ou gênero de perfeição do efeito. Assim, a ideia de pedra ou a de calor, estando na mente, deve ter sido posta lá por uma causa cuja realidade em nada difira da realidade que a mente concebe haver agora na ideia. Seja, neste último caso, uma ideia inata, adventícia ou inventada. A causa, porém, não transmite à ideia nada de sua realidade atual ou formal. Isso porque as ideias, quando tomadas em si mesmas, são apenas modos de pensar, sem representação. Mas na medida em que as ideias representam alguma coisa, deve ter havido, para isso, uma causa formal ou atual.

Acrescenta Descartes que toda ideia é uma obra da mente. Portanto, que a ideia tenha realidade formal, segue-se que só pode tê-la recebido da própria mente, na qual as ideias são modos ou feitios do pensamento. Mas que a ideia tenha esta ou aquela realidade objetiva, diferente de outras, deve-o ela certamente a outra causa, e esta última comporta, no mínimo, tanta realidade formal quanto a ideia contém de realidade objetiva. É absurdo então supor que a ideia contenha algo que a causa não contenha, na mesma proporção, porque assim a ideia teria obtido sua realidade objetiva do nada. E embora a ideia, presente no intelecto, seja imperfeita, seguramente que ela não é um nada nem pode ter recebido sua realidade do nada.

Resulta, então, que, pelo menos com relação às causas primeiras e principais, deve ser dito que lhes pertence por natureza o modo de ser formal. É possível admitir que uma ideia atue na geração de outra, no entanto, isso não progride infinitamente, devendo parar, afinal, em uma primeira ideia. A causa desta ideia, por sua vez, surge como uma espécie de arquétipo que contém “formal e efetivamente toda realidade e perfeição que na ideia está contida apenas objetivamente ou por representação” (archetypi, in quo omnis realitas formaliter et en effet contineatur, quæ est in idea tantum objective). As ideias, na medida em que aparecem sob o modo de imagens, podem ser um tanto indigentes ou deficitárias em relação à perfeição das coisas de que foram tiradas. Por outro lado, elas nunca contêm algo maior ou mais perfeito do que essas coisas.

Uma de minhas ideias, por conseguinte, possui tanta realidade objetiva que sou obrigado a concluir que a causa dela não pode estar em mim, nem formal nem eminentemente. De onde se segue, com absoluta necessidade, o fato de que não estou só no mundo, pois a causa dessa última ideia também existe. Convenço-me então, a partir desses argumentos, que nada há nas ideias que representam coisas corporais, anjos, animais, homens, que não possa ter sido produzido por mim mesmo, uma vez que as coisas que percebo nelas clara e distintamente reduzem-se à extensão em comprimento, largura e profundidade, figura, movimento, substância, duração e número, ao passo que as qualidades sensíveis são percebidas muito confusamente. E o fato de a falsidade só encontrar-se nos juízos não exclui, absolutamente, que haja também nas ideias uma espécie de falsidade material, quando elas representam um não-ser como se fosse ser, tal o caso do frio, que não sabemos ao certo se se trata de um ser independente ou se é mera privação de calor.

Desse ponto de vista, nada exclui a possibilidade de que o autor dessas últimas ideias seja eu mesmo. Sua percepção confusa, assim, seria proveniente de alguma deficiência em minha própria natureza. Quanto ao que é claro e distinto nas coisas corporais, isso seria tomado de empréstimo da ideia que tenho de mim mesmo, enquanto substância, duração, número, etc. Pois parece que as coisas extensas e as coisas corporais, embora diferentes, são concordantes no que diz respeito à substância. Mas Descartes faz aqui uma ressalva, dizendo que extensão, figura, situação e movimento, não estão na mente formalmente, uma vez que ela é coisa pensante. Mas, na medida em que os modos acima pertencem à substância, como trajes que lhe revestem, podem assim estar contidos na mente eminentemente, já que ela é também uma substância.

Resta, então, a ideia de Deus, como a única suscetível de conter algo que deve ser considerado como não proveniente de mim. Descartes usa para aludir a esse “algo” atributos tais como os da infinitude, da independência, eternidade, imutabilidade, sumo poder e inteligência. Tais atributos, com efeito, não parecem provir da mente, que é uma substância finita. De onde cabe observar que a ideia de infinito não deve ter sido adquirida por simples negação do finito, uma vez ser manifesto ao entendimento que há mais realidade na substância infinita do que em qualquer uma das finitas. A ideia de Deus, inclusive, é anterior à ideia que possuo de mim mesmo, o que fica claro quando me dou conta de que duvido, de que desejo, sendo assim indigente de algo, e só posso saber, na verdade, que sou indigente de algo por comparação com a ideia de algo perfeito, completo, em relação à qual apareço com todos os meus defeitos.

A ideia de Deus, sendo clara e distinta ao máximo: a) contém mais realidade objetiva do que todas as outras; b) é real e verdadeira, na medida em que tudo que é claro e distinto o é; c) pelo fato de não poder ser compreendida, nem por isso é menos perfeita, pois decorre precisamente de minha natureza, que é finita, não ser capaz de compreender o infinito. Todavia, cabe levar também em consideração a possibilidade de que todas as perfeições que atribuo a Deus, na verdade, não residem nele, mas estejam como que em potência dentro de mim mesmo, ou seja, ainda não apareceram nem se manifestaram em ato.

Essa suposição tem como base o fato de que o conhecimento aumenta gradativamente, sem nada que possa impedi-lo de continuar a crescer infinitamente. O mesmo se dá com as restantes perfeições. Isso tudo, porém, é desmentido por três razões: a) na ideia de Deus tudo é atual e efetivo, nada nela está em potência; b) o fato de aumentar paulatinamente, por sua vez, já constitui um sinal de imperfeição incompatível com a ideia de Deus; c) e embora o conhecimento em mim tenda a crescer ao infinito, ele é incapaz de chegar a um ponto que não permita um incremento ainda maior.

Fica mais claro agora que somente um ser atual e formal pode produzir a realidade objetiva contida na ideia. Ao dedicar a essa questão a devida atenção, tornam-se manifestas à luz natural muitas coisas, como o fato de que eu não poderia ter recebido o ser de mim mesmo, pois, se assim fosse, eu, que tenho a ideia de perfeição, ter-me-ia produzido em conformidade com essa ideia, em suma, teria me concedido as mesmas perfeições que entendo estarem em Deus.

Ora, o que falta em mim não parece ser mais difícil de obter do que aquilo que já possuo. Mas, supondo agora que eu fosse um nada, ser-me-ia muito mais difícil obter por mim mesmo o ser, emergindo desse nada, do que adquirir o conhecimento do infinito número de coisas que até o momento ignoro. Assim, se eu fosse capaz de efetuar a primeira tarefa, que é mais difícil, naturalmente que me seria fácil então realizar a segunda, adquirindo todos os conhecimentos de que careço. Mas, como não sou capaz de obtê-los, fica manifesto que eu, muito menos ainda, devo ser o autor de minha existência, nem emergi por mim mesmo do nada; pelo contrário, devo ter, certamente, recebido o ser de algo mais perfeito do que sou capaz de sê-lo.

Além disso, fica esclarecido também, por essas mesmas razões, que eu não poderia existir, de instante a instante, sem que estivesse atuando uma causa capaz de conservar o meu ser, impedindo que ele desapareça em algum ponto do tempo. E cada nova criação continuada desse tempo, dividido em instantes sucessivos, decerto que exige a mesma força que fora empregada na criação do primeiro instante. Para a luz natural, é manifesto que “a conservação só difere da criação por razão” (conservatione sola ratione a creatione differe). Se eu, com efeito, fosse o autor dessa força de conservação, que permite que um instante suceda ao outro sem que seja aniquilado, decerto que estaria consciente dela. De onde se segue que a força não está em mim, mas no ser de que sou dependente.

Meus pais, por outro lado, não podem ser meus autores, na medida em que sou coisa pensante, mas somente com relação ao corpo. Pois é preciso que exista na causa tanta realidade quanto há no efeito, e assim a ideia de Deus, que contém infinitas perfeições, só pode tê-las recebido de uma causa portadora também de infinitas perfeições. Com a adição de que ela possui em ato todas as perfeições concebíveis, tais como unidade, simplicidade, inseparabilidade.

Assim fica demonstrado que o fato de que só há na mente a ideia de um ente perfeitíssimo porque Deus existe, de modo a tê-la depositado ali, tal qual a marca do artífice impressa em sua obra. Com a inclusão de que a marca não difere da própria obra. Trata-se de uma ideia, portanto, inata, que toda vez que surge na mente informa-a do fato de que ela é imperfeita, incompleta, mas que aspira a adquirir maiores perfeições indefinidamente. Perfeições que existem em Deus real e infinitamente, ao passo que na mente só podem sê-lo em potência. Porque a mente não pode compreender tais perfeições, isso não a desmerece, uma vez que ela pode atingi-las, de algum modo, pelo pensamento, dando-se conta de que é impossível que a ideia de Deus esteja nela sem que Deus exista, de fato, como sua causa. Fica claro também que Deus, que é perfeito, não pode ser enganador, já que isso levaria a constatar no ente perfeitíssimo uma imperfeição incompatível com sua natureza.


4. Quarta Meditação


Na quarta das meditações, diz Descartes que a ação de querer, ou de duvidar, anuncia aos meus próprios olhos o fato de que sou um ente incompleto, dependente, em relação a Deus que é independente e completo. Isso se apresenta de maneira clara e distinta, tendo como consequência ainda que é impossível que Deus esteja a me enganar, uma vez que sua perfeição exclui qualquer necessidade de recurso à falácia e ao engano. Querer enganar é um sinal de fraqueza e imperfeição, não podendo ocorrer em Deus.

Dentre as coisas que existem em mim, Deus me há concedido uma faculdade de julgar que, se usada adequadamente, não pode incidir em erro. No entanto, parece que em muitos casos ela pode, não obstante, ser induzida a muitos tipos de engano. Percebo que a ideia do nada, que inclui a imperfeição em grau máximo, reside em mim do mesmo modo que a ideia de perfeição. De onde cumpre examinar como a imperfeição do juízo pode conciliar-se com a ideia de Deus, já que, supostamente, um ente perfeitíssimo só deveria criar coisas concordantes com a sua natureza.

As coisas se esclarecem um pouco quando, ao adotar outro ponto de vista, penso que eu sou, justamente, algo que existe a meio caminho entre Deus e o nada, cujas respectivas ideias encontram-se em minha mente. Não é de admirar, assim, que eu esteja sujeito ao erro, uma vez que para acertar sempre teria de satisfazer a condição de que eu próprio fosse Deus. Só erro, portanto, na medida em que não sou o ente supremo. E que a faculdade de julgar que me foi transmitida por Ele não é infinita, mas defeituosa. Descartes, porém, não se dá ainda por satisfeito com essa solução, pois, a seu ver, existe uma distinção entre negação e privação, sendo o erro não uma falta em relação à perfeição – que não me compete ambicionar –, e sim uma privação em relação ao conhecimento que deveria existir em mim, e que não foi ainda alcançado. O erro possui, portanto, um caráter positivo, e não negativo. A natureza de Deus é tal que não parece, em absoluto, que Ele me tenha dotado de uma tendência à perfeição que lhe não fosse devida.

Mas Descartes julga como boas razões para abandonar essa suposição as que mostram ser natural que Deus faça coisas que não compete à mente entender, assim como não é dado a ela penetrar sem temeridade nas finalidades divinas. A perfeição que consta nas obras de Deus é apreendida não percorrendo as coisas uma por uma, separadamente, mas por uma visão do conjunto. Que, considerada como parte de um todo, qualquer coisa individual merece o título de perfeitíssima, tendo sua razão de ser.

Os motivos que me levam a errar decorrem, na verdade, da relação que há entre a faculdade de conhecer e a faculdade de escolher ou liberdade; ou, em outras palavras, da relação entre o intelecto e a vontade. A sujeição ao erro deve-se à interpenetração das duas faculdades, pois, tomado em si mesmo, o intelecto não erra, na medida em que não emite juízo sobre coisa alguma, limitando-se a perceber as ideias. Contudo, a respeito da vontade, emerge o fato de que ela é experimentada de modo tão indeterminado e extenso que não há limites a contê-la. Por essa razão, parece que tudo que há em mim não é o bastante para satisfazer tal vontade, a qual me leva a considerar que nada há de tão perfeito e tão amplo que não possa ser conduzido a um grau ainda maior de perfeição e amplitude.

Desse modo, percebe-se logo que a faculdade de entender não consegue acompanhar a vontade, que é ilimitada. É justamente em virtude da experiência que tenho dessa vontade que posso entender que há em mim alguma imagem e semelhança com Deus. A liberdade da vontade, para Descartes, consiste no poder de fazer ou de não fazer algo, buscar ou fugir de algo sem que a isso a mente se veja determinada por outra coisa senão por ela própria. Não consiste, porém, em uma indiferença que pode pender tanto para um lado quanto para outro. É justamente o contrário, pois na decisão com relação aos possíveis entra a capacidade de entender o verdadeiro e o bom. Assim, quanto maior a capacidade de discernir o bem, mais livremente o escolho.

Resulta então que a indiferença, que não se inclina nem para um lado nem para outro, é o mesmo que uma deficiência na capacidade de conhecimento, que não pode distinguir entre o bem e o mal. Mas se essa distinção fosse sempre evidente, a própria deliberação poderia ser dispensada. Uma grande luz no intelecto, afinal, tem como consequência uma imensa propensão na vontade, inclinando-a a não ser indiferente, a assentir e a escolher a verdade que ali se manifesta.

Os argumentos levantados levam, assim, à conclusão de que nem a força de querer nem a de entender constituem a causa dos erros. A força de querer não é causa, pois é amplíssima e, como tal, perfeita. A força de entender não o é também, pois o que é entendido só pode sê-lo corretamente. Se não o fosse, não seria entendimento, e sim outra coisa.

Resta, então, para ser apresentado como causa dos erros o fato de que a vontade, ao revelar-se mais abrangente do que o intelecto, não é circunscrita dentro dos mesmos limites do intelecto, estendendo-o também a outras coisas que não competem à sua natureza entender. A vontade produz então o erro, na medida em que são-lhe indiferentes as coisas que pertencem ou não ao domínio do conhecimento possível, mas mesmo assim ela exige do intelecto buscá-las a todas.

Por outro lado, o intelecto, se quiser agir retamente e evitar o erro, deve abster-se de julgar com relação às coisas que não são por ele compreendidas suficientemente, com clareza e distinção. Para Descartes, deve haver sempre uma precedência da percepção do intelecto em relação à determinação da vontade, mas se nenhuma razão surgir que persuada aquele a escolher entre uma coisa e outra, o melhor é suspender o juízo. O mesmo vale para as conjeturas prováveis, pois só por saber que são apenas prováveis já é o suficiente para conter o intelecto, não levando-o a emitir juízos precipitados, sendo melhor esperar pela obtenção de razões mais certas e indubitáveis.

Nisto precisamente é que reside a privação – no uso não-reto do livre-arbítrio –, que constitui a causa do erro. Ela não é proveniente de Deus, e sim da própria operação de julgar, quando o intelecto, movido pela influência da vontade, estende-se a mais coisas do que as que são pertencentes à sua capacidade de conhecer. Essa privação, portanto, não se dá com o concurso de Deus. Logo, não devo ter nenhum motivo de queixa em relação a isso. Porque o intelecto conhece o que é de sua natureza conhecer, e se a vontade quer empurrá-lo a mais coisas, não sucede que isso deva ser recriminado nela, porque nada do que a constitui pode ser-lhe retirado sem que ela deixe de ser o que é, e é melhor que ela seja assim do que não ser nada. O poder de produzir esses atos significa em mim maior perfeição do que achar-me incapaz de produzi-los.

A perfeição ou a imperfeição deve me ser atribuída menos pelo fato de errar do que pelo fato de fazer um mau uso da liberdade. Porque, de todo modo, sou livre para suspender o juízo até que tenha clareza suficiente na questão. Julgar precipitadamente sendo uma pura temeridade. E, assim, se não posso impedir-me do erro através da perfeição, posso-o por outro lado através da liberdade de abstenção, bastando para isso que fixe essa regra a fim de não esquecê-la toda vez que a verdade não for imediatamente manifesta.

Assim, servirá para mim de critério e de regra que, toda vez que julgar, devo lembrar-me de conter a vontade dentro dos mesmos limites do conhecimento, de modo que ela se estenda às coisas que o intelecto mostre clara e distintamente, sem tentar ultrapassá-las. Assim, será de todo impossível que eu erre, posto que toda percepção, se for clara e distinta, constitui sem sombra de dúvida algo de real e positivo. E, pelas mesmas razões, tudo que é claro e distinto, no sentido real e positivo, não pode ter surgido do nada, antes, pelo contrário, deve ter necessariamente como seu autor um ente sumamente perfeito, a quem repugna em absoluto ser enganador, e que só pode ser Deus.


5. Quinta Meditação


Na quinta das meditações, Descartes passa a tratar da essência pertencente às coisas materiais, e propõe, além disso, uma nova consideração sobre Deus capaz de reforçar a prova de sua existência. Quanto às coisas materiais, cumpre ainda investigar se há algo de certo no conhecimento delas. No que diz respeito à extensão em comprimento, largura e profundidade, às partes, grandezas, figuras, situação e movimento, Descartes reconhece logo que são completamente conhecidas e patentes, e parece, assim, que, no momento de considerá-las, a mente não está aprendendo algo novo, e sim se lembrando do que já sabia, a partir da percepção de coisas que já se encontravam contidas nela, sem que ela se apercebesse disso com mais clareza.

As propriedades do triângulo, por exemplo, são conhecidas claramente, portanto, não foram de nenhum modo obtidas dos sentidos. Para Descartes, é possível tirar daí também uma nova prova da existência de Deus, observando-se que a mente, só pelo fato de possuir a capacidade de extrair do pensamento a ideia de alguma coisa, já mostra que as propriedades percebidas clara e distintamente nessa ideia pertencem necessariamente à coisa em questão, e o mesmo aplica-se à ideia de Deus, cujas propriedades (unidade, simplicidade, imutabilidade) são percebidas clara e distintamente, constituindo uma prova indubitável a favor de sua existência.

A ideia de Deus, portanto, possui o mesmo grau de certeza que se encontra nas verdades matemáticas relativas a números e figuras. Assim como a essência do triângulo, de possuir a soma dos ângulos internos igual a dois retos, não pode ser separada de sua existência, a essência de Deus não pode ser separada de sua existência. Não é possível, com efeito, pensá-lo como inexistente, uma vez que sua perfeição inclui a existência, necessariamente. Pensá-lo inexistente revela-se assim contraditório, já que a ideia mesmo de suma perfeição inclui a ideia de existência, e não pode dela ser separada sem deixar de ser perfeição, assim como a ideia de um monte não pode ser dissociada da ideia de um vale.

Para Descartes, então, na medida em que todas as coisas dependem do concurso de Deus, e que ele não é enganador, resulta que a prova de sua existência implica também na certeza e na verdade de toda ciência.


6. Sexta Meditação


Na sexta das seis meditações, Descartes se ocupa do que resta para tratar: (a) da distinção que existe entre intelecção e imaginação, a partir dos sinais distintivos de cada uma; (b) da prova alusiva ao modo como a mente se distingue completamente do corpo, enquanto coisa pensante; (c) sobre como, não obstante a distinção, a mente encontra-se tão estreitamente unida ao corpo que parece compor com ele uma única coisa; (d) sobre as razões que podem ser levantadas para concluir a favor da existência das coisas materiais; razões que precisam ser esclarecidas, uma vez que o fato de haver um mundo, homens, corpos, não é tão claro e distinto quanto o conhecimento relativo à mente e à Deus.

O primeiro a ser considerado, então, por Descartes, é a distinção que existe entre intelecção e imaginação. A imaginação parece ser, numa consideração mais atenta, uma forma de aplicação da capacidade cognoscitiva sobre as coisas que estão intimamente presentes à mente. A diferença que há entre imaginação e intelecção fica mais clara se examinamos a diferença que há entre uma figura geométrica imaginada e uma inteligida. Um triângulo imaginado está imediatamente presente ao olhar que a mente lança sobre ele. A mente imagina clara e distintamente que o triângulo é compreendido por três linhas retas, formando três lados. No entanto, por mais que a imaginação se esforce, ela não é capaz de tornar presente ao seu olhar uma figura de mil lados (quiliógono). A intelecção pura, por seu turno, é capaz de entender tal figura sem recurso à imaginação, podendo, inclusive, diferenciá-la de outros polígonos.

Descartes conclui que a imaginação consiste numa certa contenção de ânimo, diferente da intelecção. Mas ela não é uma faculdade essencial da mente, pois mesmo que fosse privada dela, a mente certamente continuaria a ser a mesma. De onde fica manifesto que a imaginação é proveniente de algo diverso da mente, isto é, do corpo, ao qual a mente está conjugada. A mente imagina, portanto, quando se aplica à inspeção das coisas corporais. O entender, por sua vez, é independente do corpo, pois que, para entender, a mente limita-se a inspecionar a si mesma, voltando-se para as ideias nela contidas.

Neste ínterim, chega Descartes à segunda questão que havia se colocado, sobre a prova alusiva ao modo como a mente se distingue completamente do corpo, enquanto coisa pensante. A imaginação confere certa probabilidade à suposição de que o corpo existe, já que ela tira desse corpo sua força de produzir imagens. Ela percebe qualidades como cores, sabores, dor, porque, provavelmente, extraiu-lhes dos sentidos do corpo, graças à memória. Ela parece estar intimamente ligada ao sentir corporal. Descartes então almeja saber se isso pode constituir alguma prova a favor da existência das coisas corporais. Ele organiza seu exame em dois procedimentos: a) evocar as coisas que até agora reputou como verdadeiras, por as haver extraído dos sentidos; b) expor então as causas que o fizeram duvidar da existência delas.

A sensação de prazer e dor, além de outras como fome, sede e demais apetites e inclinações para a alegria, tristeza, provocam um sentimento muito forte de que o corpo constitui uma parte do eu, estando com ele deveras unido. Parece que as qualidades sensíveis das coisas, por sua vez, apresentam-se a mim de modo independente de meu consentimento. Sou inteiramente passivo em relação a elas, não podendo deixar de recebê-las mesmo se quisesse.

Essas qualidades, além disso, por serem tão vívidas e fortes, no seu modo de estarem presentes aos órgãos dos sentidos, dão a impressão de que são mais distintas até do que as ideias que formo por mim mesmo, sendo assim impossível que resida em mim a sua fonte de origem. O que deve significar que existem, deveras, corpos a partir dos quais as ideias de qualidades sensíveis são provenientes. Essa prova é ainda reforçada pela lembrança de que usei, na minha infância, os sentidos primeiro do que a razão, de onde fico ainda mais persuadido de que nada há no intelecto que não houvesse existido antes nos sentidos.

E mais do que tudo, julgo pertencer-me, de fato, este corpo, com seus apetites e afetos, corpo ao qual estou tão estreitamente unido que não posso ser dele separado, diferentemente do que acontece com os outros corpos. E pelo fato de não haver nenhuma afinidade entre o beliscão que sinto no estômago e a vontade de comer, à qual denomino fome, segue-se que essa relação só pode ter sido-me ensinada pela natureza. O mesmo, aliás, deve ter acontecido com todos os outros juízos que emito sobre as coisas sensíveis, uma vez que são juízos espontâneos que precedem qualquer exame da razão.

Mas, na verdade, ao longo da vida cotidiana, muitas experiências de engano e ilusão dos sentidos foram abalando, aos poucos, a confiança incondicional que depositava neles. Até mesmo o próprio corpo pode ser colocado em dúvida, tendo-se em conta o fato que pessoas que tiveram algum membro amputado relatam ter a impressão de ainda sentir alguma coisa ali no lugar onde aquele membro falta. Além disso, não posso sentir nada, estando em vigília, que não o possa sentir também no sono. Se fingir que ignoro que Deus existe, nada obsta a que me persuada de que a natureza tenha me feito de tal modo que estou a errar sempre nos meus juízos, mesmo em relação às coisas que parecem ser as mais certas. Os ensinamentos da natureza, no fim das contas, não parecem ser tão dignos de confiança.

Quanto às percepções dos sentidos, por mais que elas pareçam à mente ser independentes, nada obsta a que eu faça a suposição de que elas, na verdade, não provenham de algo externo a mim, e sim de uma faculdade produtora que há em mim, a qual não foi até agora conhecida. Só começo, portanto, a aceitar a existência das coisas externas depois que logrei conhecer melhor o autor de minha existência, que não pode, decerto, visto sua bondade ser infinita, ter-me feito para errar quanto a coisas tão importantes. Assim, para que as coisas diversas possam ser divididas e separadas por mim de acordo com suas diferenças fundamentais, basta que me aplique a entendê-las conforme o critério da clareza e da distinção.

Seguindo este critério, posso perceber que nada pertence mais essencialmente à minha natureza do que o pensamento, nada há mais certo do que o fato de que sou coisa ou substância pensante, e que minha essência consiste em pensar. Portanto, mesmo que não haja nenhum corpo, a minha existência permanece intacta, indubitável, como coisa pensante não-extensa. Tudo o que o corpo é, por sua vez, se esgota em ser extensão, em coisa extensa e não-pensante, ele exclui tudo o que é pensamento, ao ser extenso, do mesmo modo que o pensamento, ao pensar, exclui tudo o que é extenso. Daí haver uma distinção radical entre corpo e mente, como duas substâncias absolutamente independentes e separadas.

Apesar de que há um corpo ligado a mim de modo tão estreito, a ideia de que sou coisa pensante inextensa me persuade de que posso existir sem o corpo, uma vez que o pensar é radicalmente outro em relação à extensão. Novo reforço a essa ideia é encontrado no fato de que faculdades como imaginar, sentir, podem ser separadas de mim sem comprometer em nada minha existência, ao passo que o inverso não pode ser pensado, isto é, a imaginação e o sentir não podem existir sem a substância pensante na qual residem. Eles são modos da substância pensante assim como os acidentes, movimento, figura, são modos da substância extensa.

Mas, neste ínterim, emerge a terceira questão proposta por Descartes: sobre como, não obstante a distinção entre ambos, a mente encontra-se tão estreitamente unida ao corpo que parece compor com ele uma única coisa. A faculdade passiva de sentir ou receber ideias seria inútil se não fosse auxiliada por uma faculdade ativa, que logra produzi-las ou causá-las. Mas tal faculdade não está em mim, enquanto sou coisa pensante, posto que tais ideias são produzidas sem minha cooperação, ela deve estar sim numa substância diversa de mim que contém formal e eminentemente “toda a realidade que está contida objetivamente nas ideias produzidas por essa faculdade” (omnis realitas uel formaliter uel eminenter inesse debet, quæ est objective in ideis ab ista facultate productis). Descartes retoma aqui o que já havia feito notar anteriormente.

Deus, como não é enganador, não coloca essas ideias imediatamente, por ele mesmo, e nem por meio de outra criatura que as contivesse não formal, mas eminentemente. Ele deve colocá-las, certamente, nas coisas corporais, a partir das quais elas são emitidas até minha mente. Descartes não vê razão alguma para que não seja assim, visto ser absolutamente necessário admitir que Deus não é enganador. As coisas corporais, portanto, existem deveras.

E a opinião de que as coisas que advêm pelos sentidos não são compreendidas senão obscura e confusamente, com muito menos clareza que as coisas da matemática, mesmo assim não pode me dissuadir da esperança de alcançar a verdade, já que é certo que Deus, embora tenha me feito de tal modo que eu erre às vezes, parece ter-me provido da capacidade de emendar esses possíveis erros, encontrando algo certo até mesmo nas coisas sensíveis.

É manifesto assim que tudo o que a natureza me ensina deve conter algo de verdade. E nada é mais expressamente ensinado por ela de que estou unido a um corpo. E tal união entre alma e corpo não é semelhante à do marinheiro que comanda seu navio, é uma união muito mais estreita, de modo que a alma está como que misturada ao corpo, ao ponto de compor com ele uma única coisa. Pois se não fosse assim, a dor, a sede, a fome, seriam percebidas por meio de uma inspeção intelectual (como o marinheiro vendo que o barco se quebrou), e não por meio de percepções fortes, porém confusas, como as que, de fato, temos. A confusão nessas sensações, por seu lado, se deve à união e à mistura entre alma e corpo. Dessa união podem ser depreendidas algumas razões que testemunham que os corpos existem.

Donde chegamos à última questão proposta por Descartes para ser resolvida nesta meditação: sobre as razões que podem ser levantadas para concluir a favor da existência das coisas materiais; razões que precisam ser esclarecidas, uma vez que o fato de haver um mundo, homens, corpos, não é tão claro e distinto quanto o conhecimento relativo à mente e à Deus.

Uma forte prova de que a natureza me dotou de propensões nas quais devo confiar é fornecida pelo fato de que existem, ao redor do meu corpo, muitos outros corpos, entre os quais uns, sendo nocivos, eu aprendi por ela a evitar, e outros, sendo benéficos, eu aprendi a buscar. A natureza, com efeito, ensinou-me deveras que alguns desses corpos proporcionam sensações agradáveis, outros, porém, sensações incômodas.

E, decerto, tais lições foram úteis para conservar minha existência, pois que, se Deus me tivesse feito para errar sobre as coisas oriundas dos sentidos, certamente que eu teria errado a respeito de coisas nocivas e não teria promovido a adequada conservação de minha existência até agora. Descartes toma aqui “natureza” numa acepção mais restrita do que aquela que se refere ao conjunto de todas as coisas. Porque, para ele, essa acepção incluiria a luz natural pela qual a mente percebe muitas coisas claras e evidentes sem ser auxiliada pelo corpo. Como, por exemplo, que o corpo sofre a ação de uma força que o atrai para baixo, que uma estrela, embora pareça menor, é muitas vezes maior que a Terra, etc. A ideia de natureza fica, assim, reservada para designar somente o que Deus me deu como composto.

Descartes admite que a natureza, na verdade, ensina a fugir das coisas que produzem sensações dolorosas e a perseguir as que produzem o prazer dos sentidos. Mas, para haver qualquer conclusão a respeito da verdade sobre essas coisas, parece que é requerido somente o exame do intelecto, sem o concurso do corpo. Descartes alega que a percepção que a natureza concedeu à mente para que ela reconhecesse o que é cômodo ou incômodo ao composto não pode ser usado para decidir nada a respeito da essência dos corpos. Que o contato com o fogo produza a sensação de dor no corpo, isso não significa que há no fogo alguma coisa que se assemelhe à dor, tampouco, que isso constitua a essência do fogo. Se julgasse assim, e tomasse a sensação como regra para conduzir ao conhecimento da essência dos corpos, estaria eu a subverter a ordem da natureza.

Mas uma dificuldade aqui se apresenta a Descartes, referente aos casos em que a mente é enganada por sua própria natureza a respeito de sensações internas, quando alguém, por exemplo, iludido por um sabor agradável, toma um veneno julgando ser uma iguaria, ou então quando um doente, sendo hidrópico, bebe a água que irá lhe fazer mal. Descartes decide então que será preciso examinar por que motivo a bondade de Deus não impede que a natureza engane nessas ocasiões. Mas é certo que a natureza pode ser desculpada com relação a esse engano específico, pois, não sendo perfeita e onisciente, é levada a buscar o agradável, e não o veneno, que ela ignora ser nocivo.

Mas o doente foi também criado por Deus, assim como o homem sadio. Daí, resta ainda a dificuldade de entender por que Deus dera ao doente uma natureza enganosa, a ponto de desejar comer ou beber algo que não será de bom proveito para o seu restabelecimento. Um relógio observa todas as leis da natureza tanto estando em perfeitas condições quanto estando danificado, quando não atende ao uso que o artífice lhe previra. Se o corpo do homem fosse, igualmente, comparado ao de uma máquina, ele teria todos os seus movimentos determinados pela disposição dos órgãos. Assim, seria natural que ele sentisse sede, mesmo sendo hidrópico, porque a disposição de seus nervos é determinada a funcionar desse modo, tal como num mecanismo. E embora se possa dizer que o relógio, estando danificado, aberrou de sua natureza, assim como o corpo do hidrópico aberrou da sua, o uso que se faz aqui da palavra “natureza” é extrínseco às coisas a que se dirige, sendo uma mera denominação dependente do pensamento. Uso, na verdade, muito diferente daquele outro uso, que indica algo que pertence deveras às coisas. Mas isso ainda não resolve a dificuldade, e fica ainda por entender-se por que Deus permite que a natureza do doente seja enganada.

A investigação, logo, leva a notar uma diferença entre corpo e mente que diz respeito à divisibilidade. Pois é manifesto que a natureza, por ser extensa, é sempre divisível, ao passo que a mente não possui partes e é totalmente una e inteira, sendo indivisível. Se o corpo perde um de seus membros, nem por isso algo é subtraído à mente, que continua sendo uma só. O que mostra como a mente é completamente diversa do corpo.

É possível também notar, em relação a isso, que as partes do corpo transmitem o movimento mecanicamente, de modo que nenhuma parte é posta em movimento por outra, afastada dela, sem que uma parte intermediária entre as duas tenha transmitido tal movimento de uma até outra. Assim, uma dor sentida em algum membro do corpo é transmitida pelos nervos que se estendem dali até o cérebro, à semelhança do que acontece na corda, quando uma das suas pontas é esticada, e o movimento se estende até a sua outra ponta, puxando-a. Como uma dor no pé, por exemplo, deve passar pelos nervos que encontram-se nas pernas, coxas, rins e pescoço, antes de chegar ao cérebro, pode acontecer que o pé não tenha sido atingido, de fato, e a dor tenha sido produzida, na verdade, em alguma parte intermediária dos nervos, fazendo que o cérebro se engane e sinta a dor como se ela tivesse surgido do pé.

Não importa, porém, que a mente seja enganada a respeito da origem dessa sensação, julgando que a dor tenha vindo do pé quando vinha de um nervo intermediário, contanto que ela possa estar certa de que esse movimento far-lhe-á experimentar a sensação mais apropriada e mais ordinariamente útil à conservação de um homem sadio. Como quando, por exemplo, uma dor excita a mente a cuidar da parte que dói, removendo a causa nociva. E isso é o bastante para atestar a bondade e a potência de Deus, visto que todas as sensações que são dessa ordem no corpo contribuem para a sua conservação.

Deus poderia, na verdade, ter constituído o corpo de outra forma, fazendo-o experimentar sensações de modo diferente, mas nenhuma outra conformação é mais apropriada para a conservação do corpo do que a que Deus concedeu-lhe, de fato. Assim, pode haver alguma ocasião particular em que a natureza do homem, enquanto composta de corpo e alma, esteja sujeita ao engano, já que são sempre os mesmos movimentos que percorrem o corpo, produzindo as sensações. Mas a dor que surge no pé é muito mais frequentemente produzida por algo nocivo que o afeta do que por outra coisa num nervo intermediário, donde ser muito mais prudente, para a conservação, levar em conta o caso geral do que o caso de exceção. É melhor que a natureza se engane em alguns casos do que ela nunca se colocar prevenida a respeito de tais sensações.

Essa consideração, por outro lado, é útil para que eu me lembre sempre de emendar ou evitar os erros. Sabendo, assim, que as sensações de prazer e dor são índices muito mais frequentes do verdadeiro do que do falso. Além disso, tudo me leva a concluir que as dúvidas a respeito da distinção entre sono e vigília devem ser rejeitadas, pois os eventos que são por nós percebidos, estando em vigília, possuem um encadeamento coerente com muitos outros eventos da vida, possuindo, enfim, um nexo causal que não sucede no sono. Por conseguinte, não pode mais haver dúvida a respeito dessas coisas, pois nelas foi aplicada a faculdade dos sentidos, da memória e do intelecto sem que sucedesse nenhuma incoerência entre eles. Indício da verdade que se torna ainda mais patente por Deus não ser enganador.


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