Contra as Heresias, de Santo Irineu de Lião (resumo)

 

CONTRA AS HERESIAS, DE SANTO IRINEU

Marcelo Rosa Vieira


Santo Irineu nasceu em Esmirna na Ásia (atual Turquia) por volta do ano 135. Ainda jovem, ele estudou com São Policarpo, que fora discípulo de São João Apóstolo, e dele recebeu muitos ensinamentos sobre a Igreja de Cristo. Mais tarde, S. Irineu adquiriu ampla cultura grega com São Justino e, por conta de sua sabedoria e prudência, foi eleito Bispo de Lião, cidade no sul da Gália, atual França.

S. Irineu é hoje lembrado principalmente por ter defendido a fé católica contra a heresia gnóstica, e por ter identificado e refutado radicalmente o gnosticismo na sua obra “Exposição e refutação da falsa gnose”, livro que ficou conhecido em nossos dias sob o título Adversus hæreses (Contra as heresias).

O empenho do Padre Apostólico neste escrito era ensinar de modo preciso e fidedigno a santa doutrina da Igreja que fora transmitida sem descontinuidade pelos apóstolos a seus sucessores, visando combater os erros e fortalecer a confiança dos fiéis nas promessas de Cristo: Concede, ó Senhor, a todos os que lerão este livro reconhecer que tu és o Único Deus; faz com que todos sejam confirmados na fé e se afastem de toda doutrina herética, ateia e ímpia” (Adv. hær., III, 6.40).

A obra do Bispo de Lião é organizada em duas partes, conforme indica o título original que traz as palavras “exposição” e “refutação”, e é composto de cinco livros. A primeira parte é dedicada à tarefa de detectar, identificar e expor os sistemas gnósticos, em particular, as doutrinas de Ptolomeu, discípulo de Valentim. S. Irineu considera que a simples exposição de tais doutrinas já é suficiente para refutá-las (Adv. Hær. 1, 31, 3 - 4), já que põe diante dos olhos do leitor as suas fábulas, cheias de absurdos e contradições. Não obstante, o santo padre julga que é necessário levantar contra elas ainda uma argumentação lógica, o que ele faz no livro II da segunda parte, atacando o ensino dos valentianos e dos marcionitas. Os livros III, IV e V, por sua vez, são devotados à missão de refutar o gnosticismo com base nas escrituras e na tradição da Igreja.

Que é o gnosticismo? A gnose, palavra grega que significa “conhecimento”, designa não apenas uma doutrina, mas uma espécie de atitude espiritual que já existia, antes mesmo do nascimento de Cristo, na Índia, na Grécia, no Egito, na Pérsia, inclusive entre os judeus, na pessoa de Simão, o mago, que usava de artes diabólicas para seduzir o povo da Samaria (sobre isso, cf. At 8, 9-25). As cartas de São Pedro, São João, São Tiago e São Paulo estão repletas de advertências contra a atitude gnóstica (cf. 1Cor 12, 3; 1Cor 1, 18 e 23; 1Jo 2,22; 1Cor 12,3; 1Jo 2,18-22; Ap 2,9; 3,9; 2Pe 1,16; 1Tm 4,1-3; Tg 3,15).

Daniel Rops, no volume “A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires”, usa o nome “gnose” para se referir a uma atitude específica de rebelião contra Deus, que corresponde a um método de pensamento, e usa o nome “gnosticismo” para se referir a “um sistema infinitamente complexo de explicação do mundo, da vida e de Deus” (ROPS, 1988, p. 283). Este sistema foi se configurando aos poucos a partir do pensamento de heresiarcas como Valentim e seus discípulos Ptolomeu e Secundo, e deu nascimento no século II a uma diversidade de seitas como a dos setianos, cainitas, ebionitas, ofitas, etc. S. Afonso de Ligório, na sua “História das Heresias e suas Refutações”, nos informa que essas seitas honravam a Set no lugar de Cristo e adoravam até mesmo os “condenados pela Escritura, como Caim, Coré, os sodomitas e, em especial, Judas Iscariotes.” (SANTO AFONSO DE LIGÓRIO, 2020, p. 30)

S. Irineu se detém particularmente na consideração da heresia ptolomaica. Segundo sua descrição, o traço que define essencialmente essa gnose é o dualismo. Ptolomeu imaginou a existência não de um, mas de dois mundos: o Pleroma, onde vivem os seres divinos ou Éons, e o mundo corrupto material, onde vive o homem. Acima desses dois mundos, há um Deus único e perfeito, que está absolutamente separado. Os Éons são entidades intermediárias que surgiram por emanação de Deus mediante uma degradação do ser perfeito numa série hierárquica de planos menos perfeitos. Os primeiros na série são gerados por Deus e assemelham-se a ele, sendo mais puros, os restantes descem na escala sucessivamente, sendo cada vez menos puros. Um Éon, chamado de Demiurgo, deixou-se levar pela soberba de querer ser igual a Deus e, por causa dessa falta, foi expulso do mundo espiritual e condenado a viver num plano inferior. Numa atitude de revolta, ele criou o mundo material como uma obra má, marcada pelo pecado e pelo sofrimento. Alguns gnósticos mais tarde, como os maniqueus, irão identificar o Demiurgo com o “Deus do judaísmo” descrito no Antigo Testamento.

Desse sistema resulta que a matéria é desde a origem má, pois foi criada como forma de vingança, mas resulta também que o homem não é inteiramente mau, visto que ele contém uma centelha divina que lhe foi legada diretamente da suprema emanação do Éon. Essa centelha constitui o elemento espiritual humano, é ela que se vê em cativeiro na matéria e aspira a ser libertada, ascendendo de novo para o Pleroma. Há três tipos, porém, de homens: os hílicos, os psíquicos e os pneumáticos (espirituais). A diferença entre eles é assim resumida por Rops (Op. Cit., p. 285): os “hílicos’ ou ‘materiais”, que se contentam simplesmente em existir, “estão rigorosamente perdidos; aqueles que empreendem pela gnose o caminho da salvação, os ‘psíquicos’, podem avançar rumo à paz divina; aqueles que renunciaram a toda a vida, os ‘espirituais, iniciados superiores e almas muito elevadas, são os que se salvam.” Nessa visão profundamente herética, Cristo não é um com Deus, mas apenas um Éon enviado de um plano superior para resgatar os psíquicos e os pneumáticos deste mundo e conduzi-los de volta ao seu lar espiritual.

De fato, a exposição por si só de tais ficções basta para invalidar o gnosticismo. Diz S. Irineu que expor os sistemas é vencê-los, assim como arrancar um bicho das selvas e trazê-lo para a luz do dia é torná-lo inofensivo: “quando uma fera se esconde na floresta onde assalta e devasta, se alguém corta e limpa a floresta e consegue ver a fera já não lhe falta muito para caçá-la” (Adv. Hær. I, 31,4). Os gnósticos caem na armadilha do seu orgulho, fruto da “dureza de coração” (Cf. Sl 95, 8; Hb 3,13). Eles são induzidos por sua atitude de rebelião a encobrir sob um véu de fantasias tanto as verdades reveladas pelos Evangelhos quanto a sã doutrina da Igreja Católica, cedendo à vaidade ou à inclinação natural da razão humana para a especulação e deixando-se levar pelo desejo excessivo de explicar a existência do mundo com seus próprios recursos intelectuais. Para Rops (Op. Cit, p. 283), o “gnosticismo foi uma aberração da inteligência, o abuso da pesquisa e da especulação aplicadas aos mistérios de Deus”.

S. Irineu, ao contrário desses pretensos “inovadores” do dogma cristão, evita na sua argumentação as grandes especulações, descobertas teológicas ou ideias originais. Humilde perante os mistérios da fé, mas ardoroso defensor da mesma, ele faz valer contra a atitude e contra o sistema gnóstico tanto a autoridade das Sagradas Escrituras quanto a Santa Tradição da Igreja. Por esse motivo, o santo Bispo de Lião é considerado hoje o Pai da Ortodoxia Católica e um autêntico guardião do magistério da Igreja. Magistério este confirmado e absolutamente legitimado pela sucessão apostólica.

De acordo com S. Irineu, a tradição deve ter primado sobre todas as opiniões pessoais, é ela que protege a regra da fé, logo, o seu primado é garantido pelo Espírito Santo que a rejuvenesce sem cessar, como um princípio de vida. A inteligência não pode caminhar sozinha, para isso ela precisa de um guia e é a tradição que lha fornece. Tentando andar com os próprios pés, os gnósticos chegaram a absurdos, colocaram Deus num abismo tão profundo que acabaram por torná-Lo incognoscível. A Igreja, porém, nos assegura que Ele se revelou a nós pela Encarnação, num supremo gesto de Amor. Assim, o homem, a matéria, a carne, não são malditos, como quer a gnose, mas dignos do Amor de Cristo, que fez-se homem e que sacrificou-se pela redenção da humanidade inteira.

Do ponto de vista moral, diz ainda S. Irineu, o gnosticismo produz o resultado de destruir toda a noção de responsabilidade pessoal, já que concebe o mal como estando contido a priori na matéria, e não como fruto do livre arbítrio que cede à tentação para o pecado. Essa doutrina elimina a necessidade de boas obras e da prática da virtude cristã para a salvação, e coloca apenas a necessidade do conhecimento (gnose). Refutando esses pontos, S. Irineu coloca por fim o fundamento da doutrina nas Escrituras e na Tradição e elabora os princípios basilares da teologia cristã. As questões tratadas por ele nos livros finais são: a unidade de Deus e a redenção por meio de Cristo; a unidade das duas alianças e a esperança do mundo vindouro; por último, a ressurreição do corpo, outro dado da revelação também negado pelos gnósticos.

Obra resenhada:


IRINEU de Lião. Contra as heresias – denúncia e refutação da falsa gnose. 2ª ed. São Paulo: Paulus.


Referências:


ROPS, Daniel. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. Tradução de Emérico da Gama. São Paulo: Quadrante, 1988.


SANTO AFONSO DE LIGÓRIO. História das Heresias e suas Refutações. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Ecclesiae, 2020.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Resumo Integral do opúsculo O Ente e a Essência de Santo Tomás de Aquino

Resumo integral das Meditações sobre Filosofia Primeira de Descartes