SOBRE UM MAU USO DA LÓGICA, DE OSWALD DUCROT (SOBRE FILOSOFIA DA LINGUAGEM).

 

Ducrot distingue entre duas ideias: (I) A linguagem tem uma função lógica. (II) A linguagem tem uma estrutura lógica. Ducrot não opõe nenhuma reserva à primeira das ideias. Mas ele duvida da segunda ideia, de que seja possível atribuir uma estrutura lógica à língua. Essa ideia supõe que a organização interna da língua é regida pela única finalidade de permitir a execução de raciocínios lógicos, tornando-os possíveis.

A crença em uma estrutura lógica da linguagem assume duas formas na história. Ducrot ilustra a primeira com exemplos extraídos das Gramáticas dos séculos XVII e XVIII, particularmente, da “Gramática de Port-Royal”. Nelas, subsiste a crença de que o processo de formação de enunciados numa determinada língua é comandado por regras que estão subordinadas a exigências do pensamento lógico e que a explicação da língua natural pode ser efetuada mediante a explicitação dessas exigências.

Isso levaria a pensar numa correspondência entre elementos semânticos e elementos intelectuais, e a identificar as leis que regem os enunciados significativos da língua com as mesmas leis que regem os juízos intelectuais. Ducrot chama essa atitude de “logicismo”, ela consiste em querer ver estruturas lógicas em toda parte. Para o autor, isso leva a um reducionismo.

Ducrot fornece vários exemplos extraídos dos gramáticos de Port-Royal em que eles tentam reduzir o uso da língua natural a regularidades lógicas. Uma das posições estabelecidas por tais gramáticos é a de que todo enunciado comporta um juízo (uma proposição na forma Sujeito é Predicado - S é P), e que a boa compreensão do enunciado em questão depende necessariamente do estudo do juízo nele expresso. Arnauld e Lancelot, por exemplo, têm o juízo na conta de uma declaração completa que afirma alguma coisa de outra coisa, o que consiste em acusar num objeto a presença de um certo atributo que está nele contido. Para Ducrot, essa análise não está apoiada numa reflexão linguística e sim lógica. Se se admite que ela seja verdadeira, chegar-se-á à conclusão de que toda enunciação na língua natural comporta os três elementos: o sujeito, o predicado e a cópula “é”, sendo o sujeito o objeto ao qual o discurso atribui uma propriedade.

O protótipo do enunciado, então, deve ser construído de tal forma que nele fiquem distintas a indicação do objeto, a indicação da propriedade atribuída e da atitude afirmativa do sujeito que fala. Ducrot dá como exemplo a frase: A mesa é grande, na qual o S (mesa), o P (grande) e a declaração afirmativa (é) são indicados sem nenhuma obscuridade.

Os dois autores, no entanto, estão cientes de que nem todo enunciado real se enquadra nesse esquema. Um enunciado como O cão corre, por exemplo, não abriga todos os três elementos da fórmula. A resposta dos logicistas a esse problema é que O cão corre é uma contração de O cão é corredor. Mas Ducrot observa que isso traz como consequência indesejável o resultado de que todos os verbos da língua, com exceção do verbo ser, se reduzem a nenhuma coisa, e nada mais são do que o amálgama do verbo ser com algum predicado. O verbo correr, nesse sentido, não tem consistência, ou seja, não expressa nada mais do que “ser” + “corredor”.

Outra objeção que pode ser levantada diz respeito aos verbos latinos como pluit (chove) que são enunciados sem sujeito. Responder-se-á que nos enunciados latinos o sujeito encontra-se oculto e que no pluit subentende-se a natureza chove, São Pedro ou Zeus chove. Contudo, se aí aplicarmos o procedimento de redução à forma básica S é P, obteremos então um resultado muito bizarro como a natureza é chovedora

O que se extrai desses exemplos é a conclusão de que o logicismo traz como consequência inevitável o reducionismo, que obriga a acreditar que uma parcela muito grande de enunciados, que compõem as línguas naturais, nada mais são no fundo do que substitutos de uma forma protocolar de enunciado, que está em conformidade com as exigências do pensamento lógico. Seguir-se-ia então uma distinção entre enunciados protocolares, que são regulares do ponto de vista lógico, e outra classe de enunciados aparentemente ilógicos, que são irregulares e ocupariam uma posição meramente “marginal” no interior das línguas.

Um segundo problema que pode ser identificado na gramática de Port-Royal é a sugestão de que todo fato de sintaxe admite explicação por necessidades de caráter lógico. Os gramáticos logicistas tomam como exemplo aquilo que foi observado por Vaugelas, de que enunciados como O vento soprava com violência e O vento soprava com uma violência que fazia medo podem ser encontrados nas línguas, mas que enunciados como O vento soprava com violência que fazia medo não podem ser encontrados, pois este último viola a regra de que todo substantivo que é qualificado por uma oração relativa deve ser precedido por um artigo (a, o, um, uma, uns, etc.). Isso significa que a violência que fazia medo não é qualquer violência em sentido geral, mas justamente uma violência específica, instanciada num aqui e agora (hic et nunc) factual. A partir dessa regra, os logicistas defendem que todo substantivo, quando não acompanhado de um artigo ou demonstrativo, não remete a objeto algum e limita-se a enunciar um nome geral ou uma ideia universal vazia. A função cumprida pela oração relativa é a de qualificar objetos particulares, por isso ela pede a presença do artigo para que o objeto seja singularizado, tal como acontece em uma violência que fazia medo, quer dizer, uma violência em particular, esta ou aquela, e não violência como ideia geral de violência.

No entanto, os gramáticos de Port-Royal se deparam com ocorrências factuais da língua que impõem uma objeção à sua tese, tal como acontece, por exemplo, com É granizo que cai. Granizo aqui não vem acompanhado de demonstrativo e é dito em acepção geral, mas isso não exclui o fato de que o substantivo em questão designa um fato particular.  

Quando surgem alguns contraexemplos que impugnam a regra geral, os gramáticos de Port-Royal falam de exceções decorrentes de algum fator histórico, psicológico ou sociológico. Ducrot não contesta aos lógicos de Port-Royal o recurso que eles fazem às exceções à regra, ele contesta antes a sua atitude de querer fazer da lógica o critério de juízo do que é regular e irregular na língua natural, mostrando que ela não resiste a uma confrontação com os fatos.

Um último exemplo analisado por Ducrot é a explicação das regras de concordância do particípio francês feita pelos gramáticos de Por-Royal, que assinalam a diferença que existe na forma do verbo manger nas duas frases: La soupe que j'ai mangée e J'ai mangé la soupe. Na primeira frase o mangée concorda em gênero com a soupe porque ele assume uma função sintática adjetival, ao passo que na segunda frase o mangé não concorda em gênero com a soupe porque ele designa a ação de tomar propriamente dita. Essa análise mostra uma atitude intelectual logicista por parte daquele que a realiza, que tem a pretensão de reduzir os fatos linguísticos a puras necessidades de ordem lógica, ou então propor que mesmo o uso natural da língua tende a manifestar de maneira natural a subordinação a certas relações lógicas que residem numa estrutura profunda da língua, por baixo da estrutura superficial.

Além desse primeiro grupo de exemplos, Ducrot examina um segundo grupo. Parece a Ducrot que os logicistas se deixam orientar pela ideia de que a língua é a expressão do pensamento, ou seja, consiste numa imagem ou representação daquilo que ela expressa (como se fosse um espelho que veicula o objeto representando-o numa figura linguística dada). A língua existe para retratar fonética e gramaticalmente o que se passa no pensamento. No entanto, ela não expressa o objeto ao modo de um retrato tirado dele, pois é claro que a matéria fônica em nada se assemelha à realidade visual do objeto. Ele expressa o objeto, antes, através da organização da frase. Assim ocorre com a formação dos conceitos, que expressa-se pelos nomes. A formação dos juízos, que expressa-se pelas proposições. A formação dos argumentos, que expressa-se pelos raciocínios. O argumento é então um conjunto organizado de proposições em que cada proposição cumpre uma função, seja de premissa, seja de conclusão. Se as unidades que significam são fixadas arbitrariamente, o mesmo não acontece com a sintaxe, que tem uma motivação fundamentada na realidade.

A concepção de Saussure, pelo contrário, é que a língua não é uma expressão, e sim um meio de comunicar o pensamento, e que essa comunicação não precisa ser uma representação ou imagem. Assim, quando duas ideias a serem comunicadas são diferentes, basta que as duas frases associadas sejam também diferentes. A correspondência aqui, diferente da correspondência proposta por Port-Royal, é entre diferenças de conteúdo e de forma, ou seja, a cada diferença de conteúdo (entre duas ideias, por exemplo) corresponde uma diferença na forma da língua que comunica esse conteúdo.

Quando se adota o ponto de vista lógico para analisar os fatos da língua não raro surge a tentação de descrever os elementos linguísticos unicamente por seu valor lógico. Ducrot propõe considerar, em primeiro lugar, os valores relacionados aos procedimentos de inferência lógica para daí constatar que o tratamento estritamente lógico da língua tende ao reducionismo. O ato de inferir logicamente consiste em extrair de um enunciado dado uma consequência lógica independente de qualquer saber empírico. De Alguns homens são mortais extrai-se logicamente a conclusão Alguns mortais são homens. Para Ducrot, parece que as propriedades lógicas de um enunciado são derivadas de certos monemas como “todos”, “nenhum”, “algum”, “se”, “e”, “ou”, “não”, etc. A atitude que o autor tem na conta de perigosa, por causa de sua tendência reducionista, é a atitude de identificar a descrição semântica de tais monemas com a indicação da função que eles desempenham no interior do raciocínio.

Para ilustrar essa redução lógica do monema, Ducrot toma como primeiro exemplo a partícula “e”. Ele lista várias ocorrências de “e” em frases simples e mostra que a função que a partícula desempenha pode variar de significado de uma frase para outra, de modo que não é possível reduzir a função de “e” a um valor lógico constante.

A primeira ocorrência é A mesa é grande e quadrada. Dela se pode inferir duas coisas: que A mesa é grande e que A mesa é quadrada, obtendo-se assim duas frases independentes. Substituindo os termos por variáveis, obtém-se X é Y e Z, do qual se tira uma dupla conclusão: X é Y e X é Z.

No entanto, o mesmo não se aplica a uma frase aparentemente semelhante, como A bandeira é azul e vermelha. Dela não se pode derivar logicamente duas conclusões independentes como A bandeira é azul e A bandeira é vermelha. Não é possível concluir, a partir desse enunciado, nem que a bandeira seja da cor azul nem que seja da cor vermelha.

Outro exemplo suscetível de igual análise é encontrado em Pedro ficaria contente de visitar Paris e Londres, do qual é possível inferir ao mesmo tempo que Pedro ficaria contente de visitar Paris e que Pedro ficaria contente de visitar Londres. Mas de uma frase aparentemente semelhante como Pedro ficaria contente de beber whisky e água não é possível fazer a inferência de que Pedro ficaria contente de beber água.

Outro enunciado que Ducrot submete à análise é Pedro e Paulo virão. Dele se infere sem problemas que Pedro virá e que Paulo virá. O mesmo, porém, não pode ser dito de Pedro e Paulo virão sós. Com efeito, as inferências de que Pedro virá só ou de que Paulo virá só não são logicamente consistentes com o enunciado inicial, e não podem ser extraídas de Pedro e Paulo virão sós sem ferir a relação de consequência lógica.

Os logicistas, por seu turno, hão de responder que há, de fato, vários es diferentes, mas que um só dentre eles autoriza a inferência lógica. Eles dirão que os enunciados acima que admitem a dupla inferência consistem num amálgama de duas frases, ao passo que os enunciados aos quais repugna a dupla inferência possuem uma estrutura profunda diferente da estrutura superficial.

O objetivo que Ducrot tem em vista, ao listar esses exemplos, é mostrar que o logicismo tende ao reducionismo. O reducionismo se localiza na tentativa de manter o valor lógico dos morfemas a despeito e independentemente das variações de sentido que os morfemas sofrem ao serem utilizados nas línguas naturais. Recorrendo ao reducionismo, os logicistas podem argumentar que o “e” se mantém inalterado no seu valor lógico. Eles fazem recurso à redução porque ela permite a manutenção da propriedade lógica. Ducrot não entra no mérito da questão de saber se é ou não legítimo descrever a língua em termos de estrutura profunda e estrutura superficial. Antes, interessa-lhe notar que a distinção feita pelos logicistas nos exemplos acima tem como guia a preocupação de oferecer uma definição lógica constante do “e”, e não o interesse de fornecer uma boa descrição da língua.

Mas o que importa salientar é que o “e” não possui um único valor lógico constante. Isso pode ser constatado quando se atenta para o fato de que o “e” é uma partícula aditiva e nas matemáticas a adição e a multiplicação possuem propriedades distintas como a propriedade comutativa, que diz que a ordem das parcelas não altera a soma (A + B = B + A), e a propriedade distributiva, expressa pela fórmula A(B + C) = (A . B) + (A . C). Nos casos acima essa diferença deve ser notada, ficando claro que na frase A mesa é grande e quadrada está em jogo a adição de duas frases em uma só, enquanto que na frase A bandeira é azul e vermelha não se trata da união de duas frases, mas de dois adjetivos.

O ponto de Ducrot fica também claro na consideração de outro monema: a partícula condicional “se”. Ele toma como exemplo: Se o tempo estiver bom eu sairei. Acontece aqui um fenômeno de implicação análogo à implicação lógica, expressa pela regra muito conhecida: Se P, então Q. Se não-Q, então não-P. Aplicando-se a regra obtém-se: Se eu não saio, é porque o tempo não está bom. O tempo não está bom, então eu não saio. Isso mostra que a frase em questão admite redução a uma fórmula lógica.

Mas existem enunciados na língua natural que resistem em deixar-se enquadrar na regra, como é o caso de Se quiseres vir, tens o direito. Surge um problema tão logo aplicamos a regra em questão: Se não tens o direito de vir, é porque não queres. Vê-se, por conseguinte, que esta última frase não é redutível à regra da implicação.

Há outros casos que, se submetidos ao mesmo esquema, produzem um resultado bizarro: Se tens sede, há cerveja na geladeira. Do que sai: Se não há cerveja na geladeira, é porque não tens sede.

Mais ainda: Se ele vier, eu não o receberei. Se o recebo, é porque ele não veio.

Na tentativa de fornecer uma resposta a essas objeções, os logicistas recorrem novamente à redução do superficial ao profundo, dizendo que há uma frase mais desenvolvida subjacente a esse uso natural e que, no primeiro caso acima do Se quiseres vir, tens o direito, obedece-se à regra de inferência se a modificarmos para: Tens o direito de vir, e, se quiseres vir, utilizarás esse direito.

Ducrot diz que se dará por satisfeito se conseguir mostrar que a pretensão de descrever os morfemas do ponto de vista lógico só pode ser compreendida como o produto de uma posição prévia que já foi assumida pelos logicistas. Mas essa pretensão, ao invés de apresentar-se como imposta pelos fatos, exige, ao contrário, uma transformação considerável da realidade para ser ajustada à teoria, ou seja, é uma atitude de forçar os fatos da língua a caberem no esquema em vez de descrever os fatos da língua como tais.

A motivação para essa atitude prévia assumida pelos logicistas, conclui Ducrot, é que eles se preocupam exclusivamente com os juízos veiculados pelos enunciados, desconsiderando os enunciados como tais. Eles estudam apenas as relações de inferência que podem ser estabelecidas entre proposições e suas condições, tendo como alvo a construção de um sistema completo das possibilidades inferenciais da inteligência humana. Para que isso seja feito, os raciocínios devem aplicar-se às proposições (à linguagem artificialmente delimitada da lógica) e não às frases naturais da língua. Essa linguagem, por sua vez, deve atender a dois requisitos: (I) A expressão de cada proposição só se efetua numa única fórmula linguística. (II) Deve ser possível à linguagem a formalização artificial de um conjunto de fórmulas (correspondentes às relações intuitivas de inferência proposicional) que se fixe como modelo para qualquer conjunto dado de proposições. Isso permite, assim, a explicitação das leis de inferência, ao mesmo tempo em que confere a elas uma formulação exata.

Veja-se o caso das tabelas de verdade, que são dispositivos montados com a finalidade de que a teoria lógica fosse um cálculo. Na matemática, uma função é definida como a relação existente entre dois conjuntos no qual há uma correspondência biunívoca entre os elementos do primeiro e do segundo conjuntos, isto é, para cada elemento do grupo de partida há um elemento e um único elemento do grupo de chegada. Assim, cada elemento de um conjunto A, por exemplo, possui um único correspondente no conjunto B, e vice-versa. Em sua relação com o conjunto de partida, o grupo de chegada se configura como um conjunto de valores de verdade. A tabela de verdade é o dispositivo funcional que determina, mediante cálculo proposicional, todos os possíveis valores de verdade (verdade e falsidade) em tais relações de correspondência biunívoca, que são exprimidas pelos conectivos de implicação lógica: e, ou, se ... então, se e somente se.   

Nas tabelas, o procedimento é redutivo, ele consiste em reduzir a variedade de tipos de argumento existentes a um cálculo. Mas o problema é que a tabela não dá conta de calcular todos os modelos de argumento existentes na língua natural, que são em número de 7. Assim, ela elimina 3 deles e só calcula com 4. A tabela reduz a relação de implicação a uma relação funcional. Assim, ela não é capaz de levar em consideração nossas intuições de implicação de modo completo, ou seja, ela não mantém todas as nossas noções intuitivas de inferência. Assim, sendo insuficiente para reproduzir todas as inferências possíveis na língua natural, ela só recorta uma parte.

Com isso se constata novamente que a lógica se compõe de uma língua artificialmente recortada no interior da língua natural e artificialmente disposta para atender a objetivos lógicos. Nós é que isolamos um determinado setor da língua para cumprir essa função. As estruturas das línguas artificialmente delimitadas não reproduzem as línguas naturais, não são compatíveis. É por isso que o Google Tradutor, por exemplo, que opera através de um algoritmo lógico, não dá conta de fazer suficientemente todas as transposições de significado de um idioma para outro, e faz, muitas vezes, traduções absurdas e até mesmo cômicas.

As consequências de tudo isso para a linguística, diz Ducrot, estão condicionadas ao fato de que a linguagem artificial da lógica é apenas uma parte ou um subconjunto da linguagem natural. É no interior dessa linguagem artificial que os morfemas adquirem um valor lógico constante, claramente explicitado pelos lógicos. Aristóteles, ao submeter à análise todos os tipos de juízos possíveis a fim de dar-lhes uma expressão, e, ao formular as regras a que os raciocínios devem obedecer para serem válidos, serve-se de uma linguagem artificialmente isolada para atender aos interesses estritamente lógicos de sua análise, mas em nenhum momento o filósofo teve a pretensão de que esse recorte da linguagem fosse o modelo capaz de explicar o funcionamento da língua inteira.

O todo da linguagem ordinária não pode ser reduzido a esse protótipo da língua artificialmente construído em função de objetivos lógicos. A atitude reducionista, porém, aposta nessa redução e ela é levada assim a dividir a língua em duas zonas diferentes: uma zona estritamente lógica, que abriga os enunciados redutíveis à explicitação das leis inferenciais, e uma zona marginal, que abriga os enunciados “recalcitrantes” do ponto de vista lógico, ou seja, aqueles que resistem a deixar-se enquadrar nos esquemas lógicos. Dir-se-á, portanto, que os primeiros subjazem numa estrutura profunda, ao passo que os segundos repousam numa estrutura superficial, que só pode ser verdadeiramente compreendida sob a ótica da primeira estrutura. Os logicistas cedem à inclinação a fazer da língua natural, forçosamente, uma língua lógica, e tendem a crer que a estrutura lógica é a estrutura de base que se esconde nas profundezas da língua superficial e que constitui, em segredo, o seu alicerce. Em suma, eles querem ver num modelo artificial da língua o protótipo mesmo da linguagem, e caem assim na própria armadilha.

Mas Ducrot termina seu artigo dizendo que a perspectiva lógica, de modo algum, deve ser desconsiderada nos estudos linguísticos, pois ela possui (I) um valor heurístico, (II) um valor explicativo e serve como (III) um critério de adequação suplementar.

Um valor heurístico, porque as propriedades do se na linguagem natural só aparecem claramente quando este se é confrontado com o se ... então da inferência lógica. Nesse caso, a comparação da língua natural com linguagens artificiais pode ser muito instrutiva na hora de tomar consciência das propriedades que pertencem a uma língua particular. É por isso, justamente, que há um ramo da linguística chamado comparatística, que compara as diversas línguas para descobrir a estrutura comum a todas.

Um valor explicativo, porque as línguas naturais têm uma função lógica, dentre muitas outras, e fica a questão de resolver os problemas que a criação de uma linguagem artificial traz para os linguistas, que podem aprender muito com os lógicos. Na visão de Ducrot, os pronomes só podem ser adequadamente entendidos no reconhecimento da função lógica que eles cumprem no interior dos raciocínios. Quine, por exemplo, mostrou que a repetição da expressão ou bem em frases da forma “ou bem isto, ou bem aquilo” cumpre uma função lógica específica, e o reconhecimento dessa função revela-se fundamental para esclarecer os sentidos da expressão nos diversos episódios linguísticos em que ela aparece dentro das línguas naturais.  

Por fim, um valor de critério de adequação suplementar, porque os linguistas precisam de fios condutores na medida em que descobrem os múltiplos tipos de descrição diferentes a que a língua pode ser submetida.

A perspectiva lógica deve assumir os três valores acima para que possa ser útil à linguística na sua tarefa de explicitar o funcionamento natural da língua. Mas, além disso, ela não deve ultrapassar dois limites:

1. A linguagem artificialmente delimitada não pode ser considerada como modelo, já que não podemos ir além daquilo que a delimitação nos permite fazer. Não se pode partir do modelo criado para o exercício exclusivo da lógica para explicar o funcionamento da língua inteira. Com isso se entende que as línguas não têm uma estrutura lógica, e sim uma função lógica.

2. Após a delimitação, não se pode declarar como marginal e inferior o restante da língua, e considerar que ele precisa ser adaptado ao seu subconjunto suscetível de formalização lógica.

 

 

 

 

 

 

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